Em discurso na Assembléia Geral das Nações Unidas, Lula alerta que o mundo está num caminho perigoso, com o aumento da fome, a urgência das mudanças climáticas e a imperiosa necessidade dos líderes das nações negociarem a paz. Para isso, diz o presidente brasileiro, é urgente mudar a governança global e ampliar a participação dos emergentes

Foto: Ricardo Stuckert

O Brasil retoma seu protagonismo internacional, exercitando o soft power depois de quatro anos de negacionismo, extremismo e 700 mil mortes por Covid-19, além do rebaixamento democrático decorrente do Golpe de 2016 que retirou Dilma Rousseff da Presidência da República sem que ela tivesse cometido crime de responsabilidade. 

Na última semana, o mundo parou para ouvir o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que voltou a alertar que a desigualdade crescente está comprometendo o futuro da humanidade e que estamos à beira do precipício em razão do agravamento da crise climática. Ele pediu a união global contra desigualdade, fome e mudanças climáticas.

“Há vinte anos, ocupei esta tribuna pela primeira vez. E disse, naquele 23 de setembro de 2003: Que minhas primeiras palavras diante deste Parlamento Mundial sejam de confiança na capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivência. Volto hoje para dizer que mantenho minha inabalável confiança na humanidade”, afirmou. “Naquela época, o mundo ainda não havia se dado conta da gravidade da crise climática. Hoje, ela bate às nossas portas, destrói nossas casas, nossas cidades, nossos países, mata e impõe perdas e sofrimentos a nossos irmãos, sobretudo os mais pobres”.

Lula foi enfático: “A fome, tema central da minha fala neste Parlamento Mundial 20 anos atrás, atinge hoje 735 milhões de seres humanos, que vão dormir esta noite sem saber se terão o que comer amanhã. O mundo está cada vez mais desigual. Os 10 maiores bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade”. As palavras calaram fundo no auditório da ONU, que interrompeu durante sete vezes o presidente para aplaudi-lo pelo discurso certeiro. Afinal, o discurso de Lula estava em sintonia com o que o tem apontado a própria ONU. Na mesma terça-feira, 19, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, também foi enfático ao denunciar a desigualdade como uma mancha que insiste em interferir no desenvolvimento das nações. “No nosso mundo de abundância, a fome é uma mancha chocante na humanidade e uma violação épica dos direitos humanos. É uma acusação para cada um de nós que milhões de pessoas estejam passando fome nos dias de hoje”, discursou. 

Jornais estrangeiros, como o britânico The Guardian, alardearam o discurso histórico do líder da esquerda brasileira. ‘Os brasileiros aplaudem o retorno de Lula à diplomacia enquanto ele se dirige à assembleia geral da ONU’, destacou. “Luiz Inácio Lula da Silva  subiu à tribuna em Nova York para proclamar um novo amanhecer após o mandato caótico do seu antecessor de extrema-direita, Jair Bolsonaro”, escreveu o correspondente Tom Phillips. A comparação com o antecessor não podia faltar: “ Bolsonaro usou notoriamente as suas aparições na ONU para promover soluções falsas contra a Covid, atacar jornalistas e vender distorções e mentiras – comportamento que ajudou a consolidar a reputação do populista como um pária internacional”.

A agência de notícias Associated Press também repercutiu o discurso do líder nacional: ‘Lula do Brasil apresenta sua nação – e a si mesmo – como novo líder para o Sul Global’. Segundo o jornalista David Biller, da AP, “a narrativa emergente do envolvimento ativo do Brasil nos assuntos mundiais também serve para contrastá-lo com Bolsonaro, que não era visto como um defensor confiável do multilateralismo”.

No discurso de 20 minutos proferido perante a comunidade internacional — leia a íntegra do discurso ainda nesta edição —, Lula fez críticas e cobranças aos países ricos e ao sistema de governança global, dos quais, segundo ele, falta vontade política para trabalhar por um mundo mais justo e igualitário. “O destino de cada criança que nasce neste planeta parece traçado ainda no ventre de sua mãe”, afirmou. “É preciso, antes de tudo, vencer a resignação, que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno natural. Para vencer a desigualdade, falta vontade política daqueles que governam o mundo”.

O presidente reafirmou que o Brasil, ao assumir a Presidência do G20 em dezembro, terá como pauta principal o combate a todas as formas de desigualdade. “Não mediremos esforços para colocar no centro da agenda internacional o combate às desigualdades em todas as suas dimensões”, disse. “Sob o lema Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável, a presidência brasileira vai articular inclusão social e combate à fome; desenvolvimento sustentável e reforma das instituições de governança global”.

Lula destacou que a desigualdade cria ou amplia a maior parte das crises que o mundo enfrenta na atualidade. Isso exige dos governos mundiais uma atuação firme, para não só para conter as graves consequências, mas para poder atingir as raízes dos problemas. “A comunidade internacional está mergulhada em um turbilhão de crises múltiplas e simultâneas: a pandemia da Covid-19, a crise climática e a insegurança alimentar e energética ampliadas por crescentes tensões geopolíticas. O racismo, a intolerância e a xenofobia se alastraram, incentivadas por novas tecnologias criadas supostamente para nos aproximar”, disse.

Criada pela ONU para determinar objetivos de desenvolvimento sustentável para o planeta, a Agenda 2030 seria o principal instrumento para aliviar essas pressões, mas, para o presidente, os objetivos para o fim da década dificilmente serão cumpridos. “O imperativo moral e político de erradicar a pobreza e acabar com a fome parece estar anestesiado. Nesses sete anos que nos restam, a redução das desigualdades dentro dos países e entre eles deveria se tornar o objetivo-síntese da Agenda 2030”, declarou.

Lula também destacou que as mudanças no clima precisam ser enfrentadas coletivamente, mas que os países industrializados precisam cumprir com sua responsabilidade histórica e material. “Os países ricos cresceram baseados em um modelo com altas taxas de emissões de gases danosos ao clima. A emergência climática torna urgente uma correção de rumos e a implementação do que já foi acordado. Não é por outra razão que falamos em responsabilidades comuns, mas diferenciadas. São as populações vulneráveis do Sul Global as mais afetadas pelas perdas e danos causados pela mudança do clima. Os 10% mais ricos da população mundial são responsáveis por quase a metade de todo o carbono lançado na atmosfera. Nós, países em desenvolvimento, não queremos repetir esse modelo”, disse o presidente.

Lula ainda criticou os países ricos por não cumprirem acordos climáticos. “A promessa de destinar US$ 100 bilhões anualmente para os países em desenvolvimento permanece apenas isso, uma promessa. Hoje esse valor seria insuficiente para uma demanda que já chega à casa dos trilhões de dólares”, lamentou. 

A transição energética ocupa um lugar importante, por possibilitar que formas de geração não renováveis e geradoras de poluição possam ser substituídas por fontes renováveis. Como vem fazendo ao longo do ano nos eventos internacionais, Lula destacou que o Brasil é um exemplo mundial na produção de energia limpa.

“No Brasil, já provamos uma vez e vamos provar de novo que um modelo socialmente justo e ambientalmente sustentável é possível. Estamos na vanguarda da transição energética, e nossa matriz já é uma das mais limpas do mundo. 87% da nossa energia elétrica provem de fontes limpas e renováveis. A geração de energia solar, eólica, biomassa, etanol e biodiesel cresce a cada ano. É enorme o potencial de produção de hidrogênio verde. Com o Plano de Transformação Ecológica, apostaremos na industrialização e infraestrutura sustentáveis”, ressaltou.

Ainda na questão climática e ambiental, Lula citou a iniciativa de reunir, no mês passado, representantes de todos os países amazônicos na Cúpula da Amazônia, numa perspectiva de buscar um alinhamento e de criar uma nova agenda de colaboração entre os países que fazem parte daquele bioma. “Retomamos uma robusta e renovada agenda amazônica, com ações de fiscalização e combate a crimes ambientais. Ao longo dos últimos oito meses, o desmatamento na Amazônia brasileira já foi reduzido em 48%”, apontou. 

O discurso tratou de ressaltar a posição soberana do Brasil quanto à sua territorialidade, mas que o compromisso do governo em preservar suas florestas vai para além das palavras e tem sido demonstrado com ações. “O mundo inteiro sempre falou da Amazônia. Agora, a Amazônia está falando por si. Sediamos há um mês a Cúpula de Belém, no coração da Amazônia, e lançamos nova agenda de colaboração entre os países que fazem parte daquele bioma. Somos 50 milhões de sul-americanos amazônidas, cujo futuro depende da ação decisiva e coordenada dos países que detêm soberania sobre os territórios da região”, ressaltou. •

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