Responsável por alguns dos filmes emblemáticos e de sucesso de público no país, Mariza Leão divide sua visão dos problemas que atacam o audiovisual brasileiro. Ela explica as dificuldades da produção e principalmente da exibição do cinema nacional

Bia Abramo e Guto Alves

Eu sou uma militante do audiovisual”. É assim que Mariza Leão, produtora e sócia da Morena Filmes, se apresentou para a entrevista que concedeu à revista Focus. Responsável por filmes que marcaram a história recente do cinema brasileiro, como o “O Homem da Capa Preta”, “Lamarca” (ambos de Sérgio Rezende, 1986), e “Nunca Fomos Tão Felizes” (dirigido por Murilo Sales) e grandes sucessos de bilheteria, como  “De Pernas Pro Ar 1, 2 e 3” ( Roberto Santucci) e “Meu Passado Me Condena 1 e 2”, Mariza também foi a primeira diretora da Riofilme e presidente do Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual (Sicav). Ou seja, toda essa atividade, diretamente ligada à  produção e exibição de audiovisual ou mais indiretamente via orgãos públicos e associações da categoria, justifica plenamente a autodefinição com a qual abriu a entrevista.

Como se isso não bastasse, foi Mariza quem protagonizou uma reação em bloco de diretores e produtores de audiovisual. Em abril de 2019, com o fim da cota de tela, que havia sido modificada e reduzida ainda no governo Temer e não havia sido assinada pelo então presidente Jair Bolsonaro,  entre outras  regras de controle do setor criadas pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) que não estavam mais em vigor, a estreia de  “Vingadores: Ultimato” ocupou mais de 2.700 das 3.300 salas do circuito cinematográfico, fazendo com que “De Pernas Pro Ar 3”, com mais de 1 milhão de ingressos vendidos em duas semanas, perdesse salas (de 524 para 484) e sessões do circuito em 132 salas, com apenas uma sessão. À época, Mariza classificaria o efeito arrasa-quarteirão da produção hollywoodiana como “uma perversidade do ponto de vista cultural e econômico”.

Focus Brasil conversou com a produtora justamente em um momento em que essa situação se repete, quatro anos depois, com dois filmes ocupando 80% das salas de cinema.  Na imprensa, os cineastas, gestores e a crítica especializada, novamente, apontaram o problema de ter o já pequeno circuito de cinemas dividido entre duas produções norte-americanas  e voltaram a cobrar medidas para o setor, entre elas a cota de tela. “A cota de tela tem que estar integrada dentro de um projeto de meta. Me assusta muito, talvez porque já estou uma mulher madura, essa alegria de possuir o recurso para produzir. Eu tenho essa alegria, mas ela precisa ser acompanhada de uma responsabilidade de que eu vou devolver à sociedade o diálogo com aquelas obras”, afirma Mariza. A seguir, leia os principais trechos da entrevista.

Focus Brasil — Estamos novamente numa situação crítica do cinema brasileiro, semelhante àquela que você enfrentou em 2019, com dois blockbusters, “Barbie” e “Oppenheimer” ocupando 80% das salas de cinema do país. O que o Ministério da Cultura já apresentou nesse sentido e o que ainda falta, na sua opinião?

Mariza Leão — Eu acho que ainda não foi feito nada. O governo Lula tem seis meses e esse ministério é numa casa abandonada e em ruínas. E, naturalmente, tem um tempo de se organizar, somado à estruturação de um ministério que não tinha condições de operar porque não operava. Operava através daqueles psicopatas que estavam lá. O que me chama a atenção é o seguinte: e a questão da cota de tela? Eu tenho a brincadeira comigo mesma de que, quando eu morrer, eu queria que estivesse lá no meu epitáfio, lá no mármore: “aqui jaz uma mulher que detestava o gerúndio”. O gerúndio é o grande inimigo de tudo. “Estamos fazendo”, “processando”, “pensando” e as coisas não andam, né? A cota de tela é que é o assunto. Primeiro que saturou. Se ela é uma questão objetiva, a MP 2228/2001 venceu em 2021 quando o ex-presidente Temer e o seu ministro Sá Leitão não renovaram a cota de tela, criando um vácuo. E agora precisa novamente ter uma legislação. Existem projetos na Câmara tratando desse assunto. Só que a cota de tela tal como concebida lá atrás, era uma cota por dias e por sessões. Isso não cabe mais. A programação digital é por sessão e não por dias. Antes você tinha tantos dias, aí um filme entrava e ficava aquela semana. Agora não, a programação é por sessão. É um filme 11h30, um filme às 3h da tarde, outro às 7h da noite e você tem que regular por sessão. Nessa regulação por sessão, eu tenho três mantras que me guiam:  o primeiro é que qualquer filme brasileiro que estiver na semana de lançamento, obrigatoriamente, tem que ter 50% de sua programação em horários nobres. Como a gente está vendo, os filmes brasileiros são lançados às 11h30 da manhã, às 14h, sem nenhuma sessão noturna. Isso passa uma falsa impressão de fracasso, de não aderência do público brasileiro aos filmes. Exemplo prático: o filme que está sendo exibido no Aricanduva Sala 8, na sessão das 16h. Aquela sala tem uma performance certa. Disso se tem a média da sala, da sessão. Se um filme brasileiro que estiver naquela sessão, naquela sala, repetir a performance daquela sala, ele não pode ser retirado. Então tem que ser por sessão, tem que voltar a lei da dobra e, um último mantra, essa questão de você ter uma proeminência na publicidade. Os investimentos em publicidade com o mundo digital são brutais. Os nossos lançamentos precisam ser alavancados com investimento em divulgação, porque se o sujeito não souber que o filme tal está sendo exibido, como é que ele vai se motivar para assistir aquele filme? O investimento em publicidade é tão importante quanto em produção.

— Em 2020, você disse algo que nos chamou atenção: “Nós não somos conhecidos lá fora por vender soja, mas pela nossa cultura”, que é o que realmente nos define, mas não é o que recebe a atenção de uma verdadeira vocação econômica. Como você avalia esse comportamento? Por que ignoram tanto esforço e a cultura tem que ser de resistência e precariedade sempre?

— Porque não é uma cultura, abuso dizer, não é uma cultura na Câmara, não é uma cultura no Senado, não é uma cultura nos governos municipais, estaduais, federal, do significado real da cultura. Inclusive do ponto de vista econômico. A gente tem que repetir todo dia o quanto que a gente contribui para o PIB, quanto que a gente paga de imposto, quanto que o que a gente gera de emprego. E parece que têm um ouvido de louco. E não, não registram isso. É como as críticas aos recursos de fomento. As pessoas acham que aquele fomento vai para o bolso do proponente escolhido e que ele vai comprar um carro, vai comprar uma casa. É proposital. Há uma boçalidade no entendimento de cultura. Você pega a Coreia do Sul, como exemplo. O país não fez uma política de fomento, com tantos bilhões aqui e ali. É um todo, é um projeto, primeiro, de restrição da presença do filme americano. Segundo, de um investimento integrado na produção, na obra, na divulgação, na internacionalização daquela obra. É um projeto, não é o fulano ou ciclano, não sou eu. Por exemplo, o Brasil agora a gente tem mais de 1 bilhão para investir no audiovisual. Eu vou entrar um tema muito polêmico, tá? Essa é uma opinião minha. Mas o recurso da lei Paulo Gustavo vai ser R$ 2 bilhões. Alguém está falando sobre qual é a meta que a gente pode aferir daqui a algum tempo com esse investimento? Onde a gente quer chegar? É só no fazer? Produzir e saltar de 200 filmes por ano, a 300? É só isso que se pensa? Qual é a meta de ocupação do mercado brasileiro? Você poderia ter. Eu tenho R$ 2 bilhões, então é o seguinte: eu tenho que conseguir sair desse medíocre um dígito de ocupação no cinema para uma ocupação que nós já tivemos anteriormente. Mas para isso acontecer, é um conjunto de coisas. A cota de tela tem que estar integrada dentro de um projeto de meta. Me assusta muito, talvez porque já estou uma mulher madura, a alegria de possuir o recurso para produzir. Eu tenho essa alegria, mas ela precisa ser acompanhada de uma responsabilidade de que eu vou devolver à sociedade o diálogo com aquelas obras. E para isso não é só a cota de tela, é investimento em divulgação, é hoje. A gente sabe perfeitamente bem que não é só a sala de cinema que ocupa o lugar de consumo. Por exemplo, quando eu vejo o Lula. Ele tem um entendimento da questão cultural. Ele tem isso desde sempre. O Lula se refere à cultura como uma atividade que tem todos os, digamos, as suas características sociopolíticas, culturais e ao mesmo tempo, econômicas. Aí você vai ao Congresso para aprovar uma coisa, mas o Congresso, em geral, não está tão interessado nesse tema, né?

— Um dos argumentos do mercado é que a produção nacional não compete bem termos de qualidade técnica e até mesmo no sentido dos conteúdos, das narrativas. E parte da imprensa concorda. Como é que se desmonta essa falácia absurda?

— Você quer maior competição do que é a exibição de uma obra brasileira no exterior, que tem um bilhão de obras competindo com a sua? Por que que as obras brasileiras estão tendo relevância não só no Brasil, mas também fora do Brasil? Eu vou te dar um exemplo. Quando a série “Todo dia ou a mesma noite” (Netflix) sobre a Boate Kiss foi lançada em janeiro desse ano, ela ficou em primeiro lugar no Brasil durante semanas e em sexto lugar no mundo. Isso desdiz completa e totalmente a ideia de que nós não temos qualidade. Se a minha obra audiovisual, que foi feita com a mão de obra local, é capaz de gerar esse resultado, esse argumento é falso. É de má-fé. Vou te dar um outro exemplo importante: quando os chineses vêm ao Brasil e começam a produzir aqui, eles encontram uma mão de obra muito competente, muito talentosa, capaz, digamos, de absorver os investimentos que eles estão fazendo. Se a nossa mão de obra técnica, artística, fosse medíocre, eles provavelmente não investiriam aqui. A mão de obra qualificada brasileira é excepcional. Ela tem o reconhecimento, falando mais do filme para sala, em festivais internacionais ao longo de décadas. E ela tem o reconhecimento também do público. Quantos campeões de bilheteria nós fizemos competindo com a monocultura do cinema americano? Agora, se o meu filme for exibido às 11h30 da manhã… eu lancei o filme “Eike”, sobre o Eike Batista. Não é um filme infantil, certo? Em muitas salas que o filme foi lançado, eu não tinha sessões noturnas, o que para um filme adulto é mais ou menos uma castração. Quando a gente fala, poxa, no Brasil, o market share desse semestre é de 1,32%, com 125 filmes lançados. A pergunta é: os filmes são lançados ou são apenas jogados em sessões esparsas? Quem está produzindo tem que se contentar com o que vai captar no edital e depois concorrer nos festivais, porque depender de público é difícil. Hoje, a nossa tecnologia de resultado para exibição não tem nenhum problema, nem de som, nem de imagem. Então, por que a gente tem 1,32% do market share?

— Você com certeza está acompanhando as greves do setor nos Estados Unidos, que começou lá com os roteiristas. E você citou a Coréia do Sul que também tem apresentado demandas ao streaming, que tem usado como escudo o fato de não depender somente de Hollywood mais. Sem querer jogar o problema no colo da classe, é verdadeira a impressão que se tem de que somente agora o audiovisual brasileiro tem realmente se organizado e se unido em torno do setor como classe? Uma nova onda de luta?

— Eu acho que sim, mas eu acho que sempre são as entidades de produtores mais ativos. Essa semana ouvi o seguinte: duas greves de sindicatos ao mesmo tempo provam que o sistema tem problemas. No Brasil, essa discussão passa por ter cotas de filmes brasileiros em cada um dos extremos. O mercado comum europeu, a União Europeia, eles têm uma decisão de que tem que ter um mínimo de 30% de cota na Europa. Aí a França por lá diz: “quero 40% de cota de filmes franceses”, obras francesas nos catálogos, além do investimento direto e indireto desses canais. Na Alemanha tem uma cota de 10%. Na Itália tem 50%, em Portugal tem de 15%. Aí o Brasil está, nesse momento, discutindo quando isso vai acontecer nesse semestre. Segunda questão: Qual o destaque? Qual é a proeminência que a obra vai ter lá na janela de ofertas de um bilhão de projetos de obras? O streaming compra um filme, mas o filme tem que ter divulgação para os assinantes saberem que aquilo existe e não deixar escondido para que ninguém saiba, né? E aí tem uma questão mais delicada e grave, que é a questão da propriedade intelectual. Da forma como ela está posta hoje, ela não é do produtor. Você tem uma ideia, tem um projeto, você apresenta, você negocia um orçamento, você executa e ponto. O exemplo mais gritante disso foi o “Round Six” [série sul-coreana fenômeno de público na Netflix]. Fez 3 milhões de audiência e o produtor não recebeu nada, não tem participação na performance. Eu acho que tem três categorias, pelo menos, que são os roteiristas, os diretores, os músicos. E uma quarta, que seria o elenco, que deveria estar coberto por algum tipo de resultado. Isso tudo é a discussão agora. Nessa semana, tem dez entidades que estão em Brasília discutindo no Congresso todas essas questões (leia mais em Política). Isso não dá mais para ser adiado, não tem mais condições.

— Outro problema é o fato de os grandes streamings chegarem ao Brasil e anunciarem a contratação de talentos locais de forma fixa, mas não lançarem muita coisa nacional. As contratações parecem mais publicidade que investimento local. É uma relação extrativista com nossa produção cultural e que afoga histórias brasileiras, concorda?

— Dividindo um pouco o que você falou: a tentativa dos estúdios de terem talentos fixos nas suas empresas, me parece que não deu certo. A Globo demorou décadas para criar uma cultura diferente do que que era ter aquela loucura de 150 roteiristas contratados, 500 atores e atrizes. Hoje está se desfazendo desse modelo. Eu acho que não é a cultura, ter talentos fixos. Essa é a minha opinião. E nem todos os canais estão contratando talentos para suas empresas. É complexo. Agora, sobre as histórias brasileiras. Eu tenho a sensação, e uma experiência pessoal, de que quanto mais brasileira for uma história, mais ela é bem recebida. Por exemplo, ‘Sintonia’, série da Netflix Brasil, é um grande êxito e é uma história extremamente brasileira. A própria série da Kiss e alguns documentários que também obtiveram muita repercussão, são temas extremamente brasileiros. Aí é que eu não sei se eu concordo com você.  Mas assim, onde é que eu vejo chance de emplacar um projeto de peso ou de ser o mais nacional possível? Isso não pode ser contado na Espanha, não pode ser montado na Argentina, nem na Coreia. Eu ainda acho que os streamings já entenderam isso. E eles, aliás, falam muito isso, que o sucesso de uma obra tem que acontecer no país de origem dessa obra. E nós temos conseguido aqui no Brasil, quanto mais nacional ela for, mais impacto pode ter.

— O Brasil voltou a reinvestir em produção, mas você apontou que ainda falta muita coisa. Uma delas seria uma contrapartida de diálogo com a sociedade. Como é que a gente volta a construir esse diálogo para que um filme vá além da exibição, volte a ter uma existência cultural no Brasil? Não sei se eu pirei nessa pergunta…

— Eu também acho que também pirei quando falei algumas coisas aqui… A gente tem de diferenciar o que que é o gosto popular original, que tem um delineado próprio, e o que que é o gosto popular induzido. São duas coisas diversas. Eu acho que a indução de Hollywood se tornou no planeta uma droga mais grave do que a cocaína, mais grave do que sei lá o que. Eu tenho um neto de seis anos: a roupa é do Homem Aranha, o sapato é do Homem de Ferro… Cadê o herói brasileiro? Cadê o correspondente que a cultura alavanca a ponto de se tornar uma marca? Esse é o problema, essa é a questão aqui. O envio, o investimento para você transformar o sei lá, o Sonic num fenômeno que uma criança de seis anos de idade quer que o bolo da festa dela seja do Sonic. Como é que a gente faz? Nós não temos uma formação de imaginário de crianças que vão pedir o bolo do Saci Pererê. Este ano, levei o meu neto para assistir “Pluft, o fantasminha”. Ele adorou, ele queria coisas do Pluft, desenho para colorir do Pluft e eu fiquei assim emocionada. Agora, quantos Plufts o Brasil faz?  Precisamos ter um projeto como um todo, uma meta, um desenho de para onde queremos ir. O Lula diz: ao final desse meu mandato, eu quero ter tantos por cento de taxa de analfabetismo reduzida, x da fome, da falta de moradia reduzidas… A gente tinha que entrar aqui: quanto que a gente quer ter proeminência no mercado audiovisual? A gente hoje está num patamar muito baixo, por que a meta não pode ser chegar a tanto? E aí não se trata de fazer política de editalzinho aqui, editalzinho ali. O dinheiro do edital é importante, mas é pouco.

E aí enfrentamos uma outra questão, se não estou enganada. Na semana passada saiu uma notícia de que o Itaú está considerando a retirada do patrocínio da rede de cinemas, o que seria um desastre para cinematografias não-hollywoodianas. E isso nos grandes centros, por que há cidades médias e menores que nem cinema mais tem. Como é que a gente reativa esse circuito?

Até pouco tempo atrás, só 5% dos municípios brasileiros tinham salas de cinema. Esse dado eu não sei se está atualizado, mas ele era também algo que a gente repetia bastante. O modelo de salas  cineplex, do circuito de grandes salas em shopping centers e matou muito o consumo do espectador de classe média mais baixa que eventualmente se depara com o ingresso muito caro. Ou, muitas vezes, se é um porteiro que mora, por exemplo, na Zona Sul do Rio, e quer levar a namorada ou a família ao cinema, ele fica constrangido só de ir ao Shopping Leblon — e o preço no Shopping Leblon é estratosférico. Aí é que eu acho que a exibição nos canais de streaming ela é essencial: esse mesmo cara que tem dificuldade de pagar um ingresso, ele tem uma assinatura de um streaming pelo preço, muitas vezes, de uma meia entrada e ele tem o mês inteiro para consumir obras de audiovisual.

— Como produtora, qual é a sua realização maior no cinema? Por que você tem tanta paixão e, mesmo com tanta dificuldade, insiste no cinema?

— Ai, que pergunta… É assim: quando você vê um set de filmagem, para mim é um tempo ali, não importa se é um filme pequeno, médio ou grande. Estão reunidas pessoas que foram escolhidas para construir através de imagem o texto que foi escrito e muitas vezes esse texto é mexido e alterado pela embocadura do ator, da atriz etc. E aí vai tomando a forma e você entendendo ao final de um dia, o quanto pode ser uma comédia, pode ser um drama, pode ser um épico. Digamos, um filme que tenha cinco semanas de set, são 25 dias de filmagem. Em cada dia, é um pedacinho que se está construindo, com aquelas pessoas que estão conectadas com aquele momento de construção da obra. Um dia ficou bom, outro já ficou excepcional, um dia ficou ruim. É uma obra que se constrói em movimento. É uma obra diferente, sei lá, de um projeto de engenharia em que você se apresenta para uma licitação e você vai ter tantos sacos de cimento, com tantas melecas, muita água ou sei lá o quê de ferro. E com isso você vai construir aquela ponte. O que me aborrece é o Brasil cartorial, o Brasil de regras e normativos que infernizam a vida do cidadão em geral. Quando chega na hora da cultura, isso é multiplicado por mil. Eu vou dar aqui dois exemplos para vocês: uma produtora sediada numa cidade, por exemplo, no Rio de Janeiro, se convida um ator ou um técnico para filmar no Rio de Janeiro não pode pagar a hospedagem dele porque ela é sediada aqui onde a obra se passa. Eu repito: eu não posso chamar o Fagundes para performar no Rio e pagar a hospedagem do Fagundes. Todo mundo acha uma insanidade, até é a própria Agência Nacional de Cinema acha uma insanidade. Mas aí vem o problema do gerúndio: aquilo que seria deveria ser um revoga-se, que deveria depender de pegar uma caneta e dizer assim está revogada esta regra idiota…  O que temos são anos de reuniões para falar a mesma coisa. Como não ser um militante? Eu fui presidente de Rio Filme, eu abri uma empresa pública, o que era um delírio. Imagina, eu não tinha a menor experiência nisso. E meu pai, advogado, dizia: “Minha filha, tudo que você assinar, você guarda uma cópia por cinco anos que tem lá o tribunal do município que pode te culpabilizar”. Eu guardei esse negócio por cinco anos, mas um dia eu fui olhar. E a quantidade de coisas que a gente foi criando na empresa pública, engatinhando no que ela seria revogável, o que dizia que aquela regra não nós, nós não somos gestores de obras audiovisuais, somos tutelados por um regramento que não tem lógica. Gasta-se mais tempo para entender as normatizações.

E aí as pessoas olham para outros, falam sim, mas isso aqui não dá para fazer. Esse Brasil que fica discutindo coisas absurdas é o orçamento secreto, esse lá, o que é esse Brasil? E ele está adoecido. E a burocracia é uma doença do Brasil. Daqui a pouco meu neto de 6 vai me fazer perguntas do tipo: “Mas, vovó, por que é que você não pode tal coisa?” Eu responderia:  porque tem uma regra, mas quem fez a regra foi ele. Aquele órgão e tal. Ah, tá. E agora, como é que faz para mudar? A gente está conversando com eles. A  gente não tem mais tempo a perder.

— No Brasil, dependemos mais dos esportes para criar heróis do que do cinema. Por sua vez, é a música popular brasileira quem fornece nosso chão de alegria e de produção de poesia, de beleza. Qual o papel que o cinema e que o audiovisual deveria exercer para o seu neto de 6 anos?

— Deveria fazer com que ele tivesse orgulho de ser brasileiro. Quando você viaja com uma criança, por exemplo, e vai para um lugar muito diferente da cidade que ele nasceu, vai com ele para o Nordeste ou vai com ele para Amazônia, ela tem de poder ter a curiosidade com aquela cultura local, com aquela música local, com aquelas pessoas que vivem lá, com a paisagem, com tudo aquilo que ela não conhecia. Eu acho que nós deveríamos poder suprir esse imaginário para um HD que está vazio ainda, o de uma criança, com tantas e tantas histórias, belezas, circunstâncias e cenas brasileiras, para que ele tenha curiosidade sobre isso, para que ele desenvolva sobre isso. Por que não tem um bonequinho para eu comprar do boto amarelo da Amazônia para ele brincar? Não tem? Então nós estamos entregando o bem mais precioso que a gente pode legar a uma criança, que é a conexão com o amor ao Brasil. E o cinema faz isso pelo lúdico, não pela doutrinação. É por meio do lúdico. E o cinema é o melhor lúdico de todos. •

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