Das bossas novas e não tão novas assim passando pela canção de protesto, o cenário da música brasileira era ainda comportado e careta quando veio então o golpe militar. E aí mudou tudo

Na historiografia clássica da música popular brasileira, costuma-se atribuir uma atenção demasiada a dois movimentos musicais da década de 1960: a Bossa Nova e o Tropicalismo. Em que pese o caráter inovador de “Chega de Saudade” (1958), de João Gilberto e à movimentação que se seguiu em torno de violões em apartamentos da Zona Sul carioca, a Bossa Nova “eram”, na verdade, eram muitas. Quanto à Tropicália, que participa do cenário musical a partir da segunda metade dos anos 1960 com sua estridência necessária e urgente, implode uma certa tradição e, acaba, depois do recrudescimento do regime com AI-5 em 1968, por criar outra, a da MPB.

Esquecidos por razões que se relacionam com o preconceito social e cultural, o som suburbano e aparentemente mais descerebrado da Jovem Guarda e a pretensão de “levar a (alta) cultura” ao povo da “canção de protesto” costumam ficar numa espécie de purgatório. O que escapa às torcidas organizadas de então — e ainda de agora — é que, por trás da avalanche de canções marcantes, talentos revelados e música apenas linda que foi gerada naquela década, havia uma disputa de públicos pagantes, das rádios ao disco, dos discos à televisão, da televisão aos shows, que passava ao largo de movimentos, estéticos ou ideológicos, da “arte” ou da “alta cultura” e, pior ainda, da revolução.

Antes de 1964, um grupo de construtores da Bossa Nova, especialmente Carlos Lyra, se afastou da “leveza” das letras contemplativas de João Gilberto e Tom Jobim e se aproximou das temáticas dos Centros Populares de Cultura da UNE. Atuando em vários campos da cultura, os CPCs atraíam estudantes e professores universitários para conhecer a cultura popular e, em movimento complementar, dar condições para que “o povo” saísse de sua alienação ingênua, dando formas mais apuradas — e de classe média. Mesmo que houvesse uma ingenuidade profunda, não na arte do povo — lida de forma muito rasa como equivalente ao “folclore” —, mas na formulação intelectual, o fato é que se criou a partir dos CPCs alguma circulação real do que, hoje em dia, se chamaria de centro-periferia. 

No exato ano do Golpe de 1964, em 31 de março —­ ou 1º de abril a depender de quem escreve —, o Conjunto CPC lançou um compacto duplo chamado “O Povo Canta”, com duas faixas: de um lado, “Subdesenvolvido”, de Carlos Lira e Francisco de Assis, e, do outro, “João da Silva”, de Billy Blanco, na voz de Nora Ney. Com letras declaradamente panfletárias (“João da Silva, cidadão sem compromisso/Não manja disso que o francês chama l’argent./ Pagando royalty, dinheiro disfarçado”), as canções tiveram uma vida curta, ainda que incendiária.

OPINIÃO A jovem Maria Bethânia (ao centro) estreou nos palcos em 1964 ao lado de João do Vale (à esquerda) e Zé Ketti (à direita) em evento do CPC

Esse caldo de cultura juntou Nara Leão, que gravou seu primeiro LP naquele mesmo ano, a Carlos Lira, Baden Powell e Vinicius aos sambistas Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti. De uma tacada, Nara, além de gravações primorosas de “O sol nascerá” (Cartola), “Luz negra” (Nelson Cavaquinho e Amâncio Cardoso) e “Diz que fui por aí”, juntou boêmias de classes sociais distintas e deu uma banana à Bossa Nova.

Jair Rodrigues, que defenderia nos festivais da Record “Disparada” (Geraldo Vandré), ainda era um cantor veterano de programas de calouros, mas no ano em que começa a longa noite da Ditadura Militar no Brasil, conseguiu gravar e lançar dois discos: “O Samba Como Ele É” (cujo hit é da dupla Vinicius e Tom Jobim) e o “Vou de Samba com Você”, no qual ele registrou no vinil seu samba “Deixa Isso Prá Lá”, ponto alto de seus shows em boates.

A Bossa Nova mais classicona resistia na forma dos afrosambas, fruto de uma parceria entre Vinícius e o extraordinário instrumentista Baden Powell, ainda em gestação — o disco homônimo da dupla só sairia em 1966 —, mas algumas canções já circulavam, como “Berimbau”, gravada pelo grupo vocal feminino Quarteto em Cy. 

É de 1964 também o terceiro álbum de estúdio de Roberto Carlos “É Proibido Fumar”. O futuro “Rei”, que já se firmava como um crooner e era ídolo de moças e rapazes, enseja uma letra de “rebeldia juvenil” com a canção que dá título ao disco. De resto, ainda que simpático e precursor de uma certa tradição roqueira que se ensaiava ali, é um disco típico da Jovem Guarda: versões de sucessos estrangeiros (notável ali apenas “Desamarre o meu coração”, versão de “Unchain my heart”, de Ray Charles), romantismo para dançar lento e alguma agitação para dançar rápido.

Nas canções de Roberto e Erasmo, no entanto, estaria embutida uma onda nova, percebida por Maria Bethânia quando se mudou de Salvador para o Rio de Janeiro a fim de substituir Nara no show “Opinião“, ainda em 1964. Ela estrearia nos palcos ao lado do maranhense João do Vale, autor de “Carcará“, e do sambista carioca Zé Keti Bethânia foi quem chamou a atenção do irmão mais novo, Caetano Veloso, para a importância da linguagem mais juvenil, dos instrumentos elétricos e da performance de palco da Jovem Guarda.

Ao contrário do muito que romantiza sobre a influência dos Beatles no grupo tropicalista, foram as luzes da Jovem Guarda que avisaram que a defesa muito fechada da tradição e do nacional-popular estavam estética e ideologicamente mais alinhadas com os militares do que com o povo brasileiro. •

`