Bloqueio do território palestino desde 2007 criou uma grave crise humanitária em plena Terra Santa. Em Gaza, 80% da população depende da ajuda humanitária para sobreviver. Sob o domínio do Hamas e debaixo da opressão israelense, o povo palestino sofre os horrores da “guerra”

DESESPERO E DOR Durante a última semana, homens e mulheres palestinos enterraram os corpos de mais de 1,1
mil pessoas, por conta dos bombardeios de Israel sobre Gaza. A tragédia já deixou mais de 4,3 mil feridos na cidade. Foto Fátima Schbair/AP

Imagine uma população de 2 milhões de pessoas vivendo confinada, a céu aberto, em território considerado inimigo, dependendo de ajuda humanitária para sobreviver. Isso é o que acontece na Faixa de Gaza, o enclave onde estão os palestinos, que ganhou as manchetes do mundo todo na última semana. A imensa população civil vive nas piores condições possíveis. Depois do ataque do Hamas no sábado, Gaza passou a ser alvo de ataques duros e pesados diariamente organizados pelo governo de Benjamin Netanyahu.

As baixas de civis e Israel mostram o tamanho da carnificina. De acordo com a embaixada de Israel nos Estados Unidos, o número de israelenses mortos já é superior a 1 mil pessoas. O número de feridos supera 3,5 mil. Do outro lado, são mais de 1.100 palestinos mortos e 4.250 feridos por causa dos ataques aéreos de Israel, que visam zonas residenciais. À violência inédita do ataque dos militantes do Hamas, Israel contrapôs uma punição  já bem conhecida dos palestinos, que ainda estão sem acesso a água, luz e comida. Os hospitais de Gaza entraram em colapso.

“O hospital está completamente cheio e as coisas começaram a ficar muito duras. E este é apenas o quarto dia”, disse Ghassan Abu-Sittah, cirurgião do principal hospital da cidade de Gaza, al-Shifa, segundo relata o jornal britânico The Guardian. “A situação continua a se deteriorar, o número de pacientes, especialmente crianças, é alto. Muitos estão chegando com ferimentos horrendos”.

Segundo o médico, a situação é assustadora. “Esta manhã havia uma criança (quinta-feira, 12), uma menina, com ferimentos faciais indescritíveis cuja mãe é médica em al-Shifa e foi morta quando sua casa foi alvo. Ontem (quarta, 11) à noite, outro menino de 10 anos com ferimentos faciais também devastadores,  foi retirado dos escombros de sua casa no bairro de Sheikh Radwan”. Desde quarta-feira, 11, o hospital de Gaza está às escuras. Acabou o combustível que gerava eletricidade para o seu funcionamento.

Quando Israel começou a bombardear Gaza, no sábado, a situação era menos desesperadora. A mulher de Amer Ashour, por exemplo, entrou em trabalho de parto. “Eu estava preocupado e pensando como é que conseguiríamos chegar à maternidade”, contou Ashour à Al Jazeera. Mas isso até correu bem. O que Ashour não esperava é que, quando saísse do hospital, com o filho recém-nascido, ele e a família não tivessem casa para onde ir. É que o seu apartamento foi vaporizado num ataque aéreo de Israel sobre as zonas residenciais em Gaza, na terça-feira, 9.

Para a maioria da população civil, a situação em Gaza agora passou a ser de sobrevivência horrenda em meio a escombros, no mais novo capítulo de uma guerra insana que já dura 15 anos e cuja origem da grande instabilidade social na região já completou 75 anos. Foi quando o território dos palestinos foi desmembrado para a criação do Estado de Israel. 

Desde essa época, nos anos 1940, Gaza é uma área em constante ebulição. E este é um pedaço de terra pequeno, cuja maior característica, desde meados dos anos 2000 é ter se tornado conhecido como a maior prisão a céu aberto do mundo. Uma favela sob forte aparato militar, militarizado, com a população submetida a toques de recolher e sob a autoridade colonial do governo de Israel.

O enclave palestino é uma estreita faixa de terra entre Israel, Egito e o Mar Mediterrâneo, com postos de controle de entrada e saída fortemente vigiados. Isso tudo em plena Terra Santa. Metade da população de Gaza tem menos de 19 anos. Nada menos que 48% dos moradores estão desempregados. O povo vive confinado em uma área de 6 km de largura entre Israel e o mar; 21 km de litoral em que 4 mil pessoas vivem da pesca. O pior são as condições. Neste território, não há tratamento de esgoto. As doenças contraídas por causa da água contaminada são a maior causa de morte infantil.

ESCOMBROS A destruição massiva de prédios residenciais e comerciais, nas ruas da cidade de Gaza não seguem
a lógica de uma guerra simétrica que persegue alvos militares. Acima, a sede do Banco Nacional da Palestina

Daí que não é difícil entender o desespero. Os palestinos são obrigados a viver numa colônia, sem autonomia. A população de 2,1 milhões de pessoas está dentro de uma área confinada de 365 km² (a mesma área de São Luís, capital do Maranhão), que tem metade da população palestina na região. O território está sob o controle do Hamas há 15 anos. Mas é preciso lembrar que Gaza adquiriu seu contorno atual em 1949, com o fim da primeira guerra entre árabes e israelenses. No início, Gaza era controlada pelos palestinos. E, depois, pelos egípcios, entre 1959 e 1967. Até que Israel a ocupou na Guerra dos Seis Dias.

Em 1993, a Autoridade Palestina assumiu a responsabilidade administrativa sobre os territórios. Em 2005, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, participou de um encontro no Egito com o então primeiro-ministro israelense Ariel Sharon, o rei Abdullah da Jordânia e o então presidente egípcio Hosni Mubarak. A reunião serviu para declarar um fim à violência. As duas maiores facções palestinas — o Hamas e o Fatah — concordaram com o acordo.

O Exército de Israel se retirou de Gaza e ordenou a saída de 8 mil colonos israelenses. A união entre as duas facções palestinas durou pouco. Em 2006, houve eleições legislativas em Gaza. O Hamas conquistou 74 das 132 cadeiras. Enquanto o partido nacionalista Fatah  ficou com 45. No ano seguinte, depois de um sangrento confronto, o Hamas expulsou o Fatah e assumiu o controle de Gaza. O Hamas chegou a jogar militantes do Fatah do alto de prédios. 

Desde 2007, a Faixa de Gaza está sob controle do Hamas e não houve mais eleição na região. Em junho daquele ano, com apoio do Egito, Israel impôs um bloqueio por ar, terra e mar na Faixa de Gaza. Israel alegou que os bloqueios eram necessários para a segurança dos israelenses. Cabe mencionar que uma pesquisa feita pelo Palestinian Center revelou que um terço dos palestinos são contrários ao rompimento político entre a Autoridade Nacional Palestina, na Cisjordânia; e o Hamas, na Faixa de Gaza.

É preciso lembrar que o Hamas — acrônimo em árabe para “Movimento de Resistência Islâmica” — é uma organização política e militante palestina que controla a Faixa de Gaza desde meados dos anos 2000. Fundado em Gaza em 1988, durante a Primeira Intifada, o Hamas não reconhece qualquer legitimidade ao Estado  de Israel e é o principal braço armado da causa palestina, defende formação da Palestina enquanto um país independente e que segue as leis islâmicas sharia. 

No entanto, não se pode esquecer que foi Israel quem facilitou a ascensão do Hamas como um contrapeso ao Fatah e à Organização para a Libertação da Palestina (OLP), então liderada por Yasser Arafat. Naquela altura, o Fatah e a OLP eram os principais inimigos de Israel e uma das razões para o receio dos israelenses residia no fato de serem grupos laicos e capazes de unificar o povo palestiniano sob a mesma bandeira. Isso mudou.

Durante o tempo em que Gaza esteve sob controlo do Egito, particularmente do governo de Gamal Abdel Nasser, as atividades dos islamitas, particularmente aquelas afiliadas à Irmandade Muçulmana, não eram permitidas. Mas esta política foi transformada após a Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando Israel rapidamente derrotou uma coligação de nações árabes e assumiu o controle de Gaza. As autoridades israelitas, vendo a Irmandade Muçulmana como um contrapeso útil ao Fatah, permitiram que os ensinamentos dos radicais islâmicos se espalhassem.

“O Hamas, para meu grande pesar, é uma criação de Israel. Cometemos um erro enorme e estúpido”, admitiu Avner Cohen, general militar israelense que trabalhou em Gaza durante mais de 20 anos, durante entrevista concedida em 2009 ao jornal Wall Street Journal. Ele disse que os israelenses encorajaram a difusão dos ideais da Irmandade Muçulmana em Gaza e apoiaram Ahmed Yassin, o clérigo que viria a fundar o Hamas.

“A administração liderada pelos militares de Israel em Gaza viu com bons olhos o clérigo paraplégico (Yassin), que criou uma ampla rede de escolas, clínicas, uma biblioteca e jardins de infância. Yassin formou o grupo islâmico Mujama al-Islamiya, que foi oficialmente reconhecido por Israel como uma instituição de caridade e depois, em 1979, como uma associação. Israel também apoiou a criação da Universidade Islâmica de Gaza, que considera agora um foco de militância”, confessou.

Em meados da década de 1980, Cohen chegou a escrever um relatório oficial aos seus superiores, advertindo-os para não brincarem com o fogo ao dividir a oposição palestina, apoiando os islâmicos contra os secularistas. “Eu sugiro concentrar os nossos esforços em encontrar maneiras de acabar com este monstro antes que esta realidade salte na nossa cara”, escreveu. 

O general de brigada Yitzhak Segev, que foi governador militar israelense em Gaza no início da década de 1980, também admitiu ao New York Times que ajudou a financiar o movimento islâmico como um “contrapeso” aos esquerdistas da OLP e do Fatah de Yasser Arafat, que sempre se referiu ao Hamas como “uma criatura de Israel”. O general confessou: “O governo israelense me deu um orçamento. E o governo militar o deu às mesquitas”.

ESFORÇO Dez anos depois dos Acordos de Oslo, que selaram o fim dashostilidades entre palestinos e israelenses, Abbas e Sharon se encontraram

O Mujama al-Islamiya de Yassin iria se tornar depois o Hamas — e passaria de uma instituição de caridade para a ponta de lança de um grupo radical militar e político — um “grupo terrorista” aos olhos de Israel. Os israelenses prenderam Yassin em 1984, condenando-o uma pena de 12 anos após a descoberta de esconderijos de armas. Mas naquela altura, o mal já estava feito.

Por ironia do destino, Israel acabou mais tarde por reconhecer formalmente a legitimidade da OLP. E aceitou sentar-se com Arafat à mesa de negociações para os Acordos de Oslo de 1993. Por sua vez, o Hamas recusou-se desde então a aceitar Israel ou renunciar à violência. E, para desespero da Autoridade Nacional Palestina, tornou-se a principal instituição da resistência à ocupação israelense.

Yassin acabou por morrer num ataque aéreo de Israel em 2004. Em 2007, depois de uma vitória eleitoral do Hamas, que irritou tanto o Ocidente quanto o Fatah, o grupo islâmico assumiu o controle de Gaza, dando origem a vários bloqueios, ataques e constantes incursões dos israelenses no território.

Agora, a crise desencadeada pelo ataque do Hamas, com homens fortemente armados que invadiu festas e kibutz, matando indiscriminadamente  e sequestrando pessoas e soldados para fazê-los de refém, mostra-se intolerável e insustentável a curto prazo. Na quinta-feira, 12, uma repórter da Al Jazeera publicou um longo texto relatando o que estava vivendo em Gaza. Maram Humaid lamentou: “Enquanto escrevo isso, não acredito mais que sairemos disso vivos”. 

O relato dela é sombrio: “Na quarta-feira (11), acordei do meu sono esporádico ao som do bombardeio que continuou sem parar nas últimas quatro noites. Cada dia acordamos em uma casa diferente. Mas todos os dias os sons e cheiros que acordamos são os mesmos. Mas para onde vamos a seguir? Não há uma casa em Gaza que seja segura”. •

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