Ex-presidente da Funai e criador da reserva ianomâmi, o indigenista que criou o Departamento de Índios Isolados, acusa o governo Bolsonaro de genocídio. E quer a responsabilização criminal do ex-presidente da República. “Essa ideia foi organizada, pensada, preparada, colocada dentro do governo, utilizando a máquina do governo para ter o resultado que estamos vendo agora: os índios sem terra, esfomeados”, critica

As imagens estarrecedoras de crianças e adultos ianomâmis desnutridos, quase morrendo de fome, já tinham sido vistas por Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai (1991-1993), na época em que a área indígena foi demarcada e reconhecida, em 1992. Mas ele insiste que a situação dos indígenas no Brasil é muito pior hoje. Possuelo é considerado um dos maiores especialistas do mundo em povos isolados da Amazônia.

Ele foi o responsável não somente pela demarcação da Terra Indígena Ianomâmi. Demarcou 166 áreas indígenas, duplicando a área das terras destinadas aos povos originários no Brasil. O indigenista viveu nas florestas por aproximadamente 50 anos. No ano passado, devolveu a Medalha do Mérito Indigenista após Jair Bolsonaro ter recebido a mesma honraria.

Nesta entrevista à Focus, Possuelo falou sobre os desafios na Terra Ianomâmi, sobre sua expectativa com relação ao governo Lula e o que espera que aconteça com Bolsonaro: “Chega de anistia!”

Focus Brasil — O senhor esteve na área Ianomâmi inúmeras vezes ao longo das últimas cinco décadas. Já tinha visto imagens dos ianomâmis naquelas condições de subnutrição tal como a gente a gente viu agora? São imagens fortes, que chocam…

Sidney Possuelo — Essas imagens sempre nos chocam. Ainda que não seja a primeira vez. Mas, realmente, não foi a primeira. Na época da demarcação da área Ianomâmi, eu era o presidente da Funai e, como tal, o responsável pela demarcação. Havia na região uma invasão estimada entre 40 mil a 45 mil garimpeiros. E a ação deles remete a um quadro como esse que estamos vivendo agora. E era muito mais gente naquela época. Então, o problema de saúde foi agravado muito, muito, e as condições eram terríveis como essa. Naquela oportunidade, fizemos vários trabalhos, a começar pela retirada dos invasores. Era o primeiro passo que tínhamos que fazer e retiramos todos. Ficou um remanescente, que era estimado entre 1.200 a 1.600 pessoas que estavam espalhadas pelo meio da selva e era difícil encontrá-las.

Ou seja, dos 45 mil, tiramos praticamente todos e ficou somente esse resquício que depois também saiu. Tivemos a oportunidade de limpar a Terra Ianomâmi. Foi feita a demarcação, a delimitação e houve a assinatura, na época era o presidente Collor de Mello. E por que depois de demarcada, delimitada a terra, voltam os invasores? Independente desses últimos quatro anos, é preciso que se diga sobre: eles são uma parcela infeliz da nossa sociedade, pessoas que não têm grandes possibilidades de viver na cidade e tentam… “quem sabe no garimpo eu dou sorte e até posso ficar rico”. Era uma oportunidade e essa oportunidade não se encontra na cidade, só se metendo em garimpo de ouro, pedras, cassiterita… O fato é que são elementos da sociedade nacional com grande dificuldade em viver nas cidades que atacam as terras indígenas e vão tentar sobreviver ali.

Mas eles voltaram porque, depois de retirados do território, não permaneceu ali um dispositivo permanente de proteção. Quando você cria qualquer área do governo federal ou estadual ou municipal, para proteger a ararinha azul, para proteger o macaco mergulhão, etc. que são medidas muito boas e importantes na defesa da nossa fauna e da nossa flora, sempre o Estado coloca guardiões para tomar conta. Eles são armados, vão defender e não deixar invasores entrar. A mesma coisa deveria ser feita pela Funai, que deveria defender as terras indígenas. Porque, se você não vigiar, não adianta delimitar e demarcar, elas serão sempre invadidas, lamentavelmente. Lamentavelmente.

Tivemos ao longo do tempo esse processo de invasão que apresenta esse quadro horroroso que a gente vê. Mas não é a primeira vez que acontece. Espero que seja a última, mas sempre é possível. A ação de vírus nas comunidades indígenas tem o mesmo resultado que em nós. Se tivermos uma gripe, tomamos uma aspirina, etc, ficamos em casa e acabou. No meio dos povos indígenas, principalmente, povos como os Ianomâmis, muito ligados à natureza, à selva, eles vivem do que a floresta lhes oferece de alimentação, comida e tudo mais. Eles são muito sensíveis. [A gripe] Tem uma ação nefasta no meio deles, terrível. A gripe, 24 horas depois, vira pneumonia. Se não cuidar, morre. Comunidades inteiras ao longo da história desapareceram assim. Não é novidade isso e não foi novidade no caso dos Ianomâmi.

— Qual é a diferença entre o período até 1992, quando a terra Ianomâmi foi demarcada e o que a gente vive hoje?

— Numa análise simples, que naquele tempo aqueles 40 mil ou 45 mil garimpeiros que foram aos poucos entrando e invadindo a área, não havia um grupo que arrebanhava gente para entrar. Eles se reuniam numa cidade próxima quatro, cinco, dez, 15, 20 pessoas que se conheciam e “ah, então, vamos lá nos Ianomâmi, vamos tentar o garimpo”, e faziam isso. A diferença é uma questão de organização. Naquela época era um grupo de pessoas que tentava a sorte. Com o passar do tempo, hoje, as informações obtidas que temos a respeito dos Ianomâmis, é de que a invasão é totalmente diferente. Parece estar organizada, tem setores de organização e se utilizam muito de helicópteros. Parece que têm companhias de helicópteros e dizem estar vinculados de alguma forma a essas facções de traficantes de drogas, ao crime organizado. Parece que estão juntos dentro desse processo atual, moderno, de invasão da terra indígena. A grande diferença que eu noto é exatamente isso. As informações falam de 20 mil garimpeiros, aproximadamente… Então, eu vejo de momento essa grande diferença, da composição. Quem eram e quem são hoje esses invasores.

— Tanto o presidente Lula quanto a Marina Silva têm prometido acabar com o garimpo ilegal, zerar desmatamentos. O senhor considera que essa seja uma meta possível? E o que seria preciso fazer?

— Eu acho que é possível. E, primeiro, é fazer a retirada desses garimpeiros e não só na terra Ianomâmi. Mas eles estão poluindo os rios Brasil afora. É uma calamidade o que está acontecendo. Mas, veja bem, o nosso foco agora é a Terra Ianomâmi. Veja você que dentro do território existem os pelotões de fronteira. São dois pelotões de fronteira do Exército lá na área ianomâmi. O que fazem esses pelotões de fronteira? Estão ali defendendo o território nacional. Ótimo, muito bom, é a missão deles. Mas será que estes homens não poderiam auxiliar e serem absolutamente contrários à ação dos garimpeiros? Será que o Estado não pode levar esses homens que estão ali? O Exército está ali junto com Polícia Federal, não se pode coordenar uma ação? Eu acho que é possível, é claro.

Se a nação como um todo não puder tirar 20 mil garimpeiros armados de bacamarte, então temos que temer muito o pequeno exército do Suriname, porque pode invadir isso aqui e fazer o que quiser… Portanto, é urgente fazer uma ação coordenada. Acredito que Marina Silva, com certeza, vai se esforçar. A presença do presidente Lula ali foi um gesto fantástico, importantíssima, já para dizer aos invasores: “Mudou. A situação não é mais aquela. Por nós, vocês não serão abrigados, não vamos protegê-los. Mudou”. Foi importantíssimo a presença dele lá.

Agora, temos também a Marina Silva na área ambiental, e é importante lembrar o seguinte: como os povos indígenas, principalmente, etnias como os ianomâmis, você não pode falar deles sem falar do meio ambiente. Estão interligados, vivem exclusivamente do que a natureza oferece. Eles dependem exclusivamente da natureza, do meio ambiente limpo, em pé, de águas limpas, sem mercúrio.

Quando o Estado brasileiro quer, tem condições necessárias para, não só interromper aquilo ali, como retirar e colocar definitivamente uma proteção, porque também não vamos esquecer e fazer como fizemos na época da demarcação — e eu era o responsável como presidente da Funai. Ficamos, fizemos e viramos as costas por outras situações e encheu novamente de garimpeiros. Não vamos nos perder. Vamos pensar que é necessário uma vigilância permanente sobre a área. Eu penso que é possível retirar e, com certeza, o Estado vai movimentar as suas forças e vai conseguir botar ordem, decência e acabar com esse crime que está sendo cometido contra o povo ianomâmi.

— A comunidade internacional poderia aportar R$ 100 bilhões para que o Brasil pudesse fazer uma limpeza cidadã na Amazônia, como sugeriu a ministra Marina Silva?

— Há formas e maneiras divergentes de sentir e ver essa situação. Pessoalmente, não vejo uma obrigação de um outro Estado ter que nos auxiliar nisso ou naquilo. Eles não têm. Eles podem nos auxiliar porque é interessante para eles, porque politicamente é bom ou porque eles têm interesse. Mas não há uma obrigação deles fazerem isso. Então, se puderem e podem, nos auxiliar… A Amazônia é muito grande. Estamos falando de 8,5 milhões de km² só no território brasileiro. E ali cabem áreas indígenas, terras agricultáveis. Cabe a parte boa do agronegócio, as cidades, as áreas protegidas. É uma questão de reorganização dos espaços nacionais. É claro que temos na Amazônia os 22 milhões de habitantes, mas eles, necessariamente, não precisam invadir a terra indígena.

E, penso eu, que quando ela fala nesses milhões de brasileiros que estão ali, nossos conterrâneos, companheiros, mas não acredito, e tenho certeza que ela não está falando em aproveitamento da terra indígena para eles. As terras indígenas são espaços que o Estado brasileiro retirou e concordou que ali viveriam povos diferentes, de organização social diferente, cultura diferente e língua diferente. Então, vamos respeitar esses povos.

Os ianomâmis, quando fomos demarcar, os estudos indicam que a ocupação dessa etnia remonta há mais de 3 mil anos naquela região. O Estado não reconhecer isso e não lhes dar o direito dessa ocupação seria um ato horroroso, totalmente contrário aos nossos princípios de justiça, ordem e da democracia. E eu fico pensando muitas vezes, faço às vezes uma comparação porque esses povos lutam constantemente desde 1.500 até hoje. Há vários povos – que não é o caso do ianomâmis porque de certa forma foi demarcado, mas está invadido, então, não foi resolvido o problema – que até hoje necessitam lutar, gritar, berrar para verem reconhecidos seus direitos. E o que eu quero dizer é o seguinte: um cidadão brasileiro pega um imóvel próprio qualquer, fica ali durante cinco anos, vai diante da Justiça e ganha aquela terra por usucapião. Um cidadão em cinco anos resolve o seu problema.

Por que o Estado brasileiro tem tanta dificuldade em reconhecer a existência de povos indígenas que estão ali há 3 mil anos? É um direito primário sobre a terra, meu Deus! Então, um Estado honesto, correto, como nós queremos que seja daqui para frente com a Presidência de Lula, com certeza vai reconhecer. Ele já deu o primeiro passo indo lá. [Lula] colocou a Marina na administração de nossas florestas, rios, na proteção ambiental. Vamos aos poucos, mas rapidamente, porque não pode ser demorado, colocar as coisas nos seus devidos termos. O país é imenso, há terras para todos e não precisamos matar índios para poder sobreviver e nos desenvolver.

As florestas que existem lá, que demarcamos ao longo de todo esse tempo, só estão de pé graças à presença dos povos indígenas. E isso nos beneficia diretamente. A milhares de quilômetros aqui, ao Sul, somos beneficiados por isso. Então, é só para dizer que a terra indígena não é só para o índio, também é uma proteção para nós.

— Mas e com relação a essa espécie de indenização a ser paga pelos países considerados “desenvolvidos”?

— Não tem o menor problema. Que façam contribuições claras, honestas, como a Alemanha fez anteriormente, que ajudou na demarcação de terras indígenas com dinheiro colocado no BNDES, executado e feito pelo governo do Brasil, dentro das nossas necessidades, dentro da nossa política, não havendo nenhum outro interesse que não a defesa dos povos indígenas e a proteção. Isso, tudo bem. A coisa começa a complicar e ficar de forma diferente se, por trás desse gesto bom, possa haver outras intenções. Dizem que países não têm amigos, mas interesses. Eu acredito que os povos, como as pessoas, também têm amigos, sim. Pode haver e há países e pessoas decentes, corretos, de ação honesta, etc. Mas é preciso que tenhamos um cuidado necessário para separar o joio do trigo.

— Qual é a opinião do senhor sobre essa participação mais ativa de lideranças indígenas dentro do governo?

— Há duas coisas aí. Pelo menos, que a minha experiência indica, e eu vou ser muito claro a respeito. Eu acho que é importantíssima a participação dos índios na condução dos seus problemas, da vida, da política. Com certeza, é importante. Porém, não podemos nos esquecer que o que existe até hoje, até agora, principalmente, na demarcação de terras, das leis, foram feitas pelos brancos. Os brancos que criaram estes dispositivos que os protegem ou não. Então, a participação indígena, hoje, é muito importante. Sou favorável a isso. Porém, por exemplo, agora se criou o Ministério dos Povos Indígenas. Eu ainda não entendi, não sei se é porque ainda não foi formatado, mas eu não vejo grandes funções nesse ministério.

Eu vejo, por exemplo, a Funai, hoje, tem mais de 60 anos de experiência, é bastante conhecida pelos povos indígenas… Eu acho que [é importante] reorganizar a Funai, recolocar ali pessoas absolutamente comprometidas com a causa indígena, inclusive, índios ali dentro, como é o caso agora da Joênia [Wapichana] que está presidindo e dar a ela condição de efetuar os trabalhos em campo. Isso é muito mais importante do que o ministério. A menos que, depois de instalado totalmente este ministério tenha funções que eu não consiga ver talvez pelo meu afastamento da vida pública.

É mais importante a Fundação Nacional do Índio ser reorganizada com recursos humanos, econômicos, financeiros e refazer novamente… Ontem, eu vi uma portaria já retirando cerca de 50 administradores. São bolsonaristas que estavam ali, pessoas anti-indígenas que tinham que ser afastadas realmente. Esse é um trabalho importantíssimo. A lei que criou a Funai, é a lei que, até hoje, não vi coisa mais bem escrita, delineada, para a proteção dos povos indígenas do que está naquela lei que criou a Funai e deu atribuições a ela. Eu não conheço coisa melhor.

Temos que dar força à Fundação Nacional do Índio. A Joênia é excelente pessoa, já vem de suas lutas dentro do Parlamento e já traz um cabedal de experiência política. Ela poderá fazer um bom trabalho ali se tiver, se lhe forem concedidas as condições econômicas, financeiras e de pessoal para poder tocar a Funai e fazer o trabalho que a Funai tem que é, basicamente, sobre as terras indígenas, na proteção dos povos isolados. Se ela fizer um bom trabalho na Funai, acredito que vamos evitar muita coisa ruim. 

— Bolsonaro e integrantes do seu governo devem ser responsabilizados judicialmente?

— Antes de responder diretamente isso, vou dizer uma coisa. A meu ver, olhando toda a história que envolve os povos indígenas, eu não consigo ver um período pior que esse do Bolsonaro. E vou dizer o porquê. Esse período trata de uma ideia que foi organizada, pensada, preparada, colocada dentro do governo, utilizando a máquina do governo para ter o resultado que estamos vendo agora: os índios sem terra, esfomeados. Portanto, eu penso que o comandante geral dessa coisa horrível, o senhor Bolsonaro, dessa extrema-direita nefasta ao Brasil, ao mundo, deve ser responsabilizado. Chega de anistia. Chega de anistia, gente. Fizemos aquela primeira anistia de 1979, ficaram todos livres, embora tenham matado brasileiros. Deturparam, durante 20 anos, a Nação em todos os aspectos e ficou por isso mesmo.

Se a gente fizer novamente isso, vai ficar claro que “olha, vamos cometer novamente porque não acontece nada. No final, vira uma pizza e a gente, cada um come um pedacinho e fica por isso mesmo”. Eu acho que o Tribunal de Haia deve estar presente nesse julgamento, como também a Nação e nossos tribunais. E ele deve ser chamado à responsabilidade porque esses quatro anos do senhor Bolsonaro foram os piores anos, algo que pode ser considerado um genocídio. Estamos vendo o resultado. Não podemos “passar a mão por cima” e engolir novamente esses erros crassos e deixar tudo como antes. É tomar providências sérias a esse respeito.

— Eu queria que o senhor falasse um pouco sobre aquele território porque tem muitos povos considerados isolados. Qual é a importância desse território e por que não fazer o contato?

— Você deve saber que quem mudou a política de contato fui eu quando criei o departamento [de Povos Isolados, na Funai] e paramos de tentar fazer contato. Porque a ideia inicial do [marechal Cândido] Rondon era ótima. “São nossos irmãos, vamos atrás deles para que possam usufruir das benesses da civilização”, aquela coisa. E vimos que nada disso aconteceu. O Rondon, próximo à sua morte, se arrependeu de todos os contatos que tinha feito. Ele deixou claro, “se pudesse, não deveríamos ter feito os contatos que fizemos”. É difícil mexer com esses povos que são diferenciados, distantes no tempo, no espaço, da nossa visão de mundo. Sempre é uma violência. Por isso e por ter feito vários contatos — eu fiz com sete grupos diferentes — tive uma atividade muito forte nessa área.

E eu era do pensamento rondoniano, também achava que “vamos chamar nossos irmãos”, mas vimos que isso não acontecia, que era necessário haver uma mudança, porque dentro do Brasil você tem as administrações, principalmente as da Amazônia, onde cada um tinha uma ideia. “Eu, aqui na minha administração, não faço contato com índio”. O outro lá, “não, eu aqui vou fazer”. E era tudo no interesse das administrações e da política local. Eu falei: não pode ser assim. Essas coisas todas somadas, foi o que me movimentou a criar um departamento dentro da Funai, na época, o presidente da Funai me apoiou, fizemos todas as mudanças que teríamos que ter feito e criamos o departamento. Depois disso, fiz o primeiro encontro internacional sobre povos indígenas da Amazônia e do Gran-Chaco, em Belém.

Convidei todos os países vizinhos que têm ainda algum grupo ou dois ou três grupos de índios isolados. Convidei não só comunidades indígenas para estarem presentes, os seus representantes, como também a Procuradoria Geral de cada um desses países. Querendo ou não querendo, depois desse encontro, temos hoje na Bolívia, Paraguai, Peru, esta política definitivamente colocada.

— E por que não fazer o contato?

— Vamos voltar ao porque de fazê-lo. Era um porque baseado no Rondon, conforme falei. Ele era um positivista, da filosofia de Auguste Comte, e tinha a visão dos homens irmanados se auxiliando mutuamente. Com o passar do tempo, vemos que nada disso floresceu. E o próprio Rondon bateu no peito e disse: “Mea culpa, mea culpa”. Porque ele também fez vários contatos. E a conclusão que a diferença entre nós é tão grande que é melhor… Se não entendemos, não conhecemos uma coisa, não mexemos nela. Deixa quieta, vamos delimitar o seu território. Vamos delimitar a terra. A terra não prende eles. Não é um ambiente que ele não sai dali, é um limite para o branco não ultrapassar. Não é para o índio não sair, o índio sai a hora que ele quiser. E o dia que ele quiser ampliar o conhecimento com o branco, o que é um pouco difícil, porque na história toda vez que o branco chegou próximo dele, foi para causar o mal.

Então, eles têm um receio terrível. Portanto, vamos deixá-los, vamos proteger o meio ambiente. São povos pequenos. A outra parte da sua pergunta é sobre o número de povos isolados. Depois que eu saí do departamento que havia criado, eu creio que os que passaram ali, talvez, pela necessidade de solicitar mais recursos, porque sabe como é, em governo as necessidades são sempre maiores do que os recursos que estão à disposição. Então, eu estou imaginando que o pessoal que esteve ali depois de mim aumentou a questão dos povos isolados, numericamente. Talvez até conseguiu um pouco mais de recursos, alguma coisa assim. Agora, uma coisa é você dizer que no Brasil tem três grupos indígenas [isolados] e outra coisa é você dizer que tem 150, 200 grupos. É totalmente diferente.

E isso pesa no orçamento. Há um erro fundamental que está sendo divulgado. As organizações não governamentais que estão aí podem até errar um número ou omitir. É natural que isso possa acontecer. O Estado é que não pode falar mentiras, informar erradamente. O Estado tem que divulgar a verdade e o que é correto e certo. Então, falam hoje sobre 150 grupos de índios isolados no Brasil, que em tal lugar tem 40 grupos. Tudo isso não é verdade. 

Você não encontrará um só grupo desse, ainda isolado, que tenha mais de 150 pessoas. Isso desfaz, isso diminui a importância deles? Não. Esses povos são donos de línguas que nós nem sabemos, donos de uma história, de uma cultura que devemos preservar, que devemos proteger. Essa é a importância dos povos isolados.

Agora, recentemente, morreu aquele índio que nós chamávamos de “índio do buraco”. No meu departamento, naquela época, criamos uma frente que englobava em território o índio do buraco. Eu vi, por acaso, as imagens da autópsia sobre ele. Esse homem viveu só a vida inteira. Ele morreu sozinho. Não quis nada. Nós nos aproximamos dele várias vezes, com várias línguas faladas indígenas, e ele nunca respondeu. Em algum momento da vida, ainda que seja quando era jovem, viveu com pessoas, tanto é que sabia fazer arco, flecha. Fazia sua rocinha, colhia o milho. Então, teve uma proteção familiar que o ensinou. Como esse pessoal faleceu, desapareceu? Com certeza é pela ocupação violenta que houve naquela região. Foram mortos e ele sobrou e viveu sozinho.  •

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