A Mutante já nos faz falta
O Brasil perde a rainha do rock, a mais perfeita tradução da produção musical brasileira nas últimas cinco décadas. Rita Lee Jones, patrimônio nacional, sobe para o céu aos 75 anos de idade
Bia Abramo
Por vezes, a despedida de um artista faz revelar ainda mais a sua dimensão e importância. Rita Lee, que morreu na terça-feira, 9, está nessa categoria. Havia uma Rita para cada fã que se manifestou em público, para cada artista que lamentou sua partida, para cada pessoa que tentou de avaliar seu legado ou que simplesmente, no escurinho do seu quarto, da sua sala voltou a ouvir suas canções ou ler seus livros.
Cantora, compositora, letrista, Rita Lee Jones navegou pela história da música popular brasileira desde que despontou n’Os Mutantes com as armas do rock — ou do “roque enrow”, como preferia. A forma abrasileirada para designar sua escolha musical, falada com seu sotaque paulistano inconfundível ou grafada em uma de suas letras-manifesto, “Esse Tal de Roque Enrow”, diz muito sobre o lugar pelo qual Rita brigou e conquistou em sua carreira, iniciada ainda na década de 1960.
Era, de partida, o rock, o rock’n’roll, gênero mutante por si mesmo. Mas era rock tocado, composto e produzido neste país da periferia do capitalismo, o Brasil, mais especificamente na ainda distante e quase obscurecida cidade de São Paulo como locus de produção de música. Era também um conjunto de sonoridades estridentes, estrangeiras, a princípio alienadas e alienígenas das muitas outras que soavam ou eram classificadas como mais pertinentes ao solo em que vicejavam, como o samba, o baião, o forró, a bossa nova, o bolero.
Ainda, no rock, havia, como regra não-escrita, mas sobejamente praticada, uma proeminência masculina, uma linguagem e um imaginário de potência, habilidade e força reservado aos garotos como protagonistas e às garotas como coadjuvantes ou platéia.
Evidentemente, essa leitura dos desafios enfrentados pela artista só pode ser feita a posteriori e ainda não estavam todos postos quando Rita e os irmãos Arnaldo e Sérgio formaram um “conjunto”, como se dizia à época, na casa dos pais dos meninos no bairro da Pompéia. A história de como os irmãos Baptista e Rita Lee conceberam e formaram Os Mutantes, banda que trazia uma expertise para os instrumentos eletrificados e eletrônicos que invadiram a MPB a partir dos festivais da Record e uma compreensão do rock que superava em muito as aproximações derivativas da Jovem Guarda, está melhor mapeada e registrada na excelente biografia de Carlos Calado publicada em 1995.
Vale, no entanto, lembrar a brevidade do meteoro mutante: em 12 anos — entre 1966 e 1978 —, lançaram seis discos, mudaram de formação duas vezes e encerraram numa disputa dolorosa, ainda em 1972, que misturou o fim de um projeto de música e de um casamento, o de Rita e Arnaldo.
Expulsa dos Mutantes, Rita sairia sozinha do sítio de sua casa na Cantareira, onde Arnaldo, Sérgio, Liminha e Dinho, ou seja, “os caras” estavam fazendo experimentos na direção do rock progressivo e psicodélico espacial e declararam não haver lugar para ela, Rita, dada o fato de ela não ser virtuose em nenhum instrumento — os detalhes dessa separação abrupta estão parcialmente relatados por ela em sua autobiografia.
Ainda sob obrigação contratual de lançar um disco solo, Rita reuniria composições com Arnaldo e versões para o excelente “Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida”, espécie de disco-testamento d’Os Mutantes, na versão anárquica & de humor nonsense da parte feminina e escorraçada da banda, com requintes de crueldade machista.
Rita, no entanto, não se abateu para sempre. Formou uma dupla acústica, com pegada folk, com a cantora, compositora e guitarrista Lucinha Turnbull, as Cilibrinas do Éden. Apresentaram-se juntas no Phono 1973 — e ironicamente, logo depois de Os Mutantes, o que seria uma espécie de sentença de morte para a dupla, pois naquele início da década de 1970, não havia como uma dupla acústica e feminina de rock fazer frente à parede de sonzeira do ex-grupo de Rita.
Era preciso preparar a primeira grande guinada de sua carreira e, para isso, ela se juntou ao Tutti Frutti, do guitarrista Luis Sérgio Carlini e do baixista Lee Marcucci, com suas composições, e de Turnbull à tiracolo. A química entre o instrumental da dupla Carlini, Marcucci, mais a poética das composições de Rita & Lucinha resultaria num projeto sólido de rock pesado, com ecos dos temas da contracultura. A partir da parceria com o Tutti Frutti, que durou entre 1973 e 1978 e rendeu quatro discos, Rita se fixaria como o maior e mais popular nome do rock brasileiro.
Com uma capacidade enorme de comunicar e traduzir sentimentos de inadequação, da revolta juvenil difusa e do inconformismo naqueles anos duros e caretas da Ditadura, ela criou verdadeiros hinos — e aí há de se mencionar “Ovelha Negra”, “Mamãe Natureza”, “Esse Tal de Roque Enrow”, “Agora Só Falta Você”, canções cujas letras colaram como adesivos permanentes na sensibilidade de ouvintes.
Há que se mencionar que Rita, então já uma mulher chegando aos 30 anos, mesmo nas baladas mais românticas conseguia trazer para suas canções as mudanças da sexualidade e do comportamento afetivo das meninas e mulheres — “Um belo dia vou lhe telefonar/ Pra lhe dizer que aquele sonho cresceu/ No ar que eu respiro/ Eu sinto prazer/ De ser quem eu sou, de estar onde estou/ Agora só falta você, yeah, yeah”, em “Agora só falta você”.
Ao final dos anos 1970, a parceria musical e afetiva com Roberto de Carvalho, com quem teve o primeiro filho em 1977, cresceria a ponto de provocar uma outra grande mudança na carreira de Rita. Em 1978, ela se despede do Tutti Frutti e aí sim se firma como artista solo, com um primeiro álbum chamado simplesmente “Rita Lee”, em 1979.
É o disco em que se vê em primeiro plano os cabelos de um ruivo intenso e o perfil de Rita, mas é sobretudo o disco que ficou também conhecido por “Mania de Você”, devido ao enorme sucesso da faixa homônima.
Com uma pegada mais pop do que as pretensões hard rock do Tutti Frutti, o disco teria baladas românticas como “Doce Vampiro”, pop dançante como “Chega Mais” e até a parte dois da canção-provocação “Arrombou a festa”. Mas foi “Mania de Você”, um poema apaixonado, corporal, que se tornou hit instantâneo.
Nessa fase mais bem comportada (ou centrada) com Roberto Carvalho, que chegou a decepcionar aqueles que preferiam a Rita roqueira, ovelha negra, com “cara de bandida”, ela colecionaria sucessos atrás de sucessos. Novamente, ela era a nova novidade da MPB. As relações de amizades e parcerias de Rita com o time número um da MPB vinham de longe, da era dos festivais televisivos, quando apresentaram canções vencedoras de festival com Gilberto Gil (“Domingo no Parque”) e Tom Zé, e foram convidados a participar do “Tropicália ou Panis Et Circenses”.
Em 1977, Gil & Rita, na mesma sintonia de descoberta do poder dançante do pop brasileiro, gravam um LP inteiro em parceria, “Refestança”. Numa letra paródica, “Arrombou a Festa”, Rita Lee faria ao mesmo tempo críticas agudas e implacáveis do estado das coisas na MPB e uma espécie de profecia do que viria nos anos 1980.
No refrão, ela anuncia: “Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu/ Com a música popular brasileira?/ Todos falam sério, todos eles levam a sério/ Mas esse sério me parece brincadeira” para em seguida citar explicitamente o que lhe parece, por assim dizer, fora do eixo: a invasão de um certo brega popularesco — “Benito lá de Paula com o amigo Charlie Brown/ Revive em nosso tempo o velho e chato Simonal” — e a certa acomodação dos grandes astros — “Dez anos e Roberto não mudou de profissão/ Na festa de arromba ainda está com seu carrão”.
A canção ainda alfinetava:“E o mano Caetano tá pra lá de Teerã/ De olho no sucesso da boutique da irmã”. Escrita em 1977, causou muita polêmica indignada, mas tanta que Rita não se fez de rogada e ainda emplacou a segunda parte no disco solo de 1979: “Quando a gente fala mal/ A turma toda cai de pau/ Dizendo que esse papo é/ Besteira”.
À parte a justiça ou injustiça das alfinetadas, o fato é que Rita diagnosticou com precisão o que seria a tônica da década de 1980 das grande gravadoras. Um certo cansaço criativo da “grande” MPB, espremida entre a produção de hits e agenda de shows e a produção pasteurizante dos discos. E a emergência de uma música mais popular, nas rádios e na TV, com pouca ou nenhuma relação com os gêneros ou estilos considerados de “bom gosto”.
Rita, nessa encruzilhada, optou mais conscientemente por um projeto cada dia mais pop, cada dia mais diva, cada dia sublinhando mais performance roqueira. Mais ainda do que antes, entrou num personagem de si mesmo, da roqueira irreverente, mas romântica, da mulher madura que falava abertamente sobre sua sexualidade e que conservava a energia juvenil da provocação e do confronto. Em Rita, artista de muita “imensidão” como definiu o amigo Gilberto Gil, cabia tudo isso e muito mais.
A versatilidade musical da artista espraiou para outras formas de expressão. Fez pontas como atriz em novelas e programas cômicos a partir da década de 1980, como “Top Model” (1989) e “Vamp” (1991) e “Sai de Baixo” (1997). Na MTV, foi apresentadora de um programa só dela, o “TVleezão”, e no GNT, apresentou um talk show em 2005, “Madame Lee”. No rádio, ainda ao final do anos 1980, após o rompimento de seu contrato com a Som Livre, em 1986, dedicou-se — com a parceria do amigo escritor Antonio Bivar — a um programa de rádio chamado Radioamador, na 89 FM, para o qual adotou o pseudônimo de Lita Ree, na melhor tradição dos trocadilhos e jogos de palavras de suas letras.
Não se pode deixar de mencionar que sua intimidade com a língua portuguesa também extrapolou as letras de música: escreveu cinco livros infantis, um de contos (“Dropz”, 1995), a primeira parte de uma autobiografia em 2016 e uma segunda parte que será publicada ainda em maio de 2023 — ou ainda, como preferia a autora, uma “outra” autobiografia.
Rita adentrou nos anos 2000 ainda com o gás de quem, ao mesmo tempo, cada vez mais vivia para seus projetos profissionais múltiplos, a música e os shows sempre à frente e, ao mesmo tempo, também caseira e quase reclusa, na companhia do marido Roberto Carvalho, os três filhos — um deles, também músico — e animais.
Seu último disco, “Reza” é de 2012, ano em que anunciou sua aposentadoria das grandes turnês e dos palcos. Ainda assim, em 25 de janeiro de 2013, data do aniversário de 259 anos da fundação de São Paulo, ela se apresentaria no Anhangabaú, ocasião em que fez sua declaração de amor à sua cidade natal: “Eu acho que São Paulo é a ovelha negra do Brasil. (…) Já fiz tanto por São Paulo. Já ameacei até me mudar. Mas São Paulo não para. É isso que é do caralho, não paramos. Na boa, se não fosse São Paulo, o Brasil seria menos. Daqui não saio, daqui ninguém me tira”.
Santa Rita de Sampa, a Padroeira das Ovelhas Negras, realmente não saiu mais da cidade caótica, diversa, frenética cujo imaginário ela ajudou a construir e cujos manias e símbolos, do sotaque às gírias, do amor ao time de futebol com a maior torcida de São Paulo, o Corinthians, ela cultivou em toda sua carreira. Seu velório no Planetário do parque Ibirapuera, lugar que frequentava na infância, reuniu na última quarta-feira mais de 10 mil pessoas que foram ali prestar sua última homenagem.
Evoé, Rita Lee. •