Rogério Cezar de Cerqueira Leite é um dos mais importantes cientistas brasileiros. Atualmente, está na Presidência do Conselho de Administração do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (Cnepem), localizado em Campinas (SP), e que tem quatro laboratórios que são uma referência no mundo. Aos 90 anos, lidando com a vanguarda da ciência brasileira, o físico conta que está preocupado com a realidade brasileira.

Na sua avaliação, o governo do ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro está longe de ser prejudicial apenas para a ciência. Cerqueira Leite avalia que a área da cultura talvez seja a mais prejudicada e aposta que a educação ainda será a salvação do Brasil.

Ele diz que Bolsonaro não pode ser subestimado, que compara o momento do Brasil com a Alemanha dos anos 1930, quando Adolf Hitler ascendeu ao poder. Embora as situações tenham elementos semelhantes, existem diferencas, mas o perigo existe.

A solução é o entendimento entre os líderes políticos brasileiros. Ele acredita que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seja o melhor nome para conseguir esse entendimento e espera que o petista possa se eleger e ficar talvez por mais 8 anos na Presidência da República. Cerqueira Leite considera que somente o ex-operário e ex-chefe de Estado tem a capacidade de promover a limpeza e o apaziguamento que o país necessita. A seguir, os principais trechos da entrevista à Focus Brasil.

 

Focus Brasil — O senhor acompanhou os acontecimentos de 7 de Setembro. Qual é a sua expectativa para a superação dessa crise?

— É um momento realmente difícil. Mesmo na época da ditadura, o início da ditadura, não houve um momento assim tão, digamos, enfático. Um acontecimento tão trágico. Porque a gente não vê saída. Eu tenho a impressão de que o Bolsonaro está num mato sem cachorro e cachorro no mato, morde. Ele vai atacar. O presidente já está atacando as instituições que são mais tolerantes, mas vai continuar a atacar outras. Isso é sobrevida também. Ele tem esse séquito de fanáticos ligeiramente imbecilizados que o acompanham e, além do mais, ainda tem o apoio de empresários que são muito venosos, que não são decentes. Ainda existe esse apoio. Veja por exemplo a Fiesp, o [Paulo] Skaf. É nojento o que ele está fazendo. Tentou segurar os ataques ao Bolsonaro. Isso foi significativo. Ele representa uma organização que é um baluarte nacional, que foi criada com intenções muito benevolentes, para ajudar a sociedade, ajudar a indústria a se impor, a crescer e hoje está nas mãos de um homem como este. E está assim porque ele foi reeleito, não é que esteja sozinho. Ele tem apoio ainda dentro da Fiesp. Não é o Skaf, é o empresariado paulista que ele representa.

Eu sei que existem muitos empresários que estão contra ele, mas tenho a impressão de que a maioria ainda o apoia. Isso é parecido com o que aconteceu na Alemanha dos anos 1930, quando Hitler começou a subir. A indústria o apoiou sabendo que ele era o que era: um fascista. As semelhanças com o que aconteceu na Alemanha de Hitler e o que está acontecendo atualmente aqui no Brasil é muito grande. Há uma pequena diferença, Bolsonaro ainda não tem a maioria do povo. Mas o Hitler acabou tendo na Alemanha. Depois que assumiu o poder, de maneira enganosa, conseguiu aos poucos fanatizar a população. Aqui, a sorte é que ainda existe imprensa livre, razoavelmente contrária a esses exageros. Não existe nenhum órgão da imprensa declaradamente, nem o SBT é declaradamente pró-Bolsonaro mais. Então, hoje existe algo diferente do que existiu na Alemanha. Não vou dizer que a imprensa vai ser a salvação do Brasil. Não é isso. Mas é um componente importante. A impressão que tenho é de que estamos chegando a um momento crítico. O mal se corta pela raiz. Não vai haver impeachment, infelizmente. Mas é possível e necessário que o povo vá para as ruas. Eu não vou porque eu não consigo andar mais, mas se arrumar uma boa cadeira de rodas, ainda vou [risos].

 

O senhor disse que o impeachment não deve acontecer, mas o senhor acredita que seria necessário para evitar o avanço bolsonarista?

— Veja bem, não vai acontecer porque o Centrão não quer. Está se aproveitando da fraqueza do presidente para ter seus benefícios normais. Tem muita gente do Centrão que prefere ter uma figura tragicômica como o Bolsonaro no governo do que ter um bom governo. Então, tiram proveito disso. Mas esse não é o caso. O caso é, se ele sair agora, vai entrar o quê? Mourão, que é inexpressivo. Não vai fazer diferença. Se houver impeachment, o Centrão continua mandando. E aí é possível chegar uma terceira via um pouco mais enquadrada, mais bem estabelecida e que seria, talvez, um problema para o Lula. Se for uma pessoa bem-intencionada, vai puxar alguns votos do Lula. Para mim, acho que seria importante a volta do Lula. Pelo menos por um mandato ou dois. Não é para voltar o petismo, não é para isso. É para limpar, limpar as instituições. Porque as instituições brasileiras foram corrompidas, o povo foi corrompido.

O povo fica esperando qual é a besteira – os caras decentes, tá certo? – que o Bolsonaro vai falar amanhã para poder dar risada, para poder falar mal. Falar mal do Bolsonaro tornou-se um vício que prende a gente e nós nos satisfazemos em xingar Bolsonaro. E isso degrada moralmente a sociedade. Tenho impressão de que há um mal que está sendo construído e que vai demorar muito tempo para ser resolvido. Então, talvez, será preciso um espírito como o Lula, porque eu acredito que o Lula é mágico. Uma vez a Dilma me falou que ele é genial e eu falei: não, Lula não é gênio. Ele é mágico. Lula muda a realidade. Quando ele fala, consegue mudar o panorama, vira outra coisa. Então, tenho a impressão de que a gente precisa do Lula nesse momento. Mesmo um outro candidato, claro que não estou falando de “Hucks da vida” porque aquilo lá é uma excrecência, mas estou falando de outras possibilidades como esse presidente do Senado, que tem aparência um pouco melhor. Seria mais palatável do que o Bolsonaro e é capaz de pegar eleitores do Bolsonaro e ainda puxar alguns dos que estão com Lula porque são contra o Bolsonaro. Existe gente desse jeito.

 

Recentemente, o senhor publicou um artigo na Folha falando sobre o preconceito contra o Lula. Ele vai conseguir dobrar essa elite preconceituosa ou precisará derrotá-la?

— Veja bem, acho que a elite não é homogênea. Tem vários componentes. Do que conheço, são pessoas muito diferentes umas das outras. Acho que muitos apoiariam o Lula contra o Bolsonaro. Mesmo aqueles três com os quais eu mexi — Horácio Lafer Piva, Pedro Wongstschowski e Pedro Passos —, entre os dois [Bolsonaro e o ex-presidente], apoiariam o Lula. Apesar de terem escrito aquela porcaria daquele artigo “Nem Bolsonaro, nem Lula”. Mas ali acho que é um jogo político. Estão querendo ganhar espaço na Fiesp porque são oposição ao [Paulo] Skaf. E se não falarem mal do Lula, não têm muito acesso à mídia e coisa e tal.

Agora, tem muita gente dessa elite que não votaria no Lula. Tem médicos que até hoje apoiam o Bolsonaro. É uma coisa inacreditável. Ficaram tão ofendidos com o Mais Médicos da Dilma que hoje o Lula parece um inimigo mortal. E estou falando de médicos que não são burros. Médicos que as vezes têm até um lado decente, que ajudam os outros. Há engenheiros também. Eles têm dentro deles um tipo de psicologia que os faz rejeitar um operário. A questão da casta, da elite, do fulano que se sente superior porque tem posses, isso é muito forte. Isso a gente não pode menosprezar.

 

Mas será necessário derrotar essas pessoas ou é o caso de tentar se aproximar?

— Vai depender de quem é o opositor. Acho que o Lula não deve ter uma estratégia traçada já. Acho que para lidar com a elite, deve depender de quem for o oponente real dele. Se for o Bolsonaro, poderá ter uma estratégia muito mais simples. Se for outra pessoa, talvez tenha que ser mais ameno, não sei.

 

O senhor falou sobre a dificuldade em torno desse movimento bolsonarista, que vai permanecer por um período. Na sua perspectiva, para solucionar essa questão seria importante uma união de diferentes setores da classe política, algo como uma frente ampla?

— Olha, nessa hora ninguém é melhor do que o Lula. Ele é muito bom para essas coisas. Lula vai ter que buscar colaboração e conviver com outras ideias. Para ele, não é difícil. Lula é uma pessoa mais do que inteligente. E ele precisa ganhar, percebe que hoje é importante para o Brasil que ele ganhe. E com essa motivação fundamental, vai ter que se entender com algumas pessoas e conversar com muita gente, inclusive com os apoiadores do Centrão. Eu achei que estivesse se entendendo com o Gilberto Kassab. Da última vez que estive com Lula, eu elogiei o Kassab. Ele é um cara eficiente. Se ele se entender com Kassab, leva muita gente. Acho que vai ter que se entender com pessoas como o Kassab, que disse que lançaria o presidente do Senado, mas é muito vivo. Se o cara não tiver chance de ganhar, ele muda.

 

O senhor acredita ser possível recuperar o prejuízo que está sendo provocado pelo Bolsonaro?

— A área da ciência está muito prejudicada pelo governo. Veja, tenho convicção que não casa muito com o que o conglomerado científico defende. Só se consegue chegar a algum lugar quando se concentra recursos e poder em alguns locais. Lula não fez isso. Deu muito dinheiro para o sistema, isso é verdade. Mais do que dobrou o orçamento. Ele é sensível, sabe que tecnologia é importante. Mas onde concentrou dinheiro, só aqui no CNPEM que deram dinheiro a mais. Porque tem essa coisa dessa falsa democracia de que tem que ser distributivo, dar R$ 500 para cada e ninguém vai fazer nada com isso. Ou seja, tem um monte de gente que tem pouco dinheiro e não consegue fazer nada. Então, tem que concentrar em alguns projetos. Lula não fez isso. Mas acho que está entendendo agora. Acho que o CNPEM é um bom exemplo. O conseguimos no CNPEM, graças a uma confluência de competências e de recursos, é inesperado no Brasil. Veja o que aconteceu com o Inpe, que faz um trabalho de necessidade nacional, estratégico. Ele foi abandonado. Em uma época, houve uma certa concentração, mas que aconteceu pela necessidade e não pela convicção de que só isso faz com que a ciência avance. E o mundo inteiro está fazendo isso agora. Os EUA sempre fizeram. Este é um momento muito ruim para a ciência no Brasil.

Mas não é a ciência que vai resolver o Brasil. A educação é mais importante. Eu reconheço. É preciso, não precisa aumentar muito, mas a qualidade das universidades, o ensino médio e o ensino profissional têm que ter apoio mais decisivo do governo. Não pode ser um projeto qualquer. Têm que ser projetos muito bem pensados. E temos gente competente nessa área. A educação precisa voltar a ter um apoio decisivo. Mas esse ministro da Educação dizer que o Brasil precisa de poucos estudantes de nível superior é de uma… Tudo bem se a Inglaterra dissesse isso porque têm bastante ou os EUA. Mas o Brasil? E os EUA ainda vão buscar mais gente fora para a área de ciência e tecnologia. O Brasil está mandando gente embora.

 

O país vive essa fuga de cérebros. Isso pode ser recuperado?

— Pode ser que alguém volte se as condições forem satisfatórias, mas esse governo não percebe isso. Lula vai perceber isso, claro. Vai fazer um esforço pela ciência e tecnologia. Acho, inclusive, que vai ter uma boa assessoria porque já tem pessoas relacionadas com ele dessa área que vão fazer um bom trabalho.

 

E com relação à cultura?

— A área cultural vai ser difícil se recuperar. É muito tempo perdido e estragado. Muita coisa foi abandonada. O pessoal responsável pela área cultural é uma lástima. Tudo isso é difícil de recuperar porque quando se tira uma coisa importante do lugar para colocar outra ruim, ela cria escola, cria raízes. Então, recuperar é sempre muito difícil. Na área de ciência também vai ser difícil, na educação. A cultura toda está um pouco desqualificada. Aliás, o que tenho achado de excepcional é a qualidade dos jornalistas brasileiros de hoje. Jovens com uma percepção muito grande. Não havia isso no tempo em que trabalhei da Folha de S. Paulo. Hoje, a Folha tem comentaristas muito bons. Sei que tem um viés, é uma empresa, tem os empresários, né? São pessoas também com alguma qualificação intelectual. Entretanto, acho que os jornalistas na Folha hoje são muito mais competentes do que na minha época, apesar de que havia grandes nomes como Janio de Freitas, mas falo da quantidade, a diversidade de gente boa. 

 

Sobre o movimento bolsonarista, alguns o tratam como fascista. Outros dizem que tem traços fascistas. A Focus apontou elementos sobre a relação entre Bolsonaro e grupos neonazistas. Na sua opinião, esse tipo de pensamento sempre esteve presente ou passa a ter força e a se organizar a partir de acontecimentos mais recentes como a Lava Jato?

— Durante o governo Geisel, os neonazistas chegaram a tentar colocar uma bomba na minha casa. Havia um movimento, pouca gente possivelmente. Mandaram cartas ameaçando. Invadiram a casa do Mário Schenberg, agrediram a esposa dele. Invadiram o meu escritório na Unicamp e arrasaram com a minha documentação. Tentaram sequestrar o filho da minha secretária porque consideraram que ela era muito próxima de mim. Há uma atividade neonazista subterrânea que sempre existiu. Tem sedes em Florianópolis, Curitiba, mas só por ali. E isso sempre existiu. Acho que o nazismo em si é uma coisa da natureza humana. Existe essa, digamos, deficiência parcial da natureza humana em que o indivíduo privilegia suas próprias coisas, não se pensa no próximo. Há muitos componentes comportamentais do nazismo e é difícil dizer o que é um neonazista mesmo. Mas é um engano pensar que chegou agora. Ele está aí. Eu não dou muita bola para neonazistas. Acho que é uma coisa pequena, vai haver sempre ter 500 mil pessoas com esse pensamento. Muitos daqueles que estiveram lá no Sete de Setembro dos bolsonaristas, são esse tipo de gente. Não são conscientemente neonazistas, são pessoas que têm um viés psicótico grave.

 

Mas o senhor acha que essa reorganização vem de um algum fato recente ou simplesmente aconteceu?

— Não saberia dizer. A presença do Bolsonaro incentiva a existência desses grupos, claro. Veja o motoqueiro, talvez não seja má pessoa. Mas na hora em que aparece um cara como esse que possa ser líder e líder deles, faz se sentirem assessorados e consentidos, então esse pessoal acaba seguindo Bolsonaro. Seguem-no porque ele existe, está aí e atrai certas coisas.  A mesma coisa aconteceu na Alemanha. Era um país extremamente civilizado e de uma hora para outra se torna nazista, manda matar judeus, poloneses, todos os diferentes que encontraram pelo caminho. Isso é uma perversão que nasce no indivíduo, mas que acaba entrando em aceleração por causa de pessoas que seguem esses líderes. Esse é um fenômeno histórico. Atrás desse líder se formam batalhões. Quando Bolsonaro se candidatou, escrevi um artigo alertando sobre isso. O problema não é Bolsonaro. É ele como líder, com potencial que tem um presidente da República de atrair simpatia. Quanta gente não foi atrás do Bolsonaro porque ele era um centro símbolo de poder?

 

O padre Julio Lancellotti falou algo importante, que é sobre o quanto é fundamental que não percamos o fio da história. Existe esse risco? É um pouco parte da nossa crise atual?

— Perigo existe. Já escrevi sobre isso. Não se deve brincar com Bolsonaro. Ele é um mal e é necessário construir uma estratégia para derrubá-lo. Não vai cair sozinho. O perigo das forças decentes é acharam que ele não é um problema — “Ah, não, ele vai cair”… “Ah, o Lula está muito melhor”. Se ele conseguir esse dinheiro para os programas sociais, ele vai conseguir levar gente para o lado dele, não adianta tentar alertá-los. A questão é que depois da eleição ele nunca mais vai dar dinheiro para as políticas sociais. Muita gente que hoje o critica, vai deixar de criticá-lo. Para mim, ele continua um perigo. E é preciso os líderes políticos do país se entenderem. Senão vai ser um desastre equivalente ao que aconteceu na Alemanha.

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