A força da arte popular
Projeto audiovisual da dupla de Além da Loucura, “Favela Vive 5” chega a sua quinta edição e tem a luxuosa participação da deputada e sambista Leci Brandão
O cenário no qual se desenrola “Favela Vale 5” nada tem de estetizado: uma câmera dura, parada, registra as lajes, as vielas, as quebradas, aqui e ali enfeitadas por bandeiras brasileiras. Sobre uma batida clássica do rap, um a um dos cinco artistas convidados vem dar seu recado, de pé, quase parados, e com os gestos de mão. Aquilo que cantam fala deles e das suas lutas, mas a protagonista real é o lugar onde estão, a favela.
“A tropa avança, favela/ F, família, A de aliança/ V de visão, E de equidade/ L, lili, liberdade, A, um dia nós alcança”, dizem os versos de MC Marechal, um dos três rappers convidados pela dupla ADL (Além da Loucura), formada por D47 e Lord. Nascida nos morros pobres de Teresópolis, Rio de Janeiro, a dupla criou o projeto Favela Vive em 2016, que produz clipes com muito apuro visual e reúne gerações e estilos diferentes dentro do rap. Já participaram nomes como MV Bill, Edi Rock, Djonga, Negra Li e Kamila CDD. E, a cada lançamento, espera-se uma novidade.
Nas duas últimas edições, pode-se dizer que o projeto Favela Vive alcançou uma espécie de status de manifesto político, que impressiona pela maturidade e transcende o público apenas do rap. Pelo impacto visual dos filmes, pela variedade de vozes & rimas e até por uma certa maturidade da linguagem, “Favela Vive 3” e “Favela Vive 4” tiveram enorme impacto à época de seu lançamento, com números expressivos de visualizações na plataforma do YouTube.
Neste ano, “Favela 5” promete repetir a trajetória, com já 2,3 milhões de visualizações em apenas uma semana. O clipe começa sem muitas delongas, com uma iluminação que sugere um início de manhã e final de tarde, com DK 47 em cima de uma laje: “Tem um médico de plantão pra vinte e sete paciente/ Vinte e sete assessores pra apenas um deputado/ É o país dentro do buraco/ Tu vê o professor humilhado dentro da sala de aula por um salário de esmola”. Ele recebe e cumprimenta Major RD: “Rio de Janeiro fez eu aprender que se eu pisar onde eu não devo/ Eu morro com fama de traficante/ Menorzão ligeiro, pra minha mãe não ter que me enterrar/ No Ensino Médio, alegando que eu era um estudante”. E conclui: “Favela, inimiga do Estado”.
Ambos partem num “cavalo” (moto) e a câmera sobe, de novo, para encontrar MC Hariel: “Hoje o capeta tá falando: Deus acima de tudo/ Camburão pro seus capanga virou câmara de gás/ Quanto tempo faz? Todo é dia é 1 de abril/ Progresso ninguém viu, só mais uma fake news/ Que a ordem era acabar com a mamata do Brasil/ Em quatro ano, do que tava, só regrediu”.
As referências a temas do noticiário e das redes sociais em 2022 pipocam aqui e ali no clipe, como se vê pela citação de Lord ao influencer Luva de Pedreiro: “Deviam tá brincando de bola, campeão brasileiro/ Moleque artilheiro, Luva de Pedreiro/ Mas parece que nós cai igual uma luva/ Um preto na pista, pra eles, uva, PM abusa”.
Gravado em 7 de novembro de 2022, logo depois das eleições presidenciais, o tom crítico do clipe vai ganhando fôlego à medida que se desenrolam seus quase 9 minutos de duração. Se no “Favela 4”, as cenas de impacto de tiroteio na Rocinha antecedem o clipe, nesta edição é com a entrada do vozeirão de MC Marechal D que, digamos, o clima está armado.
Mas, agora, armado numa chave de esperança, termo que não costuma ser comum em letras de rap e aqui aparece na bonita formulação de Paulo Freire: “Não sou o bala, eu tô mais pras mães/ Que pulam na frente e defende o filho adolescente que sente demais/ Quanto é diferente um pai que te aguarda de um pai com aguardente, é urgente/ Esperançar mais que só ter esperança”.
Nas cenas finais com Marechal, reúnem-se pela primeira os quatro rappers para ouvir a sambista e deputada Leci Brandão. É, no entanto, no papel da ancestral, das mulheres mais velhas das comunidades negras que tantas vezes são evocadas nas letras de rap, mães e avós, lideranças religiosas ou comunitárias, que Leci surge no “Favela Vive 5”. Some a batida mais dura, entra um coro feminino e Leci dá o recado: “O sistema sorri, favela chora, querem apagar nossa história/ Aos antepassados, glórias, glórias/ E atravessando as águas igual Harriet/ Cantaremos nossa vitória/ Porque a favela quer viver/ A favela quer viver/ A favela quer viver/ Mas a burguesia não se importa”.
Em seu trecho, Leci é, claro, menciona Marielle Franco, morta por milicianos em 2018, mas também cita Harriet Tubman, abolicionista norte-americana que, apesar de ter nascido escravizada, conseguiu fugir e resgatou várias pessoas escravizadas nos Estados Unidos do século 19.
Voz potente na cultura e na luta antirracista brasileiras, não é de hoje que a compositora de 78 anos tem relação com o rap — Leci tem uma música chamada “Pro Mano Brown” — uma vez que as cenas de samba e de rap, em São Paulo, são oriundas das mesmas periferias.
Nascida no Rio e mangueirense — ela foi uma das primeiras mulheres a integrar a ala de compositores da Mangueira —, Leci está radicada há muito anos em São Paulo, onde é deputada estadual pelo PCdoB e ativista dos direitos humanos e dos direitos LGBTQIA+.
A presença dela no “Favela Vale 5” confere um peso a mais ao projeto no sentido musical. Mesmo que não cante exatamente, a batida desce para a voz mais frágil acostumada às harmonias. Além disso, Leci faz uma ponte do rap com outras tradições na música de protesto brasileira.
Produtor da ADL, Thomaz TG Garcia contou à revista Rolling Stone: “Conheci a dona Leci em um café da manhã, onde estávamos eu e Marechal (…) gravar e produzir com uma pessoa como ela é histórico! Pioneira na música de protesto, primeira mulher a compor um samba de desfile da série A. Leci representa muito mais que o samba, ela é a síntese do grito brasileiro neste momento político cultural que passamos”.
O mais interessante, no entanto, é acompanhar como um clipe ou rap tem a capacidade de refazer um sentido de comunidade, que se esfacela todos os dias com a violência, mas que pode se refazer também todos os dias pela cultura e pela arte. •