Soberania de dados: o futuro do IBGE com Pochmann; leia entrevista
Marcio Pochmann assumiu a presidência do IBGE em agosto deste ano. Em entrevista à Focus, falou sobre concursos, modernização e futuro.
Marcio Pochmann mal assumiu a presidência do IBGE e já tem muito a apresentar com relação ao futuro da prestigiada instituição que, como tem sido praxe descobrir, passou por intenso processo de desmonte no governo anterior. Pochmann foi empossado como presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em agosto deste ano durante cerimônia em Brasília.
Na esteira das preocupações, trazer a instituição ao Século 21, com um sistema integrado de soberania de dados, é sua prioridade. “É o que guia a política pública, esse sistema integrado. Um grande desafio do ponto de vista da gestão governamental e das políticas públicas”, aponta o economista.
Pochmann explica que o projeto partiu de experiências anteriores, como sua integração ao instituto Lula. “A experiência que tivemos por três anos à frente do Instituto Lula foi muito importante, na medida em que nos debruçamos sobre a temática da era digital, das desigualdades que a digitalização da economia e da sociedade produzem”. O projeto de integração de dados tem o apoio do presidente Lula, e o IBGE já iniciou diálogo com as três instâncias do Poder do país para viabilizá-lo.
O presidente do IBGE falou ainda sobre as expectativas de ampliar o quadro de funcionários do Instituto, além da recuperação de perdas salariais promovidas pela gestão de Bolsonaro. “O IBGE vai fazer o seu maior concurso da história em termos quantitativos, e optou inclusive por fazer parte de um concurso unificado nacional que o governo federal com o Ministério de Gestão e Inovação está realizando”, adiantou.
Pochmann é economista e foi professor do Instituto de Economia da Unicamp, a Universidade de Campinas até 2020. Publicou mais de cinquenta livros sobre economia, desenvolvimento e políticas públicas. Na vida pública, foi Secretário Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade durante o governo da prefeita Marta Suplicy em São Paulo, presidiu o Ipea, Instituto de Pesquisa econômica Aplicada de 2007 a 2012 e a Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020. Na entrevista, manifestou o desejo de que o campo progressista consiga discutir um projeto de futuro. “É preciso motivar a sociedade em torno de uma utopia”.
Focus Brasil – Como foram esses meses iniciais de trabalho à frente do IBGE?
Marcio Pochmann – O IBGE é uma instituição que está próxima de completar 90 anos. Infelizmente o nosso Brasil não tem a cultura de instituições tão longevas, e justamente dentro desta perspectiva que nós abrimos inicialmente uma série de diálogos que visa constituir as diretrizes programáticas desta instituição até 2026, quando o IBGE completará 90 anos. Estamos nesta fase de diálogos internos, que visam melhor compreender a instituição, dando oportunidade para todos os colegas. O IBGE tem cerca de 11 mil servidores. Quatro mil servidores fazem parte do quadro permanente e cerca de sete mil colegas que fazem parte do quadro temporário. Além disso, é uma instituição cuja sede se encontra no Rio de Janeiro desde a sua fundação em 1936, mas possui superintendências em todos os estados da federação, além de 562 unidades que operam o trabalho de coleta de pesquisa da instituição em municípios brasileiros. É uma instituição de representação nacional. Eu diria que se encontra entre as melhores instituições de pesquisa, de estatística e geografia do mundo. É impressionante a quantidade de demandas, de solicitações que o IBGE recebe para participar de eventos internacionais no âmbito da estatística, da geografia e pesquisas diante da qualidade dos seus técnicos, do profissionalismo da instituição. Recentemente, o IBGE divulgou algo inédito, inclusive no mundo, acerca de uma pesquisa que revela os trabalhadores e trabalhadoras vinculados ao teletrabalho, ao trabalho de plataformas, que é algo que vem ganhando dimensão, não apenas no Brasil, mas no mundo todo. Essa instituição tem problemas, evidentemente, sofreu dos efeitos de um governo de extrema-direita, mas estamos, de forma coletiva, transparente, democrática, reconstruindo junto com os colegas da casa e, ao mesmo tempo, num processo de escuta, de diálogo com o Governo Federal, nos mais diversos ministérios que tivemos oportunidade de dialogar e outras possibilidades que se abrem em termos de melhorar, modernizar as estatísticas brasileiras.
– O que podemos aguardar dessa primeira etapa de organização da sua gestão, em termos de prioridade de desafios, como a criação do Centro de Estudos de Trabalho da Era Digital?
– O sistema de estatística dados do Brasil responde a diferentes etapas ou fases da sociedade brasileira. Quando o Brasil ainda era um país escravista, se constituiu em 1871 a Diretoria Geral de Estatística, e a partir desta Diretoria Geral de Estatística, ainda no Império, foi realizado o primeiro censo demográfico do Brasil, em 1872. A partir da década de 1930, a própria Revolução de 1930, abriu um outro horizonte de transformação da sociedade brasileira, porque fomos transitando de uma sociedade agrária relativamente primitiva, cuja expectativa média de vida encontrava-se ao redor de 34 anos de idade, para uma sociedade urbana industrial. Nesta mudança de sociedade é que se identificou a necessidade de ter uma instituição de novo tipo, que foi a criação do IBGE em 1936. O IBGE emerge a partir dos anos 1930 com um papel estabelecido como uma delegação do estado, processo de modernização do estado brasileiro, e passa então a subsidiar cada vez mais políticas públicas, realizando os censos demográficos de 1940 até os dias de hoje, entre outras pesquisas por amostras, já não mais somente censos. Nós entendemos que o Brasil hoje está diante de uma mudança de época profunda. Diante da trajetória da desindustrialização que ocorreu no Brasil, hoje somos um país de serviços. Serviços são os maiores componentes, do ponto de vista ocupacional e da geração de riqueza no país. Essa sociedade de serviços está submetida a uma era digital, da digitalização da sociedade. Nós temos hoje o desafio de recuperar a soberania dos dados brasileiros, porque na era digital todos nós fomos repassando os nossos dados, as nossas informações, de maneira gratuita para grandes corporações transnacionais, em geral estadunidenses.
– Esse é um desafio grande, porque mexe com as big tech…
– Exatamente… Eu vou dar aqui um fato conhecido por todos: a presidenta Dilma, por exemplo, sofreu uma invasão do seu correio eletrônico, mas o correio eletrônico que ela usava era Gmail (Google), mas poderia ser qualquer outro que não pertence a nós. Então, quando nós entramos em uma sala virtual, nós autorizamos, nós dizemos que as informações dos dados não nos pertencem, as nossas fotos nas redes sociais não nos pertencem, nós concordamos que todas as informações pertencem a quem viabilizou o acesso às redes sociais. No caso da presidenta Dilma, ela, de certa maneira, não foi hackeada, porque nós autorizamos que as informações e mensagens não nos pertencem, porque o Brasil não tem, digamos assim, plataformas nacionais que garantiriam a soberania das informações. Não tem por que me parece faltar uma política de soberania nacional de dados. Por isso que nós entendemos que uma parte importante do IBGE, que é o coordenador do sistema de estatísticas no Brasil, precisa na verdade, avançar para criar um sistema nacional soberano. Isso envolve a integração de um conjunto de informações e dados que pertencem a diferentes instituições. Por exemplo, nós temos o que os especialistas denominam como silos de informação. Por exemplo, o Ministério da Educação tem um silo com informações sobre a educação brasileira. O Ministério do Desenvolvimento Social tem outro silo com informações de beneficiários dos programas sociais brasileiros. O Ministério da Previdência Social tem outro silo com informações de pessoas aposentadas e pensionistas. Então, nós vamos tendo cada ministério, cada órgão, com as suas informações, mas o importante seria, justamente, como dizem os técnicos, um lago, ou seja, unir todos esses silos para permitir ao gestor de política pública uma visão da totalidade da realidade. Esse é, para nós, o desafio importantíssimo, que o governo do presidente Lula pudesse encerrar este terceiro mandato com um sistema nacional autônomo de estatística, geografia e dados. Estamos trabalhando conversando com diferentes ministérios, trabalhando nessa perspectiva. Isso vira um celeiro de políticas públicas, é o que guia a política pública, esse sistema integrado. Um grande desafio do ponto de vista da gestão governamental e das políticas públicas.
– O fato de o Censo não ter sido realizado em 2020 tem alguma implicação para a série histórica de dados?
– Esse é o 13º censo realizado no Brasil, o primeiro foi em 1872. A ideia é que haja um Censo de 10 em 10 anos. Nós tivemos anos de turbulência política, econômica, e que não foram realizados censos. O Censo de 2022 foi realizado 12 anos depois do de 2010. Nós tivemos o problema da pandemia, então foi postergado para o ano de 2021. Em 2021, o governo (do ex-presidente Jair Bolsonaro) manifestou restrições orçamentárias, então não haveria. E, de fato, o Censo de 2022 somente foi realizado por determinação do Supremo Tribunal Federal. Esse é o primeiro Censo realizado no Brasil sob a determinação do STF. E ele foi realizado com dificuldades orçamentárias, porque houve um comprometimento de recursos para a realização, que equivaleu a algo em torno de dois terços dos recursos que foram utilizados para realizar o censo de 2010. Um Censo que foi realizado com menos recursos e com um número de questões inferiores àquelas que foram realizadas em 2010. Portanto é um Censo que reflete a singularidade daquele momento do Brasil. Mas é, inegavelmente, um Censo com um conjunto muito importante de informações. O IBGE revelou alguns desses dados e revelará outras informações. A preocupação da nossa gestão, que se iniciou após o Censo ter sido concluído e realizado pela gestão anterior, obviamente, é divulgar as informações, tal como foi o produto do Censo realizado, mas, mais do que isso, estamos preocupados em como podemos, na verdade, inovar na realização do Censo, já pensando no próximo de 2030, possivelmente uma recontagem da população. Estamos trabalhando com a ideia de um censo dinâmico que pode ser realizado de maneira mais rápida, mais eficiente, com menos recursos. Isso não é simples num país de dimensão continental. Estamos vivendo esse momento de transição de uma era cada vez mais digital, digitalizada. Nós temos a novidade de alguns países, como o Uruguai, em que mais de 50% do próprio censo foi respondido de forma digital, pela internet. Então, nós estamos estudando várias possibilidades com o objetivo de reduzir custos, ganhar maior dinamicidade, rapidez, aprendendo com a experiência desse último censo que foi realizado. De alguma forma, já é digital.
– Esse modelo de soberania de dados já vinha sendo estudado por você?
– Devo confessar que a experiência que tivemos por três anos à frente do Instituto Lula foi muito importante, na medida em que nos debruçamos sobre a temática da era digital, das desigualdades que a digitalização da economia e da sociedade produzem. Foram vários grupos de trabalho, de estudos. O próprio Instituto Lula está agora divulgando, na forma de livros, os estudos que foram feitos, olhando justamente esta mudança de época. E foi justamente a partir desse esforço de pesquisa, de estudos, de seminários, fóruns realizados no âmbito do Instituto Lula que ganhou dimensão essa preocupação com a questão dos dados, com a estatística, porque nós estamos falando hoje de informações que o IBGE produz a partir das pesquisas amostrais, pesquisas sobre índice de preços, sobre a evolução da população através do censo, mas também pesquisas de emprego, desemprego e tantas outras. São mais de 200 divulgações a cada ano. É uma máquina de produção de informações. Mas nós temos também os chamados registros administrativos. Os registros que estão na forma de cadastros, por exemplo, do Ministério do Trabalho, a Relação Anual de Informação Social, o Cadastro Geral dos Empregados e Desempregados, o Cadastro das Matrículas dos Nossos Alunos, o Cadastro dos Aposentados, há uma série de registros administrativos que nós gostaríamos de integrar e, na verdade, transformá-los em cadastros estatísticos. Tivemos vários contatos, desde a Anatel, por exemplo, dados que estão no âmbito da Polícia Federal, dados que estão no âmbito do INEP, da Educação, ou seja, nós estamos fazendo esse trabalho de convencimento e devo dizer que há uma convergência nesse sentido da integração das informações, porque acho que é um salto de qualidade para o gestor público e também para a sociedade, que pode, de certa maneira, através do IBGE, ter confiança nas informações que são disponibilizadas e do sigilo que representa o IBGE em termos do acesso às informações.
– Como você lê a taxa de desalentados no Brasil?
– Nós estamos muito preocupados com o desafio de compreender o tema do trabalho nesta era digital. A pesquisa divulgada recentemente sobre os trabalhadores vinculados ao chamado teletrabalho traz uma informação importante para conhecer melhor os trabalhadores de plataformas, mas é, eu diria assim, quase a ponta do iceberg, porque o trabalho, hoje, na era digital, mudou de natureza, por isso o esforço que nós estamos fazendo com outras instituições, acerca, por exemplo, do trabalho desenvolvido no âmbito das redes sociais. Nós conhecemos youtubers e várias pessoas que utilizam as redes sociais que são remuneradas, sabemos da remuneração, da monetização das redes sociais. Tem uma série de jogos no âmbito das redes sociais que são monetizados. Temos os chamados influencers, ou seja, há um conjunto grande de formas de trabalho e renda às quais nós não temos metodologia ainda para compreender. Por isso a participação que o IBGE tem tido, mais recentemente, em fóruns internacionais, congressos que reúnem estatísticos, cientistas de várias partes do mundo, preocupados em entender essa mudança na natureza do trabalho. Por hipótese, vamos imaginar que você conversa, com um youtuber, um influencer, e pergunta: “você trabalha?”, e talvez aquilo que ele realiza, não se entenda como trabalho. E aí pergunta: “você procura trabalho?” Não, ele não procura trabalho. Ele está desempregado? Também não está. Então ele vai ser considerado inativo, ele sai da população economicamente ativa. Por isso, muitas vezes, o conceito de trabalho na era digital nem sempre é muito bem compreendido. Isso é uma mudança substancial no que se entende sobre trabalho, e por isso nós precisamos fazer um esforço concentrado com as universidades, com os estudiosos nas mais diferentes áreas, para poder compreender melhor esse fenômeno, incorporar às pesquisas. Temos uma riqueza de ativos, de trabalhadores em várias áreas do IBGE para dar esse salto no conhecimento e poder oferecer com mais precisão a realidade pela qual o Brasil está vivendo hoje.
– O desafio hoje que você nos apresenta está posto para além das fronteiras do IBGE. Um trabalho de articulação, como você disse, com os ministérios, mas também com o Congresso, por esbarrar na regulamentação das big tech. Como está essa discussão em Brasília para tratar dessa integração?
– Nós temos um grande apoio do presidente Lula, que compreende justamente a complexidade desta transição de sociedade e de economia, isso para nós é um valor fundamental. No mesmo sentido, a ministra Simone Tebet e sua equipe no âmbito do Ministério do Planejamento e Orçamento têm também apoiado muito o IBGE.
Esse ano de 2023 é um ano importantíssimo, porque ele representa a retomada de concurso – e o IBGE vai fazer o seu maior concurso da história em termos quantitativos, e optou inclusive por fazer parte de um concurso unificado nacional que o governo federal com o Ministério de Gestão e Inovação está realizando. Também houve um reajuste de salários este ano. A articulação com ministérios, órgãos e instituições produtoras de dados é, para nós, bastante estimulante, pois existe uma convergência de interesses. Nós estamos avançando o diálogo também com o Poder Legislativo, com o Poder Judiciário, tivemos uma audiência com o presidente do Supremo Tribunal Federal, tivemos reuniões com a presidência do Tribunal Superior do Trabalho, estamos na verdade buscando fazer diálogo dentro dos três poderes da República, além da sociedade, é claro, das instituições de pesquisa, das universidades, porque é um esforço comum.
– Como foi a participação do IBGE na oitava reunião de altos funcionários especialistas em população do BRICS?
– Essa reunião realizada em Joanesburgo, foi uma reunião muito positiva, porque tratou das convergências das instituições que estão no âmbito, pelo menos no caso dos BRICS, na perspectiva do Sul Global. As estatísticas, os dados que nós temos hoje, as metodologias, elas foram criadas mais ou menos há 100 anos, muito influenciadas pela realidade do Norte Global. O IBGE não atualizou a sua projeção ainda porque nós estamos finalizando a totalidade das informações do Censo Demográfico. Mas antes do Censo, antes da pandemia, as projeções realizadas por outros organismos passaram a apontar que esse século XXI será um século de redução populacional. Ao contrário do que se imaginava, que a população continuaria crescendo. Hoje, o que estamos percebendo, é que há uma queda em vários países, vários continentes, salvo a África e um pouco do Oriente Médio, os demais países e continentes estão com uma desaceleração da sua população, uma queda na taxa de fecundidade. No caso brasileiro, inclusive, essa estimativa que foi feita pela Escola de Medicina de Washington considera que o Brasil pode chegar a 2100 com 50 milhões a menos de pessoas do que nós temos hoje. Essa é outra questão da mudança demográfica que abre a necessidade de uma discussão profunda no Brasil sobre população e desenvolvimento. Será que a população que nós temos hoje, que vai crescer um pouquinho mais, é razoável, é suficiente? Por que as mulheres estão tendo menos filhos? Por que as famílias tomam essa decisão? É um problema econômico? É uma decisão psicológica? Nós não sabemos isso.
– Do ponto de vista da lógica capitalista, você diria que, se não houver uma mudança no sistema capitalista, nós estamos à beira de uma tragédia, um caos social?
– A tua questão que não é simples de responder. O que eu entendo é o seguinte: estamos vivendo uma mudança de época no mundo assentado em eixos. O primeiro é o deslocamento do centro do mundo do ocidente para o oriente. Isso é algo, a meu modo de ver, mais importante dos últimos 500 anos. Porque até o século 15, até 1453, o centro do mundo estava na Ásia e as rotas das sedas permitiam deslocar o que havia de mais avançado no Império Hindu, no Império Chinês, para a Europa muito atrasada, muito primitiva. E aí a tomada de Constantinopla pelos turcos, hoje Istambul, praticamente interrompe, em grande medida, esse comércio e leva cidades e estados da Europa junto com alguns impérios, o português, o espanhol, a financiarem as grandes navegações que vão tentar reconectar e conseguem reconectar com as Índias e a China pelo Oceano Atlântico. Simultaneamente, “descobrem” um continente desconhecido que é a América e fundam o sistema colonial europeu, que é fundamental para a extração de riqueza, que serve de acumulação primitiva para fundar o próprio capitalismo na Europa, a própria revolução industrial. Tudo isso para dizer o seguinte: nós, desde o século 15, estamos diante de um projeto de modernidade ocidental. Nós mesmos, aqui no Brasil, no continente americano, acreditamos, fomos ensinados que, na verdade, tudo tem a ver com a origem da modernidade na Antiga Grécia, nos filósofos Platão, Hegel, ou seja, a ideia da universalidade a partir do eurocentrismo. E esse projeto de modernidade se assenta em vetores que estão, a meu modo de ver, colapsados. O primeiro vetor é a guerra. A guerra é o complexo pelo qual o capitalismo se move. E hoje nós estamos no limite da guerra. Então, tem um colapso desse complexo militar que segue ainda ativo, mas com grandes problemas. O segundo eixo é o de usar a natureza como recurso ilimitado. E, bom, nós temos, desde os anos 1970 já, a informação de que não é possível, não tem futuro continuar entendendo a natureza apartado do ser humano e de um recurso ilimitado. E o terceiro eixo, me parece, é a indústria cultural. Ou seja, é a dominação, o processo de alienação que o capitalismo produz a partir, então, da ideia do consumismo. Eu estou aqui simplificando, mas é isso: esse projeto de modernidade ocidental está colapsado. Nós estamos diante da emergência de novas modernidades. Uma delas é a própria modernidade chinesa. Há uma possibilidade da modernidade do campo sul global. Então, se nós continuarmos prisioneiros, achando que o capitalismo não tem fim, que, na verdade, o futuro é a Europa, os Estados Unidos, é uma visão que nos leva, na verdade, a uma alienação e uma ausência de disputa de futuro, e que é o espaço pelo qual, hoje, a direita mais cresce pois ela tem proposta em relação ao futuro e nós estamos com dificuldade. Nós temos que compreender que há uma mudança de época, há novas modernidades, e essa é a disputa que se faz do futuro e pelo qual a esquerda tem que ter um papel fundamental. Por que a esquerda existe? Ela trabalha com a utopia, com a perspectiva de que amanhã pode ser melhor do que hoje. O que o capitalismo nos oferece é, na verdade, um cancelamento do futuro. Nos diz que a tecnologia vai destruir emprego, não tem emprego, nos diz que a natureza vai destruir, e que agora o futuro será cada vez pior com epidemias. Não é verdade isso! Se continuarmos dentro desse projeto de modernidade ocidental, possivelmente será este o futuro, um futuro completamente desfavorável à humanidade. Mas penso que há alternativas, mas é uma disputa de futuro, como nós vamos, na verdade, motivar a sociedade em torno de uma utopia.•