O espetáculo de balé concebido por Marika Gidali e Décio Otero e montado pelo Stagium driblou a censura militar em apresentação histórica em 1977

Em julho de 1977, o espetáculo de balé “Kuarup, ou a Questão do Índio” fez sucesso de público e crítica no sisudo Theatro Municipal de São Paulo. A apresentação do Stagium, uma companhia fundada havia apenas seis anos, aconteceu em um cenário singular e um adverso.

A ditadura militar praticava censura sobre quaisquer manifestações artísticas que destoassem da exaltação aos feitos do regime. Aquela criação do Stagium não só ousava embalar os movimentos de seus bailarinos com a denúncia da violência sobre os povos indígenas pós-1500, mas ainda fazia sucesso com uma concepção artística que colocava no centro do palco a temática brasileira, com música e coreografia também nacionais. Até então, o balé encenado naquele tipo de palco era dominado por criações e modelos estrangeiros.

Para marcar essa tentativa de brasilidade em meio aos formalismos vindos de fora, a estreia de Kuarup foi precedida pela leitura do “Manifesto Antropofágico”, escrito de Oswald de Andrade e que havia entronizado a Semana de Arte Moderna, 55 anos antes.

A provocação à ditadura fazia parte da trajetória do Stagium, uma companhia privada, sem patrocínio estatal, fundada por dois bailarinos de formação clássica e vivência em balés no exterior, o casal Marika Gidali e Décio Otero. Em 1975, já haviam coreografado e exibido com sucesso “Quebradas do Mundaréu”, balé totalmente inspirado na peça “Navalha na Carne”, do então maldito e censurado Plínio Marcos.

Naquele momento, as sapatilhas do Stagium mantinham suas piruetas enquanto outras companhias lastreadas na palavra, tais como o Oficina e o Arena, sofriam mais profundamente os ataques da censura. A empreitada de “Kuarup” destacou outra das formas de resistência, artística e financeira do Stagium. Após quatro apresentações com casa lotada no Municipal de São Paulo, o espetáculo rodou o país, encenado em todas as capitais.

O Stagium iniciava uma aproximação com o público que se deu em espetáculos sobre o convés de uma barca no São Francisco, em praças, feiras, igrejas e presídios. A crítica especializada, à época, louvava a resistência ao arbítrio e a criação de uma dança clássica com cores brasileiras.

O grupo continua ativo, assim como o casal fundador. Décio, 90 anos recém-completados em julho, e Marika, húngara naturalizada brasileira, aos 86, criaram e dirigem “Cordas do Coração”, que mescla música de Bach e viola caipira para contar a história do filósofo e músico alemão Albert Schweitzer. • Isaías Dalle

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