Além da promessa de construir mais unidades pelo Minha Casa Minha Vida, outra arma da política habitacional pode ser a criação de um estoque para aluguel subsidiado. O governo estuda como fazer

A tragédia que ocorreu no litoral norte de São Paulo durante o último carnaval trouxe à tona, novamente, o problema da habitação popular em áreas consideradas de risco. Acontecimentos como aquele se repetem ano após ano, especialmente durante a estação de fortes chuvas do verão. A diferença costuma ser os locais onde são registrados. E quais medidas são prometidas e efetivamente colocadas em prática.

No Brasil, segundo dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), baseados no Censo de 2010, mais de 8,2 milhões de pessoas, abrigadas em 2,4 milhões de domicílios, vivem em locais sujeitos a desastres causados pela combinação de fenômenos naturais e ocupação desordenada de espaços como encostas e regiões ribeirinhas.

Em visita a áreas atingidas no litoral paulista, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu esforço do governo federal para construção de novas casas para as vítimas. O governo de São Paulo também fez acenos nessa direção. Enquanto essas medidas não se concretizam, famílias que perderam bens materiais e parentes – o final de fevereiro tinham sido confirmadas 65 mortes –  têm sido alojadas em abrigos ou recebem o aluguel social, subsídio provisório pago pelo poder público para pessoas de baixa renda vítimas de situações de forte impacto.

O recurso ao aluguel social, como política estrutural de longo prazo e não mais apenas medida paliativa ou transitória, pode ser uma importante diferença em relação a programas habitacionais empreendidos no passado. Essa mudança tem sido defendida por especialistas e entidades do setor e também é estudada pelo governo Lula.

Uma das principais expectativas depositadas sobre Lula é a retomada do Minha Casa Minha Vida, que prevê a entrega de 2 milhões de novas casas e unidades habitacionais até 2026. Mas apenas isso não será suficiente, seja pelo número de unidades residenciais, seja pelas áreas onde serão construídas.

Nem todo o déficit habitacional brasileiro se concentra em áreas de risco, tampouco a resposta para cada uma das necessidades deve ser sempre a construção de novas residências. Nessas lacunas, o aluguel social pode ser adotado como medida complementar à política de habitação.

“Falta claramente um programa que ofereça um estoque de imóveis para aluguel subsidiado, com fim social, fora do controle do mercado, voltado à população de baixa renda em geral e para aquela que mora em áreas de risco”, propõe Rute Imanishi Rodrigues, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), especialista em habitação social e direito à cidade.

Ela defende que o aluguel social não seja apenas um recurso provisório para situações extremas, mas parte de uma política de longo prazo. A medida permitiria a formação de uma cesta de oferta de imóveis de propriedade estatal e privada, devidamente cadastrados, num sistema que poderia ser gerido pelos governos em parceria com entidades do terceiro setor.

“Isso ocorre em países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos desde o pós-Guerra. É um dos pilares do Estado de Bem-Estar Social”, comenta. Rute é doutora em Economia pela Universidade de Siena.

Na Inglaterra, por exemplo, entre 25% e 35% do mercado de aluguéis é ocupado por imóveis para fins sociais. Desde a adoção da política, no período pós-Guerra, a propriedade das residências usadas para esse fim era estatal. O predomínio do neoliberalismo após os anos 1980 provocou a transição para um modelo misto, mas não aboliu a política.

No Brasil, parte das futuras construções do Minha Casa, Minha Vida poderia ser destinada para aluguéis sociais, propõe a economista. Imóveis usados poderiam ser adquiridos e reformados pelo governo. Cooperativas habitacionais e proprietários individuais devidamente cadastrados completariam a oferta. Beneficiários do programa poderiam alugar as unidades por longos períodos, quando necessário. Essa possibilidade ajudaria a conter o crescimento de moradias precárias e, de quebra, a subida de preços dos aluguéis, hoje ditada apenas pelo mercado.

O governo federal planeja dedicar parte do programa Minha Casa Minha Vida a construções para esse fim, tanto construindo novas unidades, quanto cadastrando imóveis já existentes. A ideia foi apresentada no programa de governo do então candidato Lula e reforçada pela equipe de transição, no início deste ano. A medida provisória que relançou o programa, em fevereiro, prevê o aluguel social como parte do programa. Ainda não há definição de números.

O movimento social de moradia também defende a ideia. “É uma proposta interessante, não só para atender famílias de baixa renda, como também contribuir para o debate sobre a questão da casa própria: as pessoas precisam morar ou precisam ter casa própria?”, opina Raimundo Bonfim, liderança da Central de Movimentos Populares.

O setor da construção civil também é favorável à ideia de reservar parte do Minha Casa, Minha Vida ao aluguel social. A seção paulista do Sinduscon, sindicato que representa as construtoras, apresentou um esboço à equipe de Lula durante a campanha eleitoral.

“Mas o aluguel social precisa estar acompanhado de políticas de sustentabilidade econômica, geração de renda e estrutura de serviços públicos e comércio próximos”, diz Bonfim. Este é um dos desafios de qualquer programa habitacional comandado pelo poder público. Desde a escolha do local, passando pela infraestrutura próxima, construir novas habitações não deveria repetir o modelo atual de aglomerações sem bons patamares de qualidade de vida e oportunidades.

Como no caso do litoral norte paulista, em que a faixa litorânea foi em grande parte ocupada por casas de veraneio de alto padrão, que passam a maior parte do ano vazias, enquanto os trabalhadores que cuidam delas vivem próximos a encostas, sem fornecimento adequado de água e outros serviços. “Não adianta simplesmente retirar essas pessoas dali e construir para elas casas distantes do local de trabalho e sem infraestrutura. Há o risco inclusive de novas aglomerações precárias surgirem, com o tempo, ao redor dessas habitações”, comenta Rute.

Outra forma de combater e prevenir desastres como os ocorridos em São Sebastião é manter uma política permanente de manutenção das áreas de risco já ocupadas, com obras de contenção de encostas e garantia de construções adequadas. “Os mais ricos têm casas nas encostas que raramente são destruídas pelas chuvas, porque há tecnologia para as construções”, aponta.

No médio e longo prazo, outra medida necessária é a mudança das legislações municipais e estaduais para rever a ocupação do solo e barrar o surgimento de outros núcleos de alto poder aquisitivo como os existentes em São Sebastião ou Búzios. “Na maior parte do tempo, são cidades fantasmas. Todos os ricos querem ter uma casa ‘pé na areia’ e depois só usam no final do ano. Isso gera especulação imobiliária e mais desigualdade”, adverte a economista. •

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