O ator, produtor e diretor ganha uma biografia que rememora as seis décadas de sua carreira artística.  “O avesso do bordado” também recupera a história recente da dramaturgia brasileira

“Quando eu pisei num palco, botei a roupa, decorei o texto, e então contracenei com outra pessoa; eu tive uma emoção definitiva”. A frase é do ator Marco Nanini, que aos 74 anos celebra seis décadas de carreira. Pernambucano de Recife, os muitos personagens, vivos e mortos, que já tiveram vez no corpo de Nanini são celebrados por ele com o lançamento de uma biografia, resultado de pesquisa e infindáveis horas de entrevistas com mais de cem pessoas. “O avesso do bordado — uma biografia de Marco Nanini” (Cia. das Letras) foi escrita e organizada pela jornalista Mariana Figueiras.

Não é monótono o texto, como não é monótona a vida de Nanini, um ator que passa pela história da dramaturgia brasileira nos palcos, nos cinemas e na televisão. Ele encontrou no humor a verve para dar vida a tipos brasileiríssimos e outros nem tanto – de cangaceiro a Rei Ubu, passando por Irma Vap e Lineu Silva.

Em sua trajetória, viajou entre personagens do teatro político ao besteirol. Criou o próprio teatro, o Galpão Gamboa, o Reduto. Manteve a vida privada no privado, sem nunca deixar de vivê-la com o máximo de intensidade. No livro de Mariana, encontramos algumas de suas tramas mais íntimas que nos apresentam a um personagem que não conhecemos, apesar dos tantos nomes que ele popularizou ao emprestar corpo e voz. Se são muitos os rostos marcantes com a mesma cara, são outros tantos aqueles que ficaram guardados na memória dos espectadores: um eterno “qualquer um” dos palcos.

Ao esmiuçar tantas décadas de carreira, é impossível à autora não revisitar a própria história da dramaturgia nacional. O livro se transforma, para além da biografia de Nanini, numa deliciosa prosa, daquelas leituras que pedem um café, algo pra acompanhar. Às vezes, é possível escutar as histórias com as nuances do personagem narrado, ouvir suas risadas ou sua sisudez, que fica evidente no texto.

Bem-humorado, pau pra toda obra, operário da arte, devoto dos palcos, são infindáveis os títulos que se podem atribuir ao ator, mas o Marco Nanini que conhecemos agora é também rígido, com o que diríamos de “personalidade forte”. Não é de muitos amigos, mas esbanja generosidade ao produzir, incentivar e impulsionar a carreira de muitos colegas.

Foi ao lado de um grande amigo, inclusive, que fez história com a peça “O Mistério de Irma Vap”, que estreou em 1986. Está registrado no Guinness Book, o livro dos recordes, que Nanini e Ney Latorraca estrelaram a peça que manteve o mesmo elenco por mais tempo em cartaz: 11 anos consecutivos. “Irma Vap” era mais uma do gênero besteirol ao qual Nanini concedia genialidade na interpretação, uma sátira que marcou o teatro brasileiro, dirigida por ninguém menos que Marília Pêra, com quem o ator rompeu após uma confusão nos bastidores.

O episódio remonta ao que Nanini chamou de golpe. No final de 1989, o ator descobriu alguns nódulos nas cordas vocais após realizar alguns exames, o que era um grande problema: em “Irma Vap”, ele e Ney se revezavam dando vida a oito personagens diferentes, sendo o mais marcante do sexo feminino, a hilária Lady Enid, que tinha em sua composição uma voz esganiçada.

Pausaram a peça, mas Marília, preocupada em perder o auge da produção, ligou para Ney Latorraca com o plano de ensaiar Lady Enid para substituir Nanini sem que ele soubesse. Seria uma homenagem, conta o ator. Ney imediatamente ligou para Nanini e contou o plano, o que o revoltou. A grande sociedade da peça de sucesso acabava ali.

A briga foi tamanha que Ney — com quem Marília ficou possessa por ter “estragado a surpresa” — pegou um avião e sumiu de férias por causa da fofoca. Decidiram encerrar a sociedade. Nanini e Marília nunca mais se falaram. Sem Marília, “Irma Vap” seguiu por sete anos. Para Nanini, quando ficou grande demais, era hora de parar. Quando se viu no antigo Metropolitan, espaço para 4 mil pessoas, percebeu que eram “dois chopes no palco”. Descansaram o mistério.

Mesmo se desdobrando em personagens, como no caso de “Irma Vap”, Nanini não descansava do cinema ou da televisão. Nunca deixou de percorrer histórias, biografias e telenovelas. O texto de Mariana é delicado ao contrastar para o leitor, o tempo todo, uma vida dedicada ao trabalho, com os personagens que tanto conhecemos, e a vida particular do ator. Quem diria, por exemplo, que Nanini mantinha, nas duas casas em que se dividia, no Rio e em São Paulo, um console de vídeo game, e que era viciado no cartucho de Revenge of The Gator e um Game Boy, para jogar Mario Bros durante os deslocamentos?

Na correria, quem o ajudava com tudo era Oswaldina Motta, tia da atriz Zezé Motta, que os apresentou. De cozinheira, passou a assumir outras tarefas de organização na casa de  Nanini e acabou trabalhando com ele por 30 anos.Quando se aposentou, ganhou do ator uma viagem para a Europa e um apartamento de presente. Oswaldina fez um pedido: em vez do apartamento, uma casa de repouso, e até hoje Nanini a sustenta na melhor casa de repouso do Rio, com acompanhante exclusiva.

Com a ajuda de Oswaldina, o furacão Nanini podia se dividir em quantos fossem necessário. Estrelou novelas, humorísticos, cinema. Até mesmo suas malas eram preparadas por Oswaldina. Com tanto agito, Nanini mantinha sempre uma mala pronta e cópias de seus documentos preparados.

O pai era gerente de hotéis de luxo e dado a isso, Nanini herdou o tipo nômade. Passou por muitas capitais brasileiras, vivendo em ótimos recintos, conhecendo personalidades como JK, atrizes, a quem pedia autógrafos, que guarda até hoje. Fixou residência com a família no Rio. E foi nesta cidade que começou então a carreira, ao lado do ator Pedro Paulo Rangel, morto em dezembro de 2022, num grupo de teatro amador em Botafogo, na igreja Teresinha do Menino Jesus.

Nanini vive em união estável com o produtor Fernando Libonati há 36 anos — de quem é sócio e parceiro de trabalho. Quando reafirmou a sexualidade, vivia o auge do personagem Lineu Silva, o patriarca de “A Grande Família”, um senhor austero, fiscal da vigilância sanitária, de tradicional família brasileira. É discreta também sua posição política, mas incessável sua luta. Tanto como ator e produtor, que mantém um teatro e um espaço cultural abertos no Rio, como crítico e militante de um país mais justo.

A sutileza do texto é notada em detalhes apontados pelo próprio autor. Seu nome é sequer citado em todas as páginas, porque são muitas as histórias que conta e sua vida encontra. E são muitas as histórias, curiosidades e outras pessoas que passam pela rica trajetória de Nanini, que segue escrevendo páginas e trabalhando.

Segundo o ator, era hora de ler a própria história. O convite para o texto partiu dele, que convidou Mariana para que o escrevesse. Não fica de lado, é claro, o tamanho de quem se retrata: são mais de cem produções ao longo de toda a carreira. “O avesso do bordado” nos dá a dimensão que, se há para nós espectadores um Nanini a cada personagem, também nele residem vários. Para o ator, esse é o fascínio: saber ser muitos e saber sê-lo em casa, com uma conta fake no Instagram para ver vídeos de bichos e crianças em paz, sem seguidores.

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