Nem bem as escaramuças golpistas do 7 de Setembro tinham sido interrompidas e, no dia seguinte, reportagem publicada pelo Globo avisava: há 1.186.755 pessoas na fila de espera do Bolsa Família. Este contingente de mães e pais de família teria direito ao benefício e já está cadastrado no programa. Mas não está recebendo ajuda.

Na prática, todos foram excluídos dos programas de transferência de renda, criados pelos governos Lula e ampliados na gestão de Dilma Rousseff. Some-se a isso os mais de 1,8 milhão de beneficiários que estão na fila de espera do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) também aguardando benefícios, e temos mais de 5 milhões de brasileiras e brasileiros com direito assegurado por lei, mas à margem de qualquer tipo de proteção social.

O governo Bolsonaro tem tido nos desastres econômicos que se acumulam em cascata, desde o início do ano, um de seus calcanhares de Aquiles mais evidentes. Se, de certa forma, a pilha de mortos vem sensibilizando cada vez menos — são quase  590 mil óbitos na pandemia —, seja pela simples exaustão, ou pela naturalização com a qual a imprensa passou a tratar, os efeitos das políticas econômicas de Paulo Guedes tem se mostrado cada vez mais agudas no dia-a-dia do povo brasileiro.

Estudo da FGV Social divulgado na última semana mostra que a taxa de desemprego entre os mais pobres subiu 26,55% para 35,98%. Ou seja, quase 10 pontos percentuais, durante a pandemia. A renda individual média do conjunto dos  brasileiros, incluindo os informais e desempregados, caiu 9,4% em relação ao fim de 2019, antes da Covid. Na metade mais pobre, a perda de renda chegou a 21,5% no período avaliado — dados do último trimestre de 2019 com os do segundo trimestre de 2021. Os 10% mais ricos tiveram, em média, uma queda de 7,16%. Isso atinge  menos de um terço dos brasileiros de menor renda.

Outros números que deveriam estar tirando o sono de Bolsonaro e de Guedes: dos 14,4 milhões de desempregados no Brasil registrados pela PNAD no segundo trimestre de 2021, 6 milhões estão sem trabalho há mais de um ano. E, entre esses, 3,8 milhões buscam trabalho há mais de dois anos.

Desde que a gestão de Bolsonaro chegou ao poder, temos desigualdade crescente e se agudizando, desemprego que, além de aumentar, se estende por vários meses. A proporção dos que procuram ocupação há mais de dois anos subiu de 23,9% — primeiro trimestre de 2020 — subiu durante a pandemia para 26,1% — segundo trimestre de 2021.

Toda condução irresponsável e negacionista do governo Bolsonaro se cristalizou numa espécie de lema, cunhado pelo presidente e repetido à exaustão por seus ministros: “É preciso cuidar da saúde, sem esquecer a economia”. Com variantes, esse lema serviu de pretexto para Bolsonaro minimizar a Covid, aprofundar a crise sanitária atrasando a compra de vacinas, desprezar os protocolos sanitários e toda sorte de sandices a que estamos assistindo há 18 meses.

E economia? No terreno de Guedes, o ministro mostra que nunca, jamais esquece da economia. Mas a economia que favorece o mercado e não ao trabalhador. Proteção social não combina com a cartilha de Guedes, que concedeu a contragosto um Auxílio Emergencial — aquele que seria R$ 200 e só chegou aos R$ 600 por pressão das bancadas da esquerda no Congresso — por tempo insuficiente, a conta-gotas e retirando, ao mesmo tempo, outros benefícios que garantiam alguma renda aos mais pobres.

Se o Auxílio Emergencial deu algum fôlego no segundo semestre de 2020 e um alento temporário aos mais vulneráveis, o prolongamento da pandemia e a ausência de políticas públicas mais consistentes de transferência de renda e de geração de postos de trabalho se fizeram sentir de maneira brutal em 2021. A inflação, cuja meta estaria no teto 5,25% para todo o ano de 2021, chegou a 9,68% no acumulado de 12 meses em agosto, de acordo com o IPCA. Não há quem não perceba o preço dos produtos básicos aumentando a cada ida ao mercado, o gás de cozinha a R$ 100 o bujão e gasolina a mais de R$ 7, contas de consumo de água, eletricidade e internet/telefone que pesam cada vez mais nos orçamentos domésticos. 

Diante do desastre, mas de olho nas eleições de 2022, em agosto, Bolsonaro apresentou medida provisória criando seu programa de transferência de renda, chamado Auxílio Brasil. A justificativa é para “substituir e aprimorar” o Bolsa Família. Na verdade, acaba com o Bolsa Família — e não apenas por conta de inventar outro nome. 

De acordo com nota técnica publicada pela Rede Brasileira de Renda Básica, a MP “dá ao Poder Executivo a responsabilidade exclusiva para editar regulamentos relativos a valores de benefícios, prazos e regras de permanência”. A RBRB alerta: “Trata-se de um cheque em branco para que Bolsonaro defina até a linha de pobreza utilizada como referência de elegibilidade sem qualquer base técnica ou referência social”.

Sem definir de onde virão os recursos e quais são os critérios para quem pode receber o benefício, o programa de Bolsonaro corre o risco de trocar 6 por -6. Ou seja, acabar com uma política social que já tem mais de uma década de implementação e aprimoramentos para inventar uma nova, com regras mal definidas.

Ademais, os benefícios previstos na mesma MP criam condicionalidades que representam retrocessos importantes nas políticas sociais. Ainda de acordo com a nota da RBRB, “a MP é cruel por criar categorias de benefícios que dependem de desempenho científico e esportivo que crianças e adolescentes não podem vislumbrar na rede escolar atual, além de impor às famílias, majoritariamente chefiadas por mulheres, a responsabilidade de aumentar sua renda para receber o auxílio destinado à contratação de creches particulares, vinculando o direito de crianças às condições profissionais encontradas por seus pais”.

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