Brasil evangélico
“Vai na Fé”, a novela das sete da Rede Globo, lança um olhar nuançado sobre os fiéis da religião que mais cresce no Brasil. E acerta, apesar de algumas derrapadas no texto
Dilemas amorosos, tem. Paternidade desconhecida, tem. Ascensão social? Também tem. Comédia & drama? Idem. A novela das sete da Rede Globo, que estreou em janeiro, assinala um x em todas as alternativas da narrativa tradicional do formato telenovela, tal como estabelecido pela grade inventada pela emissora ali nos anos 1970. No entanto, de olho na principal concorrente, a Record, vem fazendo acenos ao público que deixou o catolicismo difuso brasileiro em favor das religiões de matriz evangélica.
Depois da recuperação de prestígio no horário das oito, com a exibição do remake de “Pantanal” em 2022, as atenções se voltaram ao horário anterior de dramaturgia que vinha numa descendente de audiência. A aposta, arriscada, de fazer uma novela com personagens evangélicos mais ou menos fora do figurino, negros e do subúrbio carioca, mostrou-se acertadíssima.
Na segunda-feira, 27, a novela chegou aos 25,8 pontos de média em São Paulo — cada ponto equivale a 76.953 domicílios na Grande SP. Ou seja, em cerca de 2 milhões de endereços na maior cidade do Brasil, alguém estava prestando atenção na trama assinada por Rosane Svartzman.
A escritora é uma veterana dos roteiros considerados mais leves e jovens, tendo estreado como co-autora em “Malhação” e no horário das sete como autora de novelas bem sucedidas desde 2015. “Totalmente Demais”, sua estreia, foi tão bem que teve inclusive um spin off. No caso de “Vai na Fé”, ela também arriscou suas fichas na tendência aprendida com as séries de streaming de elaborar uma história, ao mesmo tempo nichada, mas com apelo mais amplo, por que, afinal, trata-se de TV aberta.
Com menos de três meses no ar, o que corresponde a mais ou menos metade da novela — a atração deve levar seu último capítulo ao ar na segunda semana de agosto —, “Vai Na Fé” segue um passo lento e seguro de novela que cai nas graças do público.
A trama trata do choque de duas culturas urbanas quase que diametralmente opostas no Rio de Janeiro: uma família negra, evangélica e pobre em Piedade, na Zona Norte, que circula entre o Centro, a Zona Sul e a Barra, dos ricos, brancos e poderosos. Dois pontos em comum ligam esses grupos socialmente afastados: num tempo passado, os bailes funk, e, no tempo presente da novela, uma instituição particular de ensino superior.
No núcleo suburbano e conservador, a protagonista é vivida pela atriz Sheron Menezes, no papel de uma mãe de duas filhas que foi, na juventude, a “princesa do baile”, mas encontrou Jesus e constituiu família. Sua filha mais velha — Bella Campos, a Muda do Pantanal —, Jenifer, é a estudante-modelo, que entra com esforço no curso de Direito de uma das “melhores faculdades do Rio de Janeiro”, cuja localização e caracterização do prédio lembram em tudo a FGV do Rio).
No pólo rico, há dois núcleos principais. Um, do casal interracial de advogados que estudou exatamente na mesma faculdade em que Jeni ingressa, formado pela atriz Carolina Dieckmann e por Samuel de Assis, o Ben. E o outro, de outra família, essa desfeita, composta por Wilma, uma ex-atriz decadente (Renata Sorrah), e seu filho pop star igualmente em decadência Lui Lorenzo (José Loreto).
Partindo de um principal acerto, tratar os personagens evangélicos em sua diversidade e com um nuances importantes, sobretudo no que diz respeito ao protagonismo feminino à frente do sustento das famílias, a novela deslanchou sem fazer muito esforço. Os temas do racismo e dos preconceitos sociais, inescapáveis dada essa ambientação, já serviram de alimento para várias intrigas, algumas boas, algumas francamente caricaturais.
Mas o que se destaca, de fato, é o elenco feminino que tem criado muito bons momentos na novela. Renata Sorrah, a atriz que foi preterida devido à idade, e Elisa Lucinda (que faz Marlene, a mãe de Sol) entram em cena sempre com um rigor e uma desenvoltura impressionantes, não importa o quão ingênuos sejam seus parceiros de cena.
Dieckman, cria de novela, e Sheron, em seu primeiro papel como protagonista, fazem o contraponto das escolhas profissionais e existenciais que se apresentam às mulheres brancas e negras. Assim como Carla Cristina Cardoso. E, por fim, Bella Campos e Clara Moneke (como Kate, a melhor amiga de Jeni), desenham as trajetórias das mulheres mais jovens do subúrbio com a graça e o frescor de atrizes iniciantes (ou quase).
No mais, o alívio cômico da mansão decadente na Barra da Tijuca, encabeçada por Sorrah, tem um reforço todo especial no ator Luiz Lobianco, cujo talento para a comédia faz do personagem Vitinho (produtor, empresário e faz-tudo) quase que um capítulo à parte.
“Vai na Fé”, provavelmente, não terá o potencial atrativo que “Pantanal” recuperou no ano passado. Mas sinaliza que a maior emissora de TV do país, além de tentar ocupar um nicho que era da “emissora do bispo”, atentou para a nova demografia religiosa do Brasil ao apostar numa novela que tematiza isso com mais graça e diversidade do que de hábito.
Seu ponto fraco, ainda, com as exceções acima citadas são as caracterizações de grupos de jovens, sempre na base da estereotipia — e nunca se sabe se por incompetência ou de propósito. •