O primeiro disco de Nei Lisboa completa 40 anos e show comemorativo já tem ingressos quase esgotados. Polaroid de uma juventude urbana afoita por democracia e liberdade de expressão, o disco é um panorama desse sentimento urgente

Paulo Chagas

No finalzinho do período da ditadura militar, no sul do país, um jovem boêmio lançava um registro em vinil que é um dos mais marcantes retratos em branco e preto do período. A história já seria um grande feito se levarmos em conta a sua produção. 

Numa época em que ninguém sabia o que era crowdfunding, o cantor e compositor Nei Lisboa lança em pré-venda o Nei Lisbônus com a ideia de financiar a produção de um disco. Uma iniciativa que convocava o ouvinte a comprar o disco apoiando financeiramente a produção. Algo inédito até então. 

Com faixas demo tocando (e bem) nas ondas da Rádio Bandeirantes FM — que se tornaria logo a seguir a Ipanema FM, um oásis de música alternativa no panorama radiofônico de Porto Alegre no início dos anos 80 — o repertório do disco teve a maioria das músicas escolhidas pelo público num show, produzido especialmente pra isso.

As faixas, uma mistura de deboche afrontoso ao poder instalado à época que ainda estava minguando até desembocar logo depois na Nova República, mas também uma ode à malandragem, usabam metáforas para falar sobre drogas, dor de cotovelo, discussão de relacionamento, postura e consciência política.

“Eu visito estrelas/ Lendas, profecias/ Procurando um verso que dissesse tudo/ A verdade da galáxia/ Se algum dia o sol vai derreter/ E o povo passa fome/ O povo quer comer”. Os versos estão na faixa-título do álbum, “Pra viajar no cosmos não precisa gasolina”.

Pode parecer trivial algo assim hoje em dia, mas na época era preciso coragem pra cantar a fome do povo assim de modo tão explícito. E lembre-se que a ditadura ainda estava lá, tendo à frente o general João Figueiredo. E Nei tinha bronca da famigerada revolução de 1º de Abril. Ele perdera o irmão Luiz Eurico Lisboa para a repressão do regime em 1972, aos 24 anos. 

Ico era militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e só teve seu corpo encontrado em 1979, por ação persistente da mulher Suzana Lisboa. Foi o primeiro caso de desaparecido político que teve o corpo localizado. Ele havia sido enterrado no cemitério do Perus, em São Paulo, numa cova rasa clandestina. 

Nei sabia dessas dores e de outras de sua geração. Porto Alegre no começo dos anos 1980 era um caldeirão de ideias e iniciativas culturais. O disco do bardo registra essa efervescência da época. Ele era egresso do movimento cultural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

“Foi ali que tudo começou. Fora da sala de aula tinha uma movimentação muito grande de rodas de som, de gente tocando, compondo junto, isso foi em 1977, 1978”, disse, no início do ano, em entrevista ao Brasil de Fato. 

“Um monte de gente da época, alguns se tornaram bem conhecidos como o Hique Gomez, Nico Nicolaiewsky, o Boina que é pouco conhecido hoje, mas era um grande compositor, parceiro, o Augusto Licks. Foi dentro desse movimento que começamos a tocar junto e outros tantos, como Antonio Villeroy”, comentou. 

O som de Nei Lisboa naquele distante ano de 1983 ecoa forte nos ouvidos de quem estava na capital gaúcha naquela época. E o álbum retrata o ecletismo e o bom gosto do cantor. Reggae, blues, baladas, mpb, gauchismo debochado (“Prenda minha, muy louca” ou “Chimarrão criolo liga como o quê, chimarrão criolo melhor com muito gererê”). Cabe reparar, no disco, para as guitarras de Augusto Licks, que mais tarde integraria a banda Engenheiros do Hawaii. 

Os dois velhos parceiros musicais estarão juntos para tocar o disco em dois shows em Porto Alegre, que acontecem em dia 16 de outubro. A primeira sessão já esgotou rapidamente. Quarenta anos decorridos e 11 discos depois, Nei mostrará que o combustível necessário para viajar no cosmos não precisa ser gasolina. Corra para não perder essa carona. •

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