A canção que emocionou o país
Na luta pela anistia ampla, geral e irrestrita, em 1979 Elis Regina mobiliza o Brasil ao cantar sobre a ‘esperança equilibrista’, de João Bosco e Aldir Blanc. Uma greve de fome de penitenciários desperta a luta em favor da recuperação da democracia brasileira
Foi o mais longo protesto desse tipo no Brasil, mobilizando a atenção da sociedade e dando repercussão internacional à causa da anistia ampla, geral e irrestrita. O projeto limitado do regime militar chocou-se com um movimento nascido na resistência civil que vinha crescendo e sensibilizando a sociedade brasileira.
Em 22 de julho de 1979, 14 presos políticos da penitenciária Frei Caneca, no Rio, entram em greve de fome pela ampliação do projeto de anistia parcial anunciado pelo general João Baptista Figueiredo, o último ditador no regime militar. A greve receberia a adesão dos presos de São Paulo, Recife, Fortaleza, Salvador e Natal, envolvendo os 37 que cumpriam pena no país. Durou 32 dias, até a votação do projeto no Congresso Nacional em agosto.
A campanha pela anistia foi um capítulo especial na luta contra a ditadura, porque dizia respeito a pessoas que haviam sofrido diretamente a brutalidade da repressão: os que sofreram a perseguição, a tortura e as condições desumanas das cadeias; os que viram companheiros serem assassinados ou destruídos psicologicamente; os que perderam a profissão, que interromperam carreiras; e os que tiveram de deixar o país e recomeçar a vida em lugares distantes. A causa dizia respeito também às famílias dos milhares de presos, perseguidos e exilados.
Em 1979, o caráter humano da anistia foi retratado com brilho e sensibilidade na canção “O Bêbado e a Equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, gravada por Elis Regina, uma das mais importantes cantoras da MPB. A música “estourou” nas emissoras de rádio, o grande meio de divulgação musical naquele tempo. O samba em ritmo lento cita personagens reais:
“Meu Brasil que sonha
Com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora a nossa pátria, mãe gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil”
O “irmão do Henfil” era o ex-dirigente da Ação Popular Herbert de Souza, o Betinho, então exilado no Canadá. “Marias” fazia referência a Maria de Souza, mãe de Betinho e Henfil, famoso cartunista e escritor. “Clarices” homenageava Clarice Herzog, militante da anistia e viúva do jornalista Vladimir Herzog, assassinado sob tortura no DOI-Codi de São Paulo, em 1975. A canção se encerra enaltecendo a “esperança equilibrista”, delicada metáfora sobre a luta desigual contra a ditadura.
“Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem de continuar”
Os presos em greve de fome receberam visitas de artistas famosos, líderes sindicais e dirigentes políticos. A romaria aos presídios foi coordenada pelo senador Teotônio Vilela (MDB-AL), presidente da Comissão Mista do Congresso que analisava o projeto do governo. Ele percorreu o país defendendo a anistia para todos. “Não encontrei nenhum perigoso terrorista na prisão. Encontrei jovens idealistas que jogaram suas vidas na luta pela liberdade em nosso país”, disse Teotônio.
A cada dia de greve, os presos recebiam solidariedade em atos públicos por todo o país. A causa era divulgada em cartazes e panfletos distribuídos nas ruas. Em 14 de agosto, uma passeata pela anistia atraiu 20 mil pessoas no Rio. Em 21 de agosto, véspera da votação do projeto, manifestações ocorreram nas principais cidades, apesar da proibição da polícia em Belo Horizonte, Brasília e outras. •