Literatura escrita por mulheres domina o cenário editorial. Conheça as obras que estão em alta e as ganhadoras dos principais prêmios de literatura em língua portuguesa

É fato consumado, atestado (e também lamentado) que o Brasil leia pouco. Diversas razões explicam esse panorama quase desértico em termos de quantidade de leitores, como o acesso difícil aos livros, o fato de os livros serem caros e a leitura enfrentar a grande concorrência com telas grandes ou pequenas, em termos de números. Nos estudos que tentam entender os motivos pelos quais os não-leitores rejeitam as palavras, aparecem justificativas como “falta de tempo”, “não ter paciência ou dificuldade de ler”. E, para o pedaço leitor, um chocante, uma afirmação de sinceridade brutal: “não gostar de ler”.

Na rinha oposta, temos um mercado editorial cada vez mais diverso e que publica o ano inteiro. As feiras e bienais de livros estão lotadas. Há prêmios literários significativos. E, mais importante ainda que isso, escritores brasileiros surgindo todos os anos. E quem lê tanta letrinha impressa numa folha em branco? As mulheres.

De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura (2019), a maioria do leitorado brasileiro é feminino: 54% do total. Ainda, são as mulheres que, de certa forma, suportam a produção. Elas preferem “livros de literatura” (56%), ou seja, aqueles que não são técnicos, nem didáticos e outros pertencem à vasta categoria de não-ficção.

Quem quer que entre em livrarias percebe que as gôndolas de novidades apresentam muitos livros assinados por mulheres, nas categorias nebulosas de ficção e poesia. As editoras, de maneira geral, nos últimos anos, vêm investindo tanto em traduzir obras de mulheres como em descobrir talentos brasileiros. Uma escritora mineira, Carla Madeira, que lançou seu primeiro romance “Tudo é rio” na base da editora própria, assinou no ano passado com uma gigante editorial, a Record, e teve seu livro catapultado para impressionantes 40 mil exemplares vendidos.

Some-se a isso o fato de muitas serem de autoras mulheres alguns dos fenômenos editoriais mundiais recentes, como Elena Ferrante com a tetralogia da “Amiga Genial”, a canadense Margaret Atwood cujo “O Conto da Aia” foi objeto de uma adaptação para uma série de streaming que fez a escritora voltar a Gilead para escrever a sequência “Os Testamentos”, a nigeriana Chimamanda Ngozi transformada em best seller e celebridade, entre outras.

No ano passado, de alguma forma essa espécie de movimentação mais intensa do leitorado e da produção feminina refletiu-se no fato de os principais prêmios literários em língua portuguesa terem sido concedido às… elas mesmo, as mulheres.

O 64º Jabuti, premiação promovida pela Câmara Brasileira do Livro, consagrou “Também guardamos pedras aqui”, da poetisa paulista Luiza Romão (editora Nós) como Livro do Ano e Melhor Livro de Poesia. Na categoria romance, o eleito foi “O som do rugido da onça”, da pernambucana Micheliny Verunschk. Ela ganhou na categoria Melhor Romance Literário com a obra editada pela Companhia das Letras. A Eliana Alves coube o prêmio de Melhor livro de Contos:  “A vestida: contos” (editora Malê).

Já o prêmio Oceanos, que analisa livros escritos em língua portuguesa do Brasil,  Portugal, Angola, Moçambique Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Timor-Leste e São Tomé e Príncipe, elegeu o livro “Líbano, labirinto”, da escritora portuguesa  Alexandra Lucas Coelho (Editorial Caminho). O prêmio, que não distingue categorias e apenas ranqueia os melhores livros, concedeu um honradíssimo terceiro lugar para a brasileira Micheliny Verunschk e seu romance.

Além da presença maciça no mundo editorial, se há alguma coisa que chama a atenção nessa leva de escritoras é a diversidade que trazem nas suas vozes. A paulista Luiza Romão, por exemplo, vem do cenário do slam, da poesia falada em ritmo próximo do musical. Com 30 anos e militando no cenário da poesia de caráter também politizado e popular há vários anos, Luiza aparece com a dicção forte dessas experiências e um intenso trabalho de linguagem. “Também guardamos pedras aqui”, seu terceiro livro, dialoga com a “Ilíada”, do poeta grego Homero. No longo poema épico, a poeta acha ecos das asperezas do Brasil, como se a aniquilação de Tróia pelos gregos informasse sobre as tragédias passadas e prenunciasse as iminentes. A referência erudita, no entanto, não é intricada a ponto de afastar o leitor. Pelo contrário. Sugere outros caminhos de leitura do poema que habitou o imaginário de boa parte da poesia ocidental.

No romance de Micheliny Verunschk, surge com força o tema dos mistérios das origens. A pernambucana, que também é historiadora, parte de um fragmento da história da expedição dos alemães Spix e Martius, ao Brasil no século 19. Os naturalistas permaneceram três anos viajando por regiões remotas e inexploradas do país e voltaram à Europa levando duas crianças indígenas raptadas de suas aldeias. Embora isso não fosse incomum no período colonial, Micheliny, ao  remontar essa história de violência e deslocamento pelo olhar das crianças, nos apresenta a dimensão trágica dos genocídios sucessivos aos quais foram submetidos os povos originários.

“A Vestida”, primeiro livro de contos de Eliana Alves Cruz, que também lançou um romance em 2022, trata de outra ancestralidade interrompida pela história, dos africanos que vieram escravizados para o Brasil. Marca de Eliana desde seu romance de estreia, “Água de Barrela”, nos contos reaparecem as vivências do racismo à brasileira, ora brutal em suas manifestações mais agressivas, ora mal disfarçado em invisibilização e discriminação. Explorando personagens diversos e interessantes, a autora mostra seu domínio crescente sobre uma prosa viva e reflexiva.

Do conjunto das premiadas, o livro de Alexandra Lucas Coelho, “Líbano, labirinto” é o mais surpreendente. Obra de difícil classificação em termos de gênero literário, uma vez que combina reportagem, relato de viagem e caderno de campo, o livro é resultado de vivências recolhidas entre a revolução de 2019 e a explosão de 2020, no Porto de Beirute.

Ao lado das observações objetivas sobre as múltiplas crises que vivia o país — econômica, política e humanitária —, a autora detém o olhar sobre as histórias ao rés-do-chão de pessoas sobrevivendo entre os escombros. Fragmentada por natureza, a narrativa, no entanto, se constrói pela extraordinária capacidade da jornalista de olhar nas brechas aquilo que, mesmo nas condições mais extremas de sofrimento e barbárie, se mantém como força e esperança humanas. •

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