Entrevista Eugênio Aragão – “A partir de 1º de janeiro, a baderna golpista vai acabar”
Procurador da República aposentado, Eugênio Aragão considera absurdo que a PM não tenha prendido nenhum dos criminosos que atuaram nas ruas de Brasília. E mais. Acusa o atual presidente de acobertar os responsáveis. “Bolsonaro é causa e fim desses atos golpistas. O fato de ele ter recebido líderes dessa baderna dentro do Alvorada não deixa de ser algo extremamente grave”
O Brasil convive com uma crise política e social há quase 10 anos. A situação econômica, por sua vez, não é boa. Desde o Golpe de 2016 o Estado brasileiro, os serviços públicos, os mecanismos de proteção social foram muito desorganizados. A relação entre os poderes foi tensionada e se deteriorou. As instituições perderam credibilidade, a imprensa foi muito atacada.
Diante desta realidade, o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, que integrou o Gabinete de Transição e foi advogado da campanha do presidente Lula, afirma que o governo que vai assumir no dia 1º de janeiro de 2023 tem como missão a reconciliação da sociedade brasileira. E, por isso, não será um governo progressista do PT. A principal tarefa, na opinião de Aragão, é “sepultar o fascismo”.
Nesta entrevista a Focus Brasil, Aragão fala sobre a omissão das instituições de segurança e da PGR diante dos atos de vandalismo praticados por bolsonaristas na cidade de Brasília. Ele elogiou a postura adotada pelo futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, e diz acreditar que a troca no comando a pasta e na coordenação geral da Polícia Federal vão fazer com que essa “bagunça” permissiva chegue ao fim.
Procurador da República aposentado, ele avalia como absurdo que nenhum bolsonarista tenha sido preso sendo que os atos ocorreram diante de policiais militares do DF. Aqui, Aragão analisa a origem desse movimento radical, a relação com os militares e acredita que políticos eleitos e que o próprio Jair Bolsonaro sofrerão punições pela Justiça.
Focus Brasil — Com relação aos acontecimentos que o país assistiu em Brasília, no dia da diplomação de Lula, as instituições foram omissas diante dos atos de vandalismo?
Eugênio Aragão — A primeira coisa que estranha nesses atos de vandalismo, não chego a chamar de terrorismo porque são atos desconexos, sem pé nem cabeça, o terrorismo tem um objetivo político muito determinado e isso eles [bolsonaristas] não têm. São um bando de baderneiros insatisfeitos com a diplomação do Lula. Ponto, foi isso. Mas essa baderna não gerou nas autoridades policiais, ao que tudo indica, nenhum tipo de responsabilização porque ninguém chegou a ser preso em flagrante, apesar da polícia estar lá e os fatos estarem acontecendo nas suas barbas. O secretário de Segurança Pública avisou que ninguém foi preso. Ninguém foi preso. Mas como ninguém foi preso? Eles destruíram patrimônio privado, vários automóveis de pessoas que não tinham nada a ver com a história foram queimados, destruíram patrimônio público. Ônibus de transporte público foram incendiados. Causaram pavor nas pessoas, principalmente, aqueles que estavam nas redondezas e se refugiaram em shoppings centers, nos hotéis… Aliás, minha ex-esposa também estava nessa. Segundo meus filhos, ela estava dentro de um ônibus desses que alvo de incêndio. Isso, evidentemente, deixa o pessoal em pânico. Mas a polícia ficou lá, mandou suas bombas de gás lacrimogênio… Fez um trabalho rotineiro, sem nenhum objetivo de responsabilizar quem quer que seja.
Isso é extremamente grave. Agora, para nossa tranquilidade o prospectivo ministro da Justiça, o senador eleito Flávio Dino, avisou que a Polícia Federal colheu inteligência sobre essa atuação, identificou pessoas e, a partir de 1º de janeiro, a conversa será outra. Acredito que, portanto, essa baderna tem um prazo de validade. Eu vejo desse jeito.
— Até a Folha fez uma matéria opinativa dizendo que o Bolsonaro está por trás dos atos golpistas. O senhor comunga dessa opinião?
— Acredito que o Bolsonaro é causa e fim desses atos golpistas e que, de alguma forma, sim, ele está, até por sua omissão, uma omissão consciente, planejada, por aquilo que a gente chama em Direito Penal, de omissão imprópria porque, na verdade, você quer o objetivo da sua omissão. Ou seja, você quer que aquilo aconteça com sua omissão, uma omissão imprópria. E o fato de ele ter recebido líderes dessa baderna dentro do Palácio do Alvorada não deixa de ser algo extremamente grave. Bolsonaro, além disso, está conectado em rede com esse povo todo. Segundo a nossa inteligência de rede da campanha, parte dessa baderna e de toda essa movimentação golpista está sendo pilotada a partir dos Estados Unidos, do pessoal que fez a invasão do Capitólio. Tem gente na internet trabalhando e se comunicando, tá? Portanto, o que é mais grave ainda é que essa baderna tem um fundo político que vem também do exterior. Há um nítido desejo desse pessoal de repetir no Brasil um Capitólio. O que não vai acontecer, me parece, até porque a dinâmica da nossa inauguração é diferente da americana.
Agora, podem acontecer fatos dramáticos durante o dia da posse se a gente não tomar todas as precauções porque os organizadores estão com a expectativa de virem para Brasília 350 mil pessoas. E aí, realmente, se não houver um esquema de segurança muito bem bolado, esse pessoal pode criar situações extremamente perigosas.
— O ministro Alexandre de Moraes disse que quem atuou contra o sistema eleitoral, a democracia, será responsabilizado… O senhor acha que isso depende também da mudança de direção na Polícia Federal? O clã Bolsonaro e deputados eleitos possam ser responsabilizados?
— Primeiro, devo dizer o seguinte: ele sabe do que está falando porque está nas mãos do corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Benedito Gonçalves, as ações de investigação judicial eleitoral que propusemos. Uma diz respeito, digamos, às bondades distribuídas pelo Bolsonaro com dinheiro público para facilitar a reeleição ou a compra de votos, falando de forma curta e grossa. E, por outro lado, a ação do ataque, ou seja, da descredibilização da Justiça Eleitoral. Essa também está proposta como abuso de poder político do Bolsonaro.
No polo passivo daquela outra ação que propusemos antes, que é sobre o ecossistema bolsonarista, estão no polo passivo vários desses atores. Além do Bolsonaro, [Hamilton] Mourão, Braga Neto, Nicolas [Ferreira], Carla Zambelli, os filhos do Bolsonaro, todos os três, mas também Bia Kicis e outros atores envolvidos nessa rede de mentiras que andaram espalhando. As ações estão extremamente bem instruídas. A equipe lá do escritório fez um esforço muito grande para instruir as ações e a chance de que sejam julgadas procedentes é muito alta. E aí, realmente, todos perderão seus direitos políticos.
Quem está investido de mandato nem por isso é cassado automaticamente. Por exemplo, Flávio Bolsonaro ainda tem quatro anos de mandato de senador e Carlos Bolsonaro é vereador desde 2020. Esses não serão necessariamente cassados, nesse momento. Mas os que foram eleitos dentro desse contexto de espalhar mentiras podem perder seus mandatos. Ou seja, aqueles que foram candidatos nessa campanha e se utilizaram desse estratagema poderão perder os mandatos. Encaminhamos também na base de representação para o inquérito dos atos anti-democráticos que está no Supremo Tribunal Federal. Logo, isso também vai ter um tratamento penal, o que pode resultar em consequências mais gravosas ainda para essas pessoas.
— A Jovem Pan está todo dia atuando como uma estimuladora dos atos antidemocráticos. Por ser uma concessão pública, não estão infringindo a lei?
— A Jovem Pan já foi alvo de ações nossas, está dentro dessas ações também. Não chegamos a pedir a cassação ou a suspensão da concessão porque havia toda aquela campanha de falar em censura. Mas que existe um claro abuso do poder de comunicação, dos meios de comunicação, existe e a Jovem Pan está dentro desse contexto.
— Ela e seus arautos. Porque o microfone não fala por si, o microfone tem essa turma de picaretas tranvestidos de jornalistas por trás.
— Infelizmente a direita faz um trabalho que a gente chama de verificação ou de autorização das narrativas. Essas narrativas têm que ser certificadas de alguma forma e parte desse contexto de certificação é exatamente essa forma como se apresenta. Pega, por exemplo, o Brasil Paralelo, tem um layout extremamente profissional, você até pensa que aquilo lá é jornalismo sério. Mas não é. É só a forma. É a forma que eles utilizam para fazer com que as pessoas acreditem que isso é coisa séria. Infelizmente. E nisso, gastam tubos de dinheiro. Acho que um dos aspectos mais importantes dessas ações é correr atrás do dinheiro de quem são os grandes financiadores desses esquemas.
— Voltando aos atos de vandalismo, há duas questões que chamam atenção. Primeiro, Bolsonaro quebrou o longo silêncio falando a apoiadores, dando guarida a esses movimentos golpistas. Michelle Bolsonaro, por sua vez, enviou comida e pequenos mimos para bolsonaristas acampados em Brasília. Esse tipo de ação, por si só, já não deveria ser alvo de investigação da Procuradoria Geral da República?
— O apoio é evidente. A forma como ele se coloca na frente daquela turba que se reuniu diante do Palácio do Alvorada já no domingo… Ele agradeceu esse pessoal pelo trabalho que estão fazendo e disse que não devem perder a esperança e tudo mais. Isso, claro, é uma evidente instigação para a prática do crime. Não tenho dúvida nenhuma. Agora, precisamos ter uma Procuradoria Geral da República séria. Sabemos que o procurador-geral da República atual não está muito disposto a enfrentar o Bolsonaro, muito menos a vice-procuradora-geral que tem amizades próprias dentro dessa área. Temos que esperar. Bolsonaro vai perder o seu foro privilegiado, vai para a primeira instância, onde o Ministério Público, com pessoas muito mais motivadas e capacitadas, cumprirá o seu dever. Vão abrir os inquéritos ou receber os inquéritos do Supremo Tribunal Federal e darão o devido tratamento. E aí o doutor [Augusto] Aras não vai poder mais impedir as investigações e as consequências legais sucessivas.
— O senhor não acha que a omissão e a inépcia do Ministério Público Federal e dos estaduais favoreceu essa cruzada golpista?
— Com certeza. Há uma tolerância muito grande de certos setores da burocracia com esses golpistas. Vemos que há, inclusive, até juízes que têm simpatias pelos golpistas e alguns expressam mais e outros menos. A desembargadora Maria do Carmo, do TRF da 1ª Região, teve instaurado contra si uma reclamação disciplinar pelo fato de ter publicado no Twitter uma saudação a essa verdadeira legião de “canarinhos” que se reúne na frente dos quartéis. Num tuíte, ela mostra todo o seu bolsonarismo e isso vai ter consequências porque é proibido pelo Estatuto da Magistratura que juízes expressem posições político-partidárias. Há outros também. Existem no Ministério Público pessoas de vários tipos. Hoje, na situação como está, não se pode mais generalizar. Existem, sim, membros do Ministério Público que têm instaurado procedimentos, mas a verdade é o seguinte: os grandes personagens são deputados, senadores, presidente da República, ministros de Estado e esses não chegam nas mãos do Ministério Público, vamos dizer, no rés do chão. Estão na mão do procurador-geral da República. Eventualmente, tratando-se de autoridade com foro privilegiado no nível estadual, [estão] nas mãos dos procuradores-gerais de Justiça, muito mais politizados porque são escolhidos pelos governadores e pelo presidente da República.
Então, podemos ter uma falsa impressão de que todo o Ministério Público está envolvido nisso. Eu revejo algumas coisas hoje de meu juízo sobre o Ministério Público que é o seguinte: o MP esteve majoritariamente envolvido no golpe com a Lava Jato, mas uma vez que muitos deles perceberam ao que isso levou — Bolsonaro ser o presidente da República, que escolheu um procurador-geral que enfraqueceu visivelmente a instituição, que hoje não goza do respeito de outrora — esses colegas hoje se postam claramente contra isso que está acontecendo. Houve uma transformação. Não sei se a lição está aprendida dentro do espírito corporativo. Como é que isso vai funcionar durante o próximo governo? A gente tem que primeiro observar, dialogar, ver como é que a corporação vai se portar. Mas o fato é que existe hoje uma maioria, me parece, razoável, que se posta contra o modo de governar de Bolsonaro.
— Um dos grandes desafios do próximo governo vai ser repactuar as instituições? Porque não é apenas a relação entre os poderes. O senhor mencionou, o MPF foi fundamental para o golpe e a Polícia Federal teve a participação. Durante o governo Bolsonaro a PF foi muito desorganizada. A Polícia Rodoviária Federal também… E a gente vem nesse processo de desgaste desde 2014…
— O presidente Lula, ao falar que a imprensa foi enganada, de certa forma, quer manter aberto canal de diálogo, até para se colocar como uma antítese daquilo o que é Bolsonaro, que sempre destratou a imprensa, sempre xingou e ameaçou jornalistas. Lula, não. Lula não é isso. É o contrário. Lula é aquele que respeita o jornalismo, respeita a liberdade de imprensa. Podem até falar mal dele, mas ele é uma pessoa que vai ter diálogo. Ele busca mostrar que não tem ressentimentos. Se saísse batendo na imprensa, diriam o contrário. Mas o grande desafio desse governo é reconciliar a sociedade. E eu acho que o Lula começou bem porque criou uma frente ampla em que adversários do passado estão juntos. O objetivo agora é um combate sem trégua contra o fascismo. Portanto, não temos que ter muita expectativa de que este será um governo progressista do PT. Não. A sua tarefa principal nesse momento é, realmente, sepultar o fascismo. É isso.
E aí, claro, forças democráticas conservadoras também terão seu papel dentro dessa frente ampla. Não é só a esquerda, vamos ter centro e centro-direita eventualmente também, desde que se comprometam com o processo democrático. E eu acho que esse é o grande papel do presidente Lula naquilo que tem declarado, no seu derradeiro mandato como presidente da República: reconciliar o país. Isso é fundamental. E aí, claro, as instituições que estiveram envolvidas no golpe, têm responsabilidade. Como lidar com elas é um jogo de xadrez extremamente complexo. Aliás, lidar com o corporativismo brasileiro não é fácil. Para mim, a origem desse corporativismo destrutivo, antipolítica, falso moralista está na política remuneratória. As instituições estão ocupadas por corporações ávidas por vantagens e para serem colocadas dentro de uma bolha social de bem-estar, para não se confundirem com o resto da população. E aí brigam entre si pelos nacos de competências estratégicas que possam colocar uma em cima da outra. Brigam por uma posição hierárquica nessa cadeia alimentar do serviço público.
O momento é propício para se fazer um grande acordo entre os Três Poderes. Não é possível que o Legislativo adote critérios de política de pessoal distinta do Executivo e do Judiciário também e, com isso, haja esse tipo de atuação das corporações de buscarem ser melhor atendidas. Precisamos realmente criar um tipo de remuneração única,, uma política remuneratória única entre os Três Poderes e quiçá também estados e municípios, em que claramente as funções estejam definidas com base na especialização dos seus agentes. E quando conseguirmos fazer um plano cartesiano com esses dois vetores, vamos conseguir localizar todos os cargos públicos dentro desse plano e criar estruturas mais rígidas remuneratórias de forma que uma Associação Nacional dos Procuradores da República ou uma AJUFE, Associação de Juízes Federais, não possa colocar o Poder Executivo contra a parede para dizer “olha, eu quero sair fora do mundo, pare o mundo que eu quero descer. Eu quero sair fora dessa matriz de pagamento”. A gente tem que constitucionalizar essa matriz de pagamento.
No momento em que se cria um sistema remuneratório mais rígido, com princípios claros, dialogado, acaba com o impulso principal da atuação de risco, que é aquela busca por proeminência, aquela busca por prestígio que é um ativo financeiro para as carreiras do serviço público. É com isso que a gente tem que acabar.
– E quanto aos militares?
– Os militares são outro contexto. Nós sabemos que o golpismo está no DNA militar desde 1936. Eles gostam de ficar lá se festejando com uma vitória contra a chamada Intentona Comunista para justificar o ódio a todo o posicionamento político de esquerda. E isso não tem nada a ver com Guerra Fria. Em 1936, não tinha guerra. Na verdade, o que eles veem como extremamente disruptivo naquele evento é o fato de que a revolta foi desencadeada por militares contra militares. Ou seja, um grupo militar venceu o outro grupo e, a partir disso, nasce a lenda do comunismo contra o Brasil. E eles não desligaram essa chave. Por isso que você tem ainda hoje militar falando em comunismo em pleno século 21.
O Muro de Berlim caiu em 1989. É claro que o socialismo não morreu, as pessoas querem políticas mais justas, que beneficiem a grande maioria dos vulneráveis na sociedade e que, por isso, são de esquerda. Mas aquele comunismo da Guerra Fria, União Soviética, aquilo acabou.
— Essa questão do comunismo em si não é um espantalho da regressão reacionária? Não é só uma capa que usam para tentar passar uma pauta ultrarreacionária, com o “trumpismo” nos EUA, Le Pen na França, a primeira-ministra da Itália agora…
— Vejo esse apelo à luta contra o comunismo, primeiro, como uma coisa anacrônica. Em segundo lugar, a maioria desses idiotas são espertos, perigosos, mas pouco instruídos. Sequer leram Marx, nem sequer o Manifesto Comunista, muito menos o resto. Nunca leram Lênin, nunca leram nada. Portanto, não sabem de que estão falando. Quando usam essa bandeira é para defender os seus supostos valores conservadores. Essa pauta é posta como uma antípoda daquilo que eles chamam de comunismo. Só que o que combatem como pautas comunistas, na verdade, são pautas liberais: o direito ao aborto, a educação sexual… Não me consta que houvesse educação sexual na época do stalinismo na União Soviética. Essas são pautas de um mundo da comunicação global e é contra isso que eles se impõem. No fundo, o que está por trás disso é a luta dos perdedores da globalização.
Esse movimento conservador global vai contra aqueles valores liberais universalizados pela globalização. Não tem nada de socialismo por trás disso. Absolutamente nada. “Gay Pride Parade” é uma manifestação do liberalismo norte americano que se espalhou no mundo. Portanto, isso não tem nada a ver com o comunismo. O comunismo acaba sendo, na verdade, uma desculpa para uma reação violenta porque sabemos que na época da Guerra Fria o anticomunismo foi extremamente violento. Então, o objetivo é fazer política violenta. Eles querem, na verdade, encontrar um inimigo que possam, vamos dizer, combater letalmente, com força letal. É o prazer na morte do inimigo. E isso eu acho muito mais perigoso.
— Aqueles que estão nas ruas do Brasil pedindo o golpe militar são os defensores da tortura, da prisão dos adversários, da morte…
— Querem a volta da ditadura. Eles batem palmas para Brilhante Ustra. Eles foram despertados com ódio pelo PT por causa da Comissão Nacional da Verdade, o que você quer mais? Não querem nem sequer reconhecer os erros mais óbvios do passado. Será que esses “canelones” enrolados em bandeiras na frente dos quartéis, será que se fosse a filha deles que tivesse sido raptada pela Operação Bandeirante, torturada e abusada sexualmente, iam continuar dando apoio a isso? É porque é dos outros. Então, me parece que lidar com isso é extremamente complexo.
Agora, lidar com os militares é mais porque a gente tem que tirar essa chave deles num momento que é pouco propício porque esse discurso violento, conservador, contaminou as Forças Armadas ou “recontaminou”. Todo aquele esforço que a gente fez durante os 13 anos de profissionalizar as Forças Armadas, equipá-las, de mandá-las a participar de missões internacionais de paz, de ensinar-lhes direito internacional humanitário juntamente com a Cruz Vermelha Internacional, de buscar esse contato com as forças armadas democráticas de outros países… Isso tudo parece que não valeu nada, porque aqui está de volta aquele bom e velho reacionário que não abre mão de elogiar, no dia 31 de março, o Golpe Militar de 64.
Então, como trabalhar isso? Isso, para mim, só tem um jeito. Mexer no DNA deles que é a doutrina militar. E mexer na doutrina militar significa ter uma possibilidade de fazê-lo pelo seu alto comando. E eu acho que é legítimo a sociedade democrática brasileira querer discutir que tipo de Forças Armadas queremos ter. Perfeitamente legítimo. E esse trabalho de reformulação doutrinária precisa passar também para o Congresso Nacional. Isso é mais do que legítimo. E significa que o presidente Lula vai ter que escolher muito bem os generais que serão promovidos para compor o alto comando. Temos que rever essa estratégia de como lidar com as Forças Armadas para, realmente, garantir que se tornem forças leais à Constituição de 1988. Não, não vão dar mais golpe, não vão mais. Porque o mundo de hoje não aceita mais esse tipo de golpe.
— O senhor acredita na possibilidade de revogação dos sigilos de 100 anos decretados pelo Jair Bolsonaro?
— A verdade é que o tema é muito complexo porque a grande maioria dos sigilos, na verdade, não chegou a ser decretada. Simplesmente foram negados os pedidos de acesso à informação pela LGPD. Negados à base de uma interpretação extremamente generosa sobre dados pessoais. Bastava a informação que um jornalista queria acessar um CPF e alegava-se que não podia acessar porque era dado pessoal. Mas há, sim, um esforço, isso não há dúvida nenhuma, do governo de ser o mais transparente possível, de entregar tudo o que é dado, inclusive, dados que devem ser de interesse público, que dizem respeito à governança, inclusive ao governo que está findando. Isso daí, não tenha dúvida, esses dados serão acessíveis. •