PF realiza buscas na sede da agência e investiga como Bolsonaro usou ilegalmente o serviço secreto do governo para monitorar juízes do STF, servidores, adversários do ex-presidente e jornalistas

Abin: PF investiga Bolsonaro por monitorar desde juízes do STF a adversários e jornalistas
OPERADOR Ex-delegado da PF, Alexandre Ramagem ocupou a direção da Abin durante o governo Bolsonaro

A denúncia surgiu ainda em 2021. O governo Bolsonaro estaria comprando um software de uma empresa israelense, chamado Pegasus, que permitiria espionar ilegalmente qualquer pessoa. Agora, o que parecia uma suspeita preventiva ganhou contornos de realidade. A Polícia Federal descobriu que outro software foi utilizado contra juízes, jornalistas, políticos e adversários de Bolsonaro.

Na sexta-feira, 20, a PF desencadeou a operação Última Milha para realizar a busca e apreensão. E investiga o uso irregular de sistema secreto de monitoramento de geolocalização de celulares pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Isso teria ocorrido durante os três primeiros anos do governo do ex-presidente.

Foram cumpridos 25 mandados de busca e apreensão e dois de prisão preventiva nos estados de São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Goiás, além do Distrito Federal. Dois servidores da Abin suspeitos de coerção foram presos: Rodrigo Colli e Eduardo Arthur Yzycky. Segundo a Abin, o sistema de monitoramento deixou de ser usado em maio de 2021.

Responsável pelo caso, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, determinou o afastamento de Paulo Maurício Fortunato Pinto, que era até agora número 3 da Abin no governo Lula, e de outros quatro servidores da agência. Ele foi flagrado com US$ 171 mil dólares em dinheiro vivo em casa.

Durante o governo Bolsonaro, a Abin era comandada pelo hoje deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ). Ex-policial federal, Ramagem entra na mira dos investigadores responsáveis pelo inquérito das milícias digitais. Ele é suspeito de ter atuado na organização criminosa criada para tentar dar um golpe de Estado no Brasil para manter Bolsonaro no poder.

A PF aponta que servidores da Abin teriam usado o software de geolocalização para invadir “reiteradas vezes” a rede de telefonia e acessar os dados de localização dos alvos. Em março deste ano, o jornal O Globo revelou que a Abin utilizou o sistema com capacidade de monitorar, sem autorização judicial, os passos de até 10 mil pessoas por ano.

Afastado por Moraes, Fortunato Pinto atuou durante o governo Bolsonaro como diretor de Operações de Inteligência da agência, responsável por adquirir e manusear o software de monitoramento dos celulares. Ele foi nomeado como secretário de Planejamento e Gestão, o terceiro cargo mais alto na estrutura da Abin, pelo atual chefe da agência, Luiz Fernando Corrêa, quando ainda não era investigado pelas suspeitas do uso do software.

A Abin adquiriu um software de monitoramento de localização de celulares em 2018, no fim da gestão de Michel Temer, por R$ 5,7 milhões e sem licitação. A ferramenta chama-se FirstMile e permite rastrear os dados de GPS de qualquer pessoa pelos dados transferidos de seu celular para torres de telecomunicação.

O software israelense é vendido no Brasil pela empresa Cognyte. Um dos representantes da empresa é Caio Cesar dos Santos Cruz, filho do general da reserva e ex-ministro do governo Bolsonaro Santos Cruz. Ele foi alvo de buscas e prestou depoimento à PF.

O software foi usado por servidores da Abin nos três primeiros anos do governo Bolsonaro sem nenhum protocolo oficial ou autorização judicial para monitoramento dos alvos da agência. Segundo a PF, os agentes usaram a ferramenta para monitorar servidores públicos, políticos, jornalistas, advogados e juízes.

O sistema permite realizar consultas de até 10 mil celulares a cada 12 meses. Era possível, ainda, criar alertas em tempo real, para informar quando um dos alvos se movia para outros locais. Para iniciar o rastreio, bastava digitar o número de celular da pessoa.

No início do ano, Lula decidiu transferir a Abin para a Casa Civil. Até então ela ficava sob o guarda-chuva do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), durante o governo Bolsonaro, comandada pelo então general Augusto Heleno, também indiciado com o ex-presidente pelo envolvimento nos ataques à democracia em 8 de Janeiro.

A ideia de tirar a Abin do GSI surgiu ainda durante a transição, quando integrantes da equipe de Lula se incomodavam com a composição ideologizada que a pasta passou a ter, sob a gestão de Bolsonaro. A desconfiança levou Lula, ainda no primeiro dia após a posse, a editar uma medida tirando a segurança presidencial do GSI.

A PF investiga se a Abin monitorou a localização de celulares do ex-deputado federal Jean Wyllys, de um servidor da área de tecnologia do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e de caminhoneiros. Ainda há suspeita de que foram feitas vigilâncias durante as eleições de 2020 eno Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), além de áreas nobres em Brasília e no Rio de Janeiro.

Ao analisar os cerca de 1.800 acessos feitos pela Abin na ferramenta — um número que a PF considera ser apenas um extrato das consultas de fato realizadas no programa —, investigadores descobriram que um contato relacionado ao ex-deputado Jean Wyllys foi monitorado.

No início de 2019, o ex-parlamentar optou por não assumir o novo mandato como deputado para o qual tinha sido eleito no ano anterior. Ele decidiu morar no exterior após receber ameaças no Brasil. Wyllys fez oposição pública ao clã Bolsonaro e colecionou embates judiciais com os filhos do ex-presidente.

A PF também apura as circunstâncias de um suposto monitoramento feito em um celular de um servidor do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O integrante da Corte atuava na área de tecnologia, que, entre outras coisas, é responsável por zelar pelo funcionamento das urnas eletrônicas no país.

Outro ponto que chamou a atenção da PF foi o pico de acessos feitos no programa espião durante as eleições de 2020. Investigadores traçaram um gráfico que mostram o crescimento expressivo de monitoramentos realizados no First Mile durante o período em que foram escolhidos prefeitos e vereadores.

A Abin também monitorou jornalistas, advogados e adversários do governo Bolsonaro. Em nota, a agência comandada por Luiz Fernando Corrêa, ex-diretor-geral da Polícia Federal, disse que instaurou procedimento para apurar o caso e que todas as solicitações da PF e do STF foram atendidas integralmente.

Quando a PF chegou à sede da empresa representante do First Mile no Brasil, peritos bloquearam o sistema e a nuvem de dados para coletar dados. Ao analisar o material encontrado, descobriram outros clientes que podem ter comprado ferramentas de inteligência. Dentre eles, está o Exército.

Outra linha de investigação apura como a empresa se utilizou de brecha na rede de telefonia para ter acesso aos dados privados da movimentação de pessoas. A brecha é apontada por investigadores como vulnerabilidade que a Abin deveria ter alertado. Uma investigação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), após O Globo revelar o uso do First Mile, concluiu que a Abin utilizou o sistema sem o conhecimento das operadoras de telefonia. •

Carluxo queria comprar Pegasus

Em maio de 2021, estourou o escândalo de que o filho do  então presidente Jair Bolsonaro, o vereador carioca Carlos Bolsonaro, tentou influenciar no processo de licitação do Ministério da Justiça para ter controle sobre uma ferramenta de espionagem. Denominado Pegasus, o sistema possibilita a invasão de celularaes e computadores sem indicar o responsável pelo acesso.

Orçada em R$ 25,4 milhões, a licitação tinha o objetivo de contratar o programa de espionagem desenvolvido pela empresa israelense NSO Group. O software foi projetado para se infiltrar em telefones e começar a transmitir a localização do proprietário, seu código criptografado chats, planos de viagem – e até mesmo as vozes de pessoas que os proprietários conheceram – para servidores em todo o mundo.

Em outubro de 2019, o jornal inglês Financial Times denunciou que a NSO desenvolveu um novo método ao transformar uma vulnerabilidade no WhatsApp, usada por 1,5 bilhão de pessoas em todo o mundo, para infiltrar o Pegasus.

A ação do filho do presidente da República tirou o GSI e a Agência Brasileira de Informações (Abin) das negociações, órgãos que seriam diretamente beneficiados com a ferramenta. A contratação daria direito a 249 licenças para uso do programa. Dessas, Carlos teria controle sobre 155, por meio de Anderson Torres. A compra acabou suspeita — pelo menos aparentemente. •