Historiadora analisa as relações da música de Milton com a latinidade musical, poética e política

O disco é Clube de Esquina 2, álbum duplo. Na faixa 2, do disco 2, ouve-se por alguns segundos uma introdução com sabor caribenho (maracas, percussão) e sobre a voz de Chico Buarque: “El nacimiento de un mundo se aplazó por un momento/ Un breve lapso del tiempo, del universo un segundo/ Sin embargo parecía que todo se iba a acabar/ Con la distancia mortal que separó nuestra vidas.” Milton entra na terceira estrofe; na quinta, Chico e Milton fazem dueto em franco portunhol e na sétima, em bom português, o tom sobe: “A história é um carro alegre/ Cheio de um povo contente/ Que atropela indiferente/ Todo aquele que a negue.” 

No “Clube de Esquina 2”, lançado em 1978, Milton Nascimento, vindo de uma admirável sequência de 11 LPs em 11 anos, escancara nessa canção pelo menos duas características essenciais de sua música: a politização pelos laços da solidariedade e da empatia e suas aproximações com os ritmos e a poética latinoamericana. Em “Milton Nascimento nos Trilhos da América Latina”, a pesquisadora Fernanda Paulo Marques propõe uma leitura intrigante da presença da música latina na construção do Milton cantor, compositor e, muitas vezes, co-produtor de seus discos.

O trabalho minucioso da historiadora e musicóloga se detém, especialmente, na análise dos seis discos de estúdio lançados entre 1970 e 1978 (“Milton”, “Clube de Esquina”, “Milagre dos Peixes”, “Minas”, “Geraes” e “Clube da Esquina 2”). Não é uma década ordinária, nem na história recente do Brasil nem na história da música popular brasileira. Muito menos, de acordo com a autora, um acaso que os chamados de Milton para os “outros” latinos tenha se concentrado nessa década. 

Revelado, como tantos grandes nomes de sua geração, pelos festivais de música do final dos anos 1960 com “Travessia” (ganhou festival da Record em 1967), Milton Nascimento se tornaria, ao lado de Chico Buarque, do grupo tropicalista e de Elis Regina, um dos artistas essenciais da música brasileira na década de 1970. Dono de um projeto autoral de canção, centrado na potência e no alcance absurdo de sua voz, ele faria uma intervenção na MPB de “fé cega, faca amolada”. Com um grupo de amigos compositores e instrumentistas, que autodenominaram como o “clube da esquina”, fizeram história em 1972 com “Clube de Esquina”, um outro álbum duplo e conceitual que trazia uma sonoridade completamente diversa daquilo que se produzia no eixo Rio-Salvador. O ponto de inflexão de Milton tinha vindo no disco anterior, intitulado apenas como “Milton” (1970), produzido pelo amigo de adolescência e parceiro Wagner Tiso, à época também integrante do coletivo de jazz rock psicodélico Som Imaginário. Com em que o perfil estilizado de um Milton black power de destaca no fundo branco,  o cantor passeia à vontade entre reminiscências da Minas-matriz, a bossa nova e a, de certa forma, a novidade dos Beatles, justamente na canção-manifesto em que afirma em tom de desafio/homenagem, para John e Paul: “Eu sou da América do Sul/Eu sei, vocês não vão saber/ Mas agora eu sou cáuboi/Sou do ouro, eu sou vocês/Sou do mundo/Sou Minas Gerais”.

Depois de “Clube da Esquina”, Milton acaba por ocupar o espaço de uma grande Minas Gerais no meio da música brasileira: como o estado, ele é grande, urbano e rural, antigo e moderno, variado e insular. Cabe todo no grande e complexo universo musical de Milton; queridíssimo por Elis Regina, reverenciado por Caetano, Chico, Gal, ele é, ao mesmo pop e sofisticado, afeito ao experimentalismo e fincado na tradição. E, ao lado de tudo isso, está interessado em universos musicais que chegam ao Brasil por diversos caminhos. Um deles, o árduo caminho do exílio político.

Na década de 1970, com os golpes militares que instauraram ditaduras Cone Sul – Chile e Uruguai e, 1973 e na Argentina em 1976 -, as grandes cidades brasileiras como Rio e São Paulo se tornaram portos mais ou menos seguros para quem tinha escapado à repressão em seus países. Além disso, o destino trágico e em comum aproximou culturalmente o Brasil, que também vivia uma ditadura militar desde 1964, dos países da América Latina de língua espanhola. A “Nueva Canción” dos países andinos se tornou, aqui, uma música também da resistência à ditadura. Entre os artistas brasileiros da MPB, um dos que mais refinou essa relação com a latinidade musical foi justamente Milton Nascimento

O livro de Fernanda Marques faz todo esse mapeamento da imbricação das composições e da musicalidade de Milton com a América Latina no recorte preciso da década, analisando álbum por álbum os aspectos musicais e extramusicais que estão em jogo. Ainda que a autora se apoie em conceitos da teoria decolonial e, sobretudo, nos estudos sobre identidade e diáspora negra do  antropólogo Édouard Glisssant para construir uma moldura analítica, não se trata de obra de espessura acadêmica excessiva. Antes, é um passeio (ou uma “viagem musical”, como propõe o subtítulo) pelas muitas curvas que compõem uma estrada imaginária que liga Três Pontas a Buenos Aires, Santiago do Chile ao Beco do Mota, os Andes aos Geraes.

E,  numa travessia bem fundamentada, talvez a grande contribuição do livro de Fernanda Marques seja, justamente, revelar como essa travessia poética e musical de Milton Nascimento revelava uma grande preocupação política, ainda que numa concepção mais ampla do que aquela oferecida pela canção de protesto ou das que pretendia politizar as massas pela canção. Nessa construção mais sutil, mais feita da solidariedade na opressão colonial, das  identificações étnicas tranversais do homem negro brasileiro com outras identidades minoriárias do que de uma militância pela música, se reabre uma debate nunca acabado, e sempre atual, de como pode ser variado, criativo e mesmo transformador o engajamento do artista nas questões de seu tempo. •

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