Entrega do Prêmio Camões ao cantor, compositor e escritor brasileiro Chico Buarque em Portugal corrige demora de quatro anos e vira espetáculo pela democracia nas redes

Na segunda-feira, dia 24, Lula faria sua primeira visita oficial como presidente do Brasil à Portugal. Um momento solene e importante para a relação dos dois países, tanto em termos da diplomacia brasileira, como dos laços culturais que unem o país colonizador e a nação colonizada. Além disso, no bojo da retomada do protagonismo do Brasil na geopolítica internacional desde que Lula foi eleito, havia também a expectativa de que a visita também avançasse nas conversações de paz relativas à Guerra da Ucrânia.  

Quem ganharia as manchetes, os memes e o buzz nas redes sociais, ou seja, as atenções no Brasil e em parte do mundo, no entanto, foram a graça, o discurso e a comoção do compositor e escritor Chico Buarque, quando, finalmente, recebeu o prêmio Camões das mãos de Luiz Inácio Lula da Silva e do presidente Rebelo de Sousa. A entrega teve sabor de desagravo e reparação — e óbvia simbologia política.

O Prêmio Camões foi criado em 1988 para incentivar e estimular a circulação da literatura lusófona, isto é, de todos os países em que se fala português, além de Brasil e Portugal, Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Premia anualmente autor ou autora cujo conjunto da obra tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural do idioma. Os governos do Brasil e Portugal dividem o valor do prêmio em dinheiro e, por isso, o diploma precisa ser assinado pelos chefes de Estado dos dois países.

Em 2019, Jair Bolsonaro, em sua infinita soberba e ignorância, se recusou a assinar a documentação — e assim permaneceu durante quatro anos de seu mandato. A recusa embolou a entrega dos prêmios nos anos seguintes para o português Vitor Manuel de Aguiar e Silva, a moçambicana Paulina Chiziane e o brasileiro Silviano Santiago. O ensaísta Aguiar e Silva, inclusive, morreu em 2022 sem receber a honraria.

Na cerimônia de entrega, em Sintra, Lula, que falou antes que o artista, afirmou que o prêmio corrigia “um dos maiores absurdos da cultura brasileira dos últimos tempos”. Disse o presidente: “O ataque à cultura em todas as suas formas foi uma dimensão do projeto que a extrema direita tentou implementar no Brasil. Se hoje estamos aqui para fazer essa espécie de celebração e reparação da obra do Chico é porque finalmente a democracia venceu no Brasil”.

Diante de Lula e do presidente de Portugal, do primeiro-ministro António Costa, dos ministros da Cultura dos dois países, Margareth Menezes e Pedro Adão e Silva, e do presidente do júri, o escritor português Manuel Frias Martins, um Chico de voz embargada começou a ler o discurso, mas não sem antes ironizar a demora: “Conforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando espaço para a assinatura do nosso presidente Lula.”

Chico, claro, tinha razão em preferir Lula ao fascista. Apoiador de Lula desde a primeira eleição presidencial, em 1989, companheiro de peladas históricas, ambos representam o estado da arte de uma certa história do Brasil, cada um em seu campo de conhecimento. Além disso, a ligação da família Buarque de Hollanda com o Partido dos Trabalhadores remonta ainda à geração anterior. Seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda foi fundador do PT.

“Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro”, lembrou o artista laureado com o Camões. “No fim dos anos 1960, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo”.

Relembrando sua carreira como escritor à qual se dedicaria com seriedade à beira dos 50 anos, quando teve “Estorvo”, seu primeiro romance publicado em 1991, Chico reforçou seu compromisso com a língua e a literatura portuguesa, na literatura ou na artesania da música. “Escrevi um primeiro romance, ‘Estorvo’, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de prêmio Camões”, disse.

“Por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim”, fazendo uma referência simpática à letra de “Tanto Mar”, canção de 1975 que celebra a Revolução dos Cravos comemorada em 25 de abril.

Ecoando a fala de Lula, que precedeu seu discurso de agradecimento, Chico concluiu: “Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”. Arrancou aplausos gerais. 

Naquela tarde iluminada e nas subsequentes, a proverbial timidez de Chico Buarque aliada à firmeza política de suas palavras teriam o poder de lembrar à todos que o Brasil que voltou é, como afirmou Lula em sua fala, aquele país no qual brilham “os amores de nosso povo, as alegrias de nossos carnavais, as belezas de nossos fados e sambas, as lutas obstinadas de nossas cidadãs e cidadãos pela conquista da liberdade e da democracia” em vez do poço escuro do fascismo.

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