Repórter e apresentadora da TV Globo por mais de 50 anos, a jornalista foi referência na mídia brasileira. Ela foi a primeira mulher negra a integrar uma equipe de reportagem do Jornal Nacional e virou uma referência na profissão

Glória Maria, 73

Glória, oh glória, dentro da cachoeira, jamais da cascata, Glória em cima de um camelo no deserto, Glória em cima de uma embarcação precária Vietnã adentro, Glória que vive, desvenda e traz o mundo para a gente simples do bairro, da vila, da cidade, da província. Glória pioneira em um país cuja narrativa sempre foi tão branquela”.

O parágrafo acima, de “O livro das mulheres extraordinárias” do jornalista e escritor Xico Sá, foi publicado em 2014, mas combina com muitas das reações que se viram pelas redes na quinta-feira, 2 de fevereiro, quando foi anunciada a morte de Glória Maria, aos 73 anos, vítima de câncer.

Repórter, apresentadora e comentarista, a história de Glória Maria se confunde com a do jornalismo televisivo brasileiro. Primeira repórter negra a entrar ao vivo no Jornal Nacional,  Glória também apresentou o Fantástico por quase 10 anos, entre 1998 a 2007. Em 2010, voltou a se dedicar à reportagem no Globo Repórter.

Nascida no Rio de Janeiro, Glória Maria Matta da Silva estudou na faculdade de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio. Durante o curso, trabalhou como telefonista da Embratel. Nos anos 1970, foi trabalhar na Globo onde exerceu a função de radioescuta e, em seguida, de repórter. Ela trabalhou no Jornal Hoje, no RJTV e no Bom Dia Rio.

No principal telejornal do paíis, foi a primeira repórter a aparecer ao vivo. Cobriu a posse de Jimmy Carter em Washington e, no Brasil, durante o período militar, entrevistou chefes de Estado, como o ex-presidente general João Baptista Figueiredo.

Deste último ícone da ditadura, levou uma daquelas patadas que o tornaram famoso: “Foi quando ele fez aquele discurso ‘eu prendo e arrebento’ – para defender a abertura [1979]. Na hora, o filme  acabou e não tínhamos conseguido gravar. Aí eu pedi: ‘Presidente, é a TV Globo, o Jornal Nacional, será que o senhor poderia repetir?’. ‘Problema seu, eu não vou repetir’, disse Figueiredo. O ex-presidente dizia para a segurança: ‘Não deixa aquela neguinha chegar perto de mim”, relembrou a veterana repórter.

No Fantástico, além de apresentar o programa, fazia matérias especiais e chegou a realizar entrevistas com ícones da cultura pop, como Michael Jackson, Harrison Ford, Nicole Kidman, Leonardo Di Caprio, Freddie Mercury e Madonna. A jornalista cobriu a guerra das Malvinas (1982), os Jogos Olímpicos de Atlanta (1996) e a Copa do Mundo na França (1998).

Para o Fantástico, Glória Maria correu o mundo por mais de 100 países, passando pela Europa, África e parte do Oriente, quando mostrou a realidade de cada nação ao telespectador. Nessas reportagens, fazia o perfil de repórter que não apenas registra, como participa de atividades esportivas ou de lazer.

Com presença marcante na tela e muita segurança, Glória Maria tinha o carisma de uma celebridade e uma versatilidade notável. Nos anos 2010, fixou-se na equipe do Globo Repórter, onde continuou conduzindo reportagens ao redor do mundo, com algum elemento de aventura. Também apresentava eventos especiais no Rio, como a transmissão de shows de Revéillon, em Copacabana, e do Carnaval, no Sambódromo.

Por seu pioneirismo e projeção, tornou-se referência para mulheres negras, em especial as jornalistas. Ela revelou em 2020 que foi a primeira pessoa no Brasil a usar a Lei Afonso Arinos em episódio em que foi barrada num hotel por um gerente que disse que negro não podia entrar.

Estrangeiro, o funcionário do hotel foi expulso do Brasil, mas se livrou da acusação, pagando uma multa. A Lei Afonso Arinos, de 1951, tipificava a injúria racial, mas não como crime.

À época, declarou: “O difícil para mim agora é contar para as minhas filhas, explicar para elas o que é o racismo num momento em que elas estão assistindo a essas manifestações nos EUA e em vários países. Eu não sou muito otimista, mas eu acredito que um dia todo mundo vai ser visto como igual. Ninguém vai ser discriminado por causa da cor da pele”.

Glória Maria morreu em decorrência de um câncer, diagnosticado ainda em 2019. Ela deixa duas filhas adolescentes: Maria e Laura.  •