No aniversário do golpe de Pinochet, o presidente Gabriel Boric sai em defesa da democracia, 50 anos após o golpe de Pinochet. A festa emocionante lembra os horrores da ditadura feroz instaurada em 11 de setembro de 1973

50 anos depois, a ferida aberta no Chile

Num país ainda convulsionado pelos horrores de uma ditadura sangrenta e cruel, o presidente do Chile, Gabriel Boric, decidiu promover a ampla de defesa da democracia, justamente quando o país vive o 50º aniversário do golpe de Estado executado pelo general Augusto Pinochet. Foram 17 anos de mortes e da liberdade sufocada.

Boric fez um discurso do lado de fora do palácio onde Salvador Allende foi derrubado em 1973, inaugurando uma brutal ditadura militar. “Problemas com a democracia sempre podem ser resolvidos… e um golpe de Estado nunca é justificável — nem pode colocar em risco os direitos humanos daqueles que pensam diferente”, disse o presidente, em um discurso fora de La Moneda, o palácio presidencial bombardeado por jatos Hawker Hunter de construção britânica durante o golpe de 1973.

Salvador Allende, o presidente de esquerda eleito democraticamente e derrubado pelos militares, fez um discurso final à nação através da rádio antes de se matar em seu escritório no palácio enquanto os tanques se fechavam. Antes da restauração da democracia em 1990 no Chile, mais de 40 mil pessoas se tornaram vítimas de tortura, prisão política, execução ou “desapareceram”.

“É hora de compensar essas ausências, corrigir as falhas, reparar os danos [e] nos projetar além da nossa dor”, disse Boric na segunda-feira. “Claro que havia uma alternativa!. E amanhã, quando passarmos por outra crise, sempre haverá uma alternativa que implica mais democracia, não menos”.

O aniversário do golpe vem em meio a um cenário sombrio para a democracia na América Latina, onde a pobreza e o crime ajudaram figuras populistas a ganhar um apoio político crescente. De acordo com a pesquisa Latinobarómetro 2023, as opiniões favoráveis da democracia estão em baixa. Entre os entrevistados da pesquisa, um terço discorda que a democracia seja o melhor sistema para o governo, apesar de seus problemas.

50 anos depois, a ferida aberta no Chile
SOLIDARIEDADE O primeiro-ministro de Portugal, Antonio Costa, o presidente Lopez-Obrador (México), Luiz Arce (Colombia), prestigiaram o ato realizado por Boric, acima ladeado por Ricardo Lagos e Michelle Bachelet

Na frente de La Moneda, a bandeira gigante que voa no saguão foi abaixada a meio mastro. O evento contou com a presença do presidente chileno, Gabriel Boric, dos ex-presidentes Ricardo Lagos (2000-2006), Michelle Bachelet (2006-2010, 2013-2017), de mandatários latino-americanos como Andrés Manuel López Obrador (México), Gustavo Petro (Colômbia), Luis Arce (Bolívia) e Luis Lacalle Pou (Uruguai), além de personalidades como o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, a líder das Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, e o juiz espanhol Baltasar Garzón, que condenou o ditador chileno Augusto Pinochet.

A senadora María Isabel Allende, filha de Salvador Allende, fez um discurso no ato. A parlamentar, que esteve ao lado do pai durante o bombardeio ao Palácio de La Moneda, ato mais simbólico do golpe de Estado, disse ser necessário recuperar a memória daquele “dia frio e cinza”, assim como homenagear os pouco mais de 40 homens e mulheres que “estiveram ao lado do meu pai enquanto as bombas caíam sobre o Palácio”.

“Fizeram um trabalho que foi muito além das suas responsabilidades, continuaram conosco mesmo depois de o presidente ter ordenado que fugissem para salvar suas vidas”, afirmou María Isabel Allende, que é militante do Partido Socialista — não confundir com a escritora Isabel Allende, que é sobrinha do ex-presidente. “A maioria dessas pessoas terminou tendo o mesmo fim trágico do meu pai. Morreram defendendo a democracia no Chile”.

A atmosfera no Chile tem sido tensa nos meses que antecederam a comemoração da democracia. O país segue fraturado por conta da extrema-direita que segue celebrando Pinochet e seu legado de horrores e morte, enquanto segue justificando o neoliberalismo. A Unión Demócrata Independiente, o partido de direita formado para defender o legado da ditadura — e um dos vários a se recusar a assinar um compromisso de defender a democracia — emitiu uma declaração dizendo que o golpe de Estado era “inevitável”.

E foi longe a culpar a “esquerda chilena” pela deposição do governo e a ascensão da ditadura militar. Como é habitual para o partido UDI, e alguns da direita chilena, a declaração evitou o uso do termo “ditadura” ou referência a um golpe de Estado.

No início da manhã de segunda-feira, Sergio Bobadilla, um congressista do partido, justificou o golpe, dizendo que “não havia outra saída”. O Chile não tem lei que penalize a negação, justificação, minimização ou celebração dos graves abusos dos direitos humanos perpetrados sob a ditadura.

50 anos depois, a ferida aberta no Chile
MEMÓRIAS DE DOR DA FILHA
A senadora María Isabel Allende, filha de Salvador Allende, discursou no Palácio de La Moneda. Ela disse ser necessário recuperar a memória daquele “dia frio e cinza”, assim como homenagear os 40 homens e mulheres que “estiveram ao lado do meu pai enquanto as bombas caíam sobre o Palácio”

Todos os quatro ex-presidentes do Chile que estão vivos — Michelle Bachelet e Ricardo Lagos, que participaram da cerimônia, e Eduardo Frei e Sebastián Piñera, que não participaram — assinaram a declaração de quatro pontos de Boric, que busca defender a democracia e garantir que os eventos de 50 anos atrás não se repitam nunca mais.

No domingo, 11, à noite, centenas de mulheres participaram de uma procissão à luz de velas ao redor de La Moneda cantando “¡Nunca más!” – nunca mais. No início do dia, em meio à tensão na véspera de um aniversário que muitas vezes é marcado por protestos, Boric participou de uma marcha pela Alameda, uma das principais avenidas pelo centro de Santiago, ao lado dos parentes de pessoas desaparecidas à força.

Manifestantes encapuzados atacaram partes da marcha e quebraram vidros ao redor do palácio presidencial. Outros incendiaram e atacaram sepulturas pertencentes àqueles ligados à ditadura no Cementerio General. Boric disse que “não se arrependeu por um segundo” de estar “do lado daqueles que sofreram” durante a marcha.

Em agosto, Boric lançou um plano para procurar os desaparecidos: a primeira vez que o estado chileno retomou a responsabilidade pela busca. Atualmente, 1.469 vítimas desaparecidas ainda não tiveram seu paradeiro conhecido. Apenas 307 foram encontrados desde que o Chile retornou à democracia em 1990.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) emitiu uma nota, lembrando a data e celebrando também a defesa da democracia. “Este 11 de setembro, que marca os 50 anos do golpe militar no Chile, que depôs o presidente Salvador Allende (1970-1973) e inaugurou uma das ditaduras mais violentas da região (1973-1990), é dia de celebrar a democracia e repudiar qualquer tipo de golpe — no Chile, no Brasil, na América do Sul, no mundo”, disse. “Mais do que recordar os 50 anos do golpe militar no Chile e da morte do Salvador Allende, hoje é dia de reafirmarmos a democracia como valor essencial para os seres humanos”.

Lula não pode participar da solenidade em Santiago que rememorou o cinquentenário do golpe. O governo brasileiro foi representado pelos ministros Silvio Almeida (Direitos Humanos) e Flavio Dino (Justiça). •