As preocupações de Moscou com a Ucrânia devem ‘ser levadas em conta’, diz o principal assessor de política externa de Lula. Celso Amorim adverte que a posição dos líderes ocidentais corre o risco de provocar um conflito mais amplo

O Ocidente deve levar em conta as preocupações de segurança do presidente russo Vladimir Putin e parar o deslizamento em direção à paz de vencedores ao estilo de Versalhes na Ucrânia. Esta é a posição do principal conselheiro de política externa do Brasil. Ex-ministro das Relações Exteriores e atual assessor de assuntos internacionais do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Celso Amorim diz que a posição beligerante do Ocidente contra Moscou corre o risco de provocar um conflito mais amplo.

“Não queremos uma terceira guerra mundial. E mesmo que não tenhamos isso, não queremos uma nova guerra fria”, disse Amorim ao jornal Financial Times, em reportagem publicada na sexta-feira, 2. “Todas as preocupações dos países da região devem ser levadas em conta, se você quiser paz. A única outra alternativa é a vitória militar total contra a Rússia. Você sabe o que vem depois? Eu não”.

Embora o Brasil tenha condenado oficialmente a invasão em grande escala da Ucrânia por Moscou, Lula foi acusado de manter a “neutralidade pró-Russia”. Ele alega repetidamente que Kiev tem igual responsabilidade a Moscou pelo conflito e acusou Washington de “encorajar” a violência. Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, visitou Brasília no mês passado.

Amorim lembra que a segurança nacional é uma das principais “preocupações” de Moscou, referindo-se às queixas de “cercamento” pelas potências ocidentais e pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). “Não podemos julgar a situação nos últimos um ano e meio. Esta é uma situação de décadas. [A Rússia tem] preocupações que precisam ser levadas em conta. Isso não é culpa da Ucrânia. A Ucrânia é uma vítima, uma vítima dos remanescentes da guerra fria”.

Desde que retornou à Presidência para um terceiro mandato em janeiro, Lula procurou reforçar a posição internacional do Brasil e reafirmar o status tradicional do país como uma democracia não alinhada. Ele tem sido um defensor franco de um “clube da paz” de nações para discutir o fim da guerra na Ucrânia.

Na reunião do G7 em Hiroshima no início deste mês, uma reunião entre Lula e Volodymyr Zelenskyy foi cancelada depois que o presidente ucraniano se atrasou, de acordo com Brasília. Como outros países latino-americanos, o Brasil se recusou a enviar armas para a Ucrânia e negou um pedido da Alemanha para revender munição de tanque.

Quando Lula afirmou no mês passado que os EUA estavam “encorajando a guerra”, a Casa Branca acusou o líder do Brasil de “papaguear propaganda russa e chinesa”. Mas Amorim, que visitou Kiev e Moscou nas últimas semanas, disse que Brasília está preocupada com os esforços ocidentais percebidos para enfraquecer a Rússia, sugerindo que isso só provocaria um conflito maior.

“Lembro-me da situação na Alemanha após a primeira guerra mundial: o objetivo era enfraquecer a Alemanha no [Tratado de] Versalhes e sabemos aonde isso levou”, ressalta. O ex-ministro das Relações Exteriores nega que o legado do envolvimento dos EUA na América Latina durante a guerra fria tivesse colorido a visão de Lula sobre Washington, apontando as “boas relações” do Brasil com os EUA e que a segunda visita de estado do presidente foi a Washington.

Professor de política externa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Paulo Velasco disse ao Financial Times que a abordagem de Lula ao conflito na Ucrânia está de acordo com a diplomacia brasileira tradicional, que evita “posições extremas que poderiam comprometer os esforços para chegar a um entendimento”.

“O Brasil acredita que as sanções raramente são o melhor caminho”, disse. “Elas tendem a isolar o Estado se envolvendo em comportamento desviante, minando sua confiança na comunidade internacional, o que é essencial para chegar a acordos pacíficos”.

Ao jornal inglês, outros especialistas apontam que Brasília é motivada por preocupações mais pragmáticas, incluindo sua relação comercial com a Rússia. “Como a grande maioria dos países do sul global, o Brasil quer garantir que possa preservar seus laços comerciais com a Rússia. A Rússia tem sido uma amiga para todos os climas — de baixa intensidade, mas para todos os climas”, diz Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.

O comércio bilateral vale cerca de US$ 10 bilhões, com grandes quantidades de fertilizantes para o agronegócio em expansão do Brasil — que vale quase 30% do PIB — vindo da Rússia. A neutralidade do Brasil em relação à Rússia tem amplo apoio interpartidário e é um raro ponto de continuidade entre Lula e a presidência anterior, de Jair Bolsonaro, da extrema-direita. Pouco antes da invasão da Ucrânia no ano passado, Bolsonaro visitou Moscou para garantir suprimentos de fertilizantes.

Stuenkel acrescenta que nenhum dos países quer interromper suas relações dentro do grupo de nações que formam Brics, que também inclui China, Índia e África do Sul. “O não alinhamento é visto como uma aposta segura em um mundo onde a concorrência de grandes potências aumentará. Do ponto de vista brasileiro, a ascensão da China e o ressurgimento da Rússia não são realmente ruins… é por isso que [brasileiro] não tem interesse em se juntar a [uma] coalizão ocidental contra a Rússia”. •

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