A CPI dos Ataques à Democracia aprova o indiciamento de Bolsonaro pela insurreição em 8 de janeiro. Ele é suspeito de ter cometido quatro crimes: golpe de Estado, abolição violenta do Estado de Direito, associação criminosa e violência política. Trinta militares também são apontados de participação no esquema, incluindo oito generais e os ex-ministros da Justiça e da Defesa

O grande articulador dos ataques promovidos às sedes dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, uma semana após Luiz Inácio Lula da Silva ter sido empossado presidente da República, foi o seu adversário, derrotado nas urnas em outubro de 2022. Líder radical da extrema-direita nacional, Jair Bolsonaro foi o mentor da tentativa de golpe que poderia ter mergulhado a maior democracia da América Latina no caos político. Por muito pouco, o país não afundou numa guerra civil. Esta é a conclusão do relatório final da CPI dos Ataques à Democracia, aprovado por 20 votos contra 11 e uma abstenção, na quarta-feira, 18.

O veredito foi dado após cinco meses de trabalho, com a aprovação do relatório elaborado pela senadora Eliziane Gama (PSD-MA), Além de Bolsonaro, foram indiciados outros 60 de seus apoiadores mais radicais, incluindo 30 militares, com a participação ativa dos generais Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, Marco Antônio Freire Gomes e do almirante Almir Garnier Santos.

“Os fatos aqui relatados demonstram, exaustivamente, que Jair Messias Bolsonaro foi autor, seja intelectual, seja moral, dos ataques perpetrados contra as instituições, que culminaram no dia 8 de janeiro de 2023”, disse a relatora. “Por esse motivo, deve ser responsabilizado pelos tipos penais descritos nos arts. 288, caput (associação criminosa), 359-P (violência política), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (golpe de Estado), todos do Código Penal, por condutas dolosas”.

Após a leitura do relatório, a oposição apresentou um voto em separado, no qual insistiu na patética tentativa de responsabilizar o governo Lula pelos atentados ocorridos em 8 de janeiro. As conclusões da CPI serão encaminhadas ao Ministério Público Federal (MPF), que decidirá pela abertura de inquéritos. O relatório tem peso político e pode vir a determinar consequências legais para o ex-presidente e seus aliados. A peça acusatória pode vir a ser anexada ao inquérito aberto pelo Supremo Tribunal Federal, conduzida pela Polícia Federal e presidida pelo ministro Alexandre de Moraes, que já levou pelo menos seis réus à serem condenados a penas que variam a até 17 anos de prisão pelo envolvimento nos ataques.

O relatório de 1.333 páginas contém acusações semelhantes feitas a aliados-chave de Bolsonaro, incluindo três generais do Exército que ocuparam cargos no Palácio do Planalto, os ex-ministros da Defesa, do Gabinete de Segurança Institucional e da Secretaria Geral da Presidência da República. Ainda estão na lista o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, dois ex-comandantes do Exército e da Marinha e um ex-ministro da Defesa.

“A aprovação do relatório da CPI vai ficar para a história e traz a verdade dos fatos ao pedir o indiciamento de apoiadores e patrocinadores da tentativa de usurpar o Estado Democrático de Direito e colocando Bolsonaro como mentor”, elogiou a presidenta nacional do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann (PR). “É um dever nosso com democracia brasileira. Que sejam punidos para que nunca mais sequer pensem em repetir o 8 de janeiro. É assim que a democracia se fortalece: sem anistia para golpistas”. Ela apontou Bolsonaro como “o capitão do golpe”.

Integrante da CPI, o deputado mineiro Rogério Correia (PT), avalia que o relatório tem muitas provas e indícios. “A partir de agora, o STF, a PGR e a Polícia Federal têm instrumentos muito fortes para continuar na linha de investigação que houve até agora”, diz. O parlamentar também ressaltou o fato de a CPI ter identificado o núcleo duro que agiu ao lado do ex-presidente. 

“Jair Bolsonaro escolheu a dedo quem ele teria a sua volta para tentar garantir a violência antidemocrática que ele praticou desde o início do seu governo”, aponta. “Precisamos colocar esse núcleo duro que ele articulou respondendo a inquéritos no Supremo Tribunal Federal. Sem anistia. Que sejam punidos os culpados pela tentativa de golpe no Brasil”. 

Líder do PT do Senado, Fabiano Contarato (ES) também destacou a importância de o relatório vir a resultar em novos inquéritos na Justiça contra os citados. “O trabalho desta CPI não finaliza aqui. Ele só vai estar efetivamente finalizado quando todos esses golpistas forem condenados e pagarem pelo ataque à democracia”, disse o senador.

A comissão evitou que o ataque de 8 de Janeiro fosse esquecido e foi peça importante para que o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, fizesse acordo de delação premiada. Esta é a avaliação do deputado Rubens Pereira Jr. (PT-MA). “A CPI identificou os mentores do golpe e revelou para a sociedade a tentativa que Bolsonaro e a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) fizeram de desacreditar as urnas com a ajuda do hacker Walter Delgatti”, observa.

O ex-capitão do Exército, que construiu sua carreira política nos anos 80 celebrando a ditadura militar do Brasil (1964-1985) e chegou a elogiar e declarar-se fã do militar médico que torturou Dilma Rousseff no auge da repressão nos anos 1970, terá de responder pelo seu envolvimento direto no atentado contra as instituições da República. 

Eliziane Gama disse que depoimentos tomados e as provas e indícios colhidos pela CPI levaram ao nome do ex-presidente como o mentor da tentativa de “corromper, obstruir e anular” a eleição presidencial do Brasil em 2022. “Esse nome é Jair Messias Bolsonaro”, disse.

O relatório da CPI chama os ataques de janeiro, quando extremistas de direita saquearam o palácio presidencial, depredaram o Congresso e a Suprema Corte, o ponto alto de uma conspiração complexa e altamente organizada para manter Bolsonaro no poder, derrubando o governo de Lula. “O dia 8 de janeiro foi uma tentativa intencional e premeditada de encenar um golpe de Estado”, aponta o relatório.

“Havia apenas um objetivo: invadir ou permitir que os três ramos do governo fossem invadidos, desestabilizar a administração, incendiar o país, provocar caos e desordem política — e até mesmo, se necessário, uma guerra civil”, aponta o documento, aprovado pela maioria de dois terços da CPI.

Os conspiradores esperavam que, ao assumir o controle das instituições democráticas do Brasil, pudessem desencadear uma intervenção militar, com a decretação de um estado de emergência “que impediria a instalação de uma suposta ‘ditadura comunista’ no Brasil”. Bolsonaro foi o engenheiro “intelectual ou moral” de tais esforços.

Integrante da CPI, o senador Rogério Carvalho (PT-SE) considera o a aprovação do relatório final uma vitória da democracia contra aqueles que vivem tentando tirar a liberdade de escolha do povo brasileiro. “Nós vivemos quatro anos debaixo de agressões permanentes contra a nossa Constituição. Eles passaram o tempo todo tentando tirar os direitos dos brasileiros, e o último direito que eles tentaram tirar foi o direito à democracia, à liberdade de escolha. Eles passaram quatro anos articulando a permanência no poder a qualquer custo”, lamenta.

“Esta CPI colocou em evidência toda a construção golpista do governo Bolsonaro. Os indiciados estão aí (no relatório) não por perseguição ou injustiça, mas porque contribuíram com essa história de horrores contra a nossa democracia”, aponta o senador. A comissão concluiu que está claro o que ocorreu e não é  possível acreditar que o 8 de Janeiro tenha sido um movimento espontâneo ou desorganizado, muito menos ordeiro e pacífico, afirma a relatora. O objetivo final era o golpe.

De acordo com Eliziane Gama, a CPI se dedicou, nos últimos cinco meses, a entender como foi possível que milhares de insurgentes invadissem e depredassem as sedes dos Três Poderes. E, para que essa resposta seja alcançada, é preciso entender que o 8 de Janeiro começou a ser forjado antes, com ataques sistemáticos à democracia e manipulação dos fatos. “O 8 de Janeiro é obra do bolsonarismo”, aponta.

“A democracia brasileira foi atacada: massas foram manipuladas com discurso de ódio, milicianos digitais foram empregados para disseminar o medo, desqualificar adversários e promover ataques ao sistema eleitoral”, diz o relatório. “Forças de segurança foram cooptadas. E tentou-se corromper, obstruir e anular as eleições. Um golpe de Estado foi ensaiado e, por fim, foram estimulados atos e movimentos desesperados de tomada do poder”.

O relatório final aponta que, tanto no 8 de Janeiro quanto em ações anteriores — como os ataques em Brasília na noite de 12 de dezembro, após a diplomação de Lula, e a tentativa de explodir um caminhão-tanque no aeroporto da capital federal — a ideia era viabilizar a decretação de um estado de sítio ou de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), levando os militares ao controle do país. “Para os que nele tomavam parte — mentores, executores, instigadores, financiadores, autoridades omissas ou coniventes —, o 8 de Janeiro foi uma tentativa propositada e premeditada de golpe de Estado”, ressalta. 

A CPI concluiu que, enquanto a massa de golpistas era mobilizada, Bolsonaro tentava convencer oficiais das Forças Armadas a aderir ao golpe. Ao mesmo tempo, colaboradores e aliados próximos do ex-presidente elaboravam documentos que buscavam dar ao golpe “o verniz jurídico com que tanto sonham os ditadores”. É aí onde pesa a acusação contra o ex-ministro Anderson Torres.

Bolsonaro atacou por diversas vezes o processo eleitoral, chegando a vazar o teor de um processo sigiloso em uma de suas lives, e mentir sobre a insegurança das urnas eletrônicas em reunião com embaixadores estrangeiros. Ele ainda se reuniu com o hacker Walter Delgatti com o objetivo de desacreditar as urnas eletrônicas. 

Depois das eleições de 2022, Bolsonaro ainda se reuniu por diversas vezes com os comandantes das Forças Armadas, fora da agenda oficial, com “fins pouco republicanos”. A relatora lembrou que o ex-presidente nunca se disse contrário aos acampamentos golpistas que se formavam diante de quartéis do Exército desde o fim do segundo turno.

Mesmo assim, a democracia resistiu. “Contra os golpistas, prevaleceu a solidez de nosso arranjo institucional”, celebrou a senadora Eliziane Fama. Ela alerta, contudo, que ainda é necessário ao país permanecer vigilante, ao lembrar que os golpes de hoje não se dão apenas com o uso da força, mas com as armas empregadas pelo bolsonarismo: mentiras, campanhas difamatórias, propaganda subliminar, disseminação do medo, fabricação do ódio.

“As invasões do dia 8 de janeiro fracassaram em seus objetivos mais escuros. Mas os ataques à democracia continuam. O 8 de Janeiro ainda não terminou. Urge que o sistema de vigilância seja permanente”, adverte. •

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