Diretor da Quaest, o cientista político aponta que as eleições de 2022 são a primeira em que o país está dividido para além da política. “Os eleitores agora passam a se ver em campos antagônicos como inimigos e não como adversários mais”, explica. “Não é mais sobre branco e preto, vermelho e amarelo, azul e vermelho. Não. É sobre visão de mundo”

 

 

 

As eleições de 2022 serão as primeiras eleições em que a sociedade brasileira está polarizada afetivamente, no maior nível histórico que a gente já viveu. E o que significa isso? É a primeira vez que os partidos políticos antagonizam uma disputa, mas é a sociedade quem está polarizada. A disputa entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro é a primeira em que estão em disputa duas visões de mundo diametralmente opostas.

Esta é a avaliação do cientista político Felipe Nunes. À frente do Instituto Quaest, ele tem uma análise curiosa sobre o cenário político brasileiro. Diz que é essa polarização que explica o grau de violência política que o país experimenta pela primeira vez desde a redemocratização, numa escala inédita. “Hoje, quando a gente faz pergunta em pesquisa se o seu filho estiver noivo de uma pessoa que pensa politicamente diferente de você, você aprova ou reprova esse casamento? Mais de 80% dos brasileiros reprovam”, aponta.

Nesta entrevista à Focus Brasil, este mineiro de fala ligeira, que vive agora mergulhado em números e recortes do eleitorado nacional, explica o que está acontecendo com a cabeça do eleitor, as chances de Lula se eleger no primeiro turno e porque o atual presidente tem dificuldades de se reeleger. “A economia e as questões sociais como um todo têm um papel muito maior do que corrupção e violência, o que mostra que vai ser determinante na eleição”, aponta. A seguir, os principais trechos da entrevista:

 

Focus Brasil — Existe já alguma leitura a partir do que tem sido percebido pelas pesquisas dos posicionamentos mais radicais do Bolsonaro, mais conspiratórios, pode acabar tirando votos ou o afastando mais do centro?

Felipe Nunes — Eu tenho classificado esse tipo de ação do presidente como tiro no pé. Eu vou explicar o porquê: o momento em que o Bolsonaro mais ganhou popularidade e espaço eleitoral neste ano, foi exatamente nos momentos em que ele estava mais calado e afrontando menos as instituições. E isso nas pesquisas se dá de uma maneira muito clara. A gente pergunta nas surveys: você sabe que o presidente está questionando as urnas eletrônicas, a confiabilidade das urnas eletrônicas? E aí as pessoas dizem sim ou não, tem um percentual alto que diz que sim, outro que diz que não. Acho que 60%, aproximadamente, já sabe desse posicionamento. E aí a gente pergunta: e como isso impacta a sua postura em relação ao presidente? Isso aumenta ou diminui as chances de você votar nele? Ou não impacta de jeito nenhum? E aí você tem um percentual de 30% que diz que aumenta, 30% que diz que diminui e o resto lá que diz que não faz diferença. Só que o detalhe é o seguinte, quando a gente abre o dado comparando o eleitor do Lula, o eleitor que já é do Bolsonaro e o eleitor que está em disputa, a gente percebe claramente o tiro no pé, porque o eleitor do Lula, é claro, diz que diminui a chance de votar no Bolsonaro ou que não vai mudar, vai continuar não votando. O eleitor do Bolsonaro diz que aumenta as chances de votar nele com essa manifestação, com esse tipo de tensionamento ou que vai continuar do mesmo jeito, ou seja, votando nele. Ou seja, aí você está falando para convertido, gente que já gosta ou não gosta.

A eleição é sempre decidida não pelos apaixonados pelos políticos, pelos líderes. Ela é decidida por quem está no meio, quem não tem posição clara sobre o assunto. Nesse meio sabe qual é a resposta? A grande maioria das pessoas que hoje não vota nem em Lula nem em Bolsonaro dizem que diminuem as suas chances de votar em Bolsonaro dado o tensionamento institucional. Então, cada vez que o presidente toma esse tipo de atitude, na minha avaliação, o que ele está fazendo é preparando o seu exército para o que pode ser o pós-eleitoral. Ou seja, está tentando mobilizar as pessoas para que haja uma saída na eleição de um discurso de que não perdeu ou algo do tipo. E ele faz isso não para mobilizar o eleitor que ele precisa para ganhar a eleição, mas mobilizando o eleitor que ele precisa para ganhar sustentação política e sobrevida.

 

— Ao mesmo tempo em que o Bolsonaro apresenta esse radicalismo, está usando a máquina pública. Vai conseguir o voto do centro organicamente, sem dialogar?

— Acho que a estratégia do Bolsonaro é uma combinação de populismo fiscal para falar com o eleitor pragmático, com tensionamento institucional, para falar com o eleitor que não acredita nas instituições, está insatisfeito com a política. Ele está tentando juntar esses dois sentimentos. E essa estratégia em volta da PEC é uma estratégia que tem, me parece ter uma perspectiva relevante. Essa estratégia é triangulação, é quando o candidato se transveste do argumento do seu adversário para tentar anular o efeito que teria na eleição. Então, quando o Bolsonaro se transforma num candidato que parece se preocupar com a população, que parece estar ligado à ideia de controlar inflação, de baixar preços, etc. O que ele está fazendo, no fundo, é adotando a estratégia do Lula para si e tentando com isso anular o efeito da imagem, da reação que as pessoas têm, da relação positiva com o Lula. Na história de eleições recentes, e tem dois casos de sucesso: Bill Clinton, que trouxe a agenda de reformas liberais para o seu discurso e com isso ganhou dos republicanos nos Estados Unidos no momento em que o Bush era ainda uma figura importante; e o Tony Blair, que na Inglaterra trouxe o discurso da educação, dos investimentos sociais para sua agenda e anulou a oposição com essa lógica.

Bolsonaro aposta, claramente, em tentar ativar o coração do eleitor pragmático por meio de uma sensação positiva econômica, no curto prazo, mas sem deixar de mobilizar aquele eleitor radicalizado, de direita, que é contra as instituições, que acha que o Brasil não funciona direito e que o sistema político é todo corrompido etc. Eu acho que é aí que ele está apostando numa virada.

 

— Mas deixa uma conta enorme para o ano seguinte. Você acredita que esse movimento do Bolsonaro pode roubar eleitores do Lula? Os eleitores que estão com Ciro, Simone Tebet, poderiam decidir votar no Lula no 1º turno?

— Acho que a primeira coisa é o seguinte: se a gente olha o efeito que o Auxílio Brasil gerou politicamente até aqui, ele foi nulo. Se a gente compara as pesquisas de intenções de voto de novembro do ano passado até maio deste ano, vamos perceber que não há nenhuma diferença estatisticamente significativa entre quem recebe ou não recebe o auxílio no que diz respeito a votar ou não em Bolsonaro ou em Lula. A gente vê duas linhas paralelas, independentemente de se você recebe ou não, se já votava no Lula, continua. Se você não votava, continua a não votar. Por que disso? Porque o efeito que o Auxílio Brasil poderia gerar foi consumido pelo efeito da inflação naquele mesmo momento. A subida de preços foi combinada com o pagamento do auxílio. Então, uma coisa anulou a outra e o efeito não se deu.

O que mudou? De junho para julho, ao contrário do que tinha acontecido até então, Bolsonaro conseguiu gerar expectativa na população, de que ele seria capaz, com todas as medidas que estava tomando, de encontrar soluções para os problemas. Estou falando de quê? Da briga com a Petrobrás em torno do valor da gasolina, da legislação para travar o ICMS, do aumento do Auxílio Brasil, dos incentivos e subsídios para caminhoneiros e taxistas… Tudo isso gerou a sensação, numa parte do eleitor, de que o presidente está tentando fazer o que pode.

E a gente perguntou isso na pesquisa: você acha que o Bolsonaro está fazendo o que pode para resolver os problemas? 42% dizem que sim. São 11 pontos a mais do que ele tem de intenção de voto. Ele tem 31% de intenção de voto e 42% de gente que acha que ele está fazendo o que pode. Ou seja, no fundo, nesse momento a gente vive uma circunstância em que o presente gerou uma expectativa nas pessoas. O que a gente não sabe é se essa expectativa gerada vai virar euforia, porque o dinheiro vai chegar, as benesses vão chegar, a gasolina vai baixar e as pessoas vão se animar com isso, ou se isso vai virar frustração. Se virar euforia, a projeção que a gente faz é que ele consiga tirar entre 4 e 5 pontos de intenção de voto do Lula nos próximos dois meses. Se virar frustração, a gente projeta que a vitória do Lula no primeiro turno vira realidade.

 

— Daí o desespero do governo de levar para o segundo turno. A virada seria possível?

— Eu não sei se seria possível, mas é bom lembrar que Bolsonaro pode ser o primeiro presidente da história do Brasil que disputa a reeleição e chega em segundo lugar. Se a gente olhar para o Fernando Henrique, Lula e Dilma, os três que disputaram reeleições até aqui chegaram… Não só estavam na frente nas pesquisas o tempo todo ou a maior parte do tempo e, segundo, foram para o segundo turno… No caso do FHC já ganhou logo no primeiro. Mas Lula e Dilma chegaram no segundo turno na frente. Bolsonaro vai ser o primeiro, pelo que as pesquisas estão indicando hoje, que tem chance de chegar em segundo lugar. Então, isso é muito diferente do que a gente está acostumado, de modo que o presidente tem que fazer ações um pouco mais “ousadas”, digamos assim, do que outros. Ele está jogando com as armas que pode para pelo menos tentar levar o jogo para o segundo turno.

 

— Com base no que a gente conhece da realidade das eleições, nenhum presidente é eleito sem ter arranque nos quatro maiores colégios eleitorais: São Paulo, Rio, Minas, e Bahia. A última rodada de pesquisas da Quaest mostra que Lula já teve situação mais confortável em três dos quatro colégios. Por que esses três colégios são decisivos?

— O Sudeste tem duas características fundamentais em qualquer lógica de geografia eleitoral. Muita gente não ideológica, ou seja, muita gente que muda de voto, que muda de opção dependendo da opinião e das condições do jogo eleitoral. É onde você tem grandes eleitorados afetados por muita informação e podem, justamente por esse efeito, mudar de opinião ao longo do tempo. A gente viu isso acontecer. Então, por que eu fiz essa análise da diferença ao longo do tempo entre Lula e Bolsonaro? É importante a gente entender o seguinte: se a gente olha para a história, o PT sempre ganhou com muito voto de frente na Bahia e me parece que isso vai acontecer de novo. O PT vai ter uma votação para presidente muito vantajosa na Bahia. No Rio, o PT de 2002 pra cá, tirando a eleição de 2018 — a eleição de 2018 foi uma exceção —, o PT ganhava com margem pequena. Em Minas, tirando a eleição de 2018, o PT também ganhou com margem um pouco maior do que essa. Mas em São Paulo, o PT não vence desde 2002. Então, vamos colocar em perspectiva.

Neste momento, Lula está ganhando em São Paulo, mesmo que a diferença esteja diminuindo. Está ganhando em Minas por diferença parecida com aquela que o PT ganhou em 2002, 2006, 2010 e 2014. E está empatando no Rio, numa tendência parecida com o que aconteceu em 2006, 2010, 2014. Ou seja, o eleitorado brasileiro, com o aproximar da eleição, parece que vai constituindo o mesmo estilo de voto, uma mesma maneira de se comportar que é provavelmente o PT perdendo o estado de São Paulo, o que seria normal. Um empate do Lula em São Paulo já é uma vitória porque desde 2002 ele não ganha lá.

Esse resultado, se a gente põe em perspectiva histórica, dá uma vitória para o Lula com certo conforto. Por isso que era importante olhar para esses quatro estados e ver essa diferença. Isso porque, no fundo, as coisas parecem estar voltando ao seu normal. O anormal está sendo hoje o Lula vencer em São Paulo. Isto é muito diferente do que a gente viu historicamente.

 

— Isso é resultado da insatisfação geral das pessoas? É a economia que está afetando dramaticamente o voto de Bolsonaro? A sensação de piora da vida das pessoas…

— O principal preditor de voto hoje é a economia. Se você pergunta para as pessoas: olha qual o principal problema que o Brasil tem hoje? Você vai ouvir duas respostas. A primeira é a economia. E por economia estou falando de uma mistura de inflação, desemprego e crise… Falta de crescimento. Quando você olha em quem essas pessoas estão votando, é quase uma diferença de 30 pontos pró-Lula. Aí você vai para um outro lugar, que é “o principal problema do Brasil é a violência”, pouca gente fala isso, mas para quem acha isso, Bolsonaro está ganhando. Pra quem diz que “o principal problema do Brasil é a corrupção”, também é pouca gente, 10% dos eleitores, mas o Bolsonaro vence aí. Então, se a gente computa o resultado final, a economia e as questões sociais como um todo têm um papel muito maior do que corrupção e violência, o que mostra que vai ser determinante na eleição deste ano a percepção das pessoas de curto e longo prazo de quem é capaz de resolver o problema econômico. Acho que isso está no centro do debate sobre a eleição que está se aproximando.

 

— Há um temor da eventual ascensão do Bolsonaro… Seria um fato inédito, a 70 dias das eleições, o presidente se recuperar a ponto de superar a rejeição, que bate em 55%.  Como você enxerga isso?

— É improvável que aconteça essa recuperação… Olhando só para os números, olhando para o cenário… Pesquisa não é prognóstico, pesquisa é diagnóstico. A gente só olha para o momento. A gente não sabe o que vai acontecer lá na frente. É bom dizer isso, mas de fato seria… É improvável que haja uma mudança absurda no quadro e que, a não ser que uma segunda facada aconteça, sei lá, uma coisa externa… Mas em um cenário de temperatura normal e pressão, as coisas tendem a ser ruins para o presidente. Mas a gente só pensa isso por um motivo: esta é uma eleição de dois presidentes. Bolsonaro está disputando a eleição contra o Lula, um nome testado, conhecido, que tem qualidades e defeitos reconhecidos na população. Então, uma mudança nos 70 dias que faltam é mais difícil. Tem que aparecer  algo muito inédito para que o eleitor que hoje está votando no Lula deixe de votar nele. Esse que talvez seja o maior desafio que Bolsonaro enfrenta. Tem que ganhar a eleição da pessoa sobre quem tudo o que podia ser dito de bom ou ruim já foi dito.

 

— Daí o fracasso da “terceira via”?

— A terceira via fracassou, na minha avaliação, por dois motivos: primeiro, disputou a eleição em 2022 como se estivesse em 2002. Eleição hoje em dia é uma guerra sem fim, é uma disputa que é construída na guerra de narrativas diariamente. Quando a terceira via, lá atrás, fragmenta-se e não se organiza em torno de um nome forte, abre espaço para que o eleitor se disperse e passe a olhar para os dois polos, os dois grandes nomes: Lula e Bolsonaro. O segundo movimento equivocado da terceira via foi essa incapacidade que se manteve por muito tempo de coordenação e que foi aos poucos deixando soldados na guerra. Quer dizer, hoje a terceira via tem mais ex-candidato do que candidato. O outro, é que a terceira via nunca discutiu os assuntos brasileiros. A terceira via discutia assuntos marginais ao povo. Aquilo que interessa à população não era assunto para a terceira via. Então foi passando o tempo, foi passando o tempo e as pessoas perceberam que a disputa de fato ia se dar em torno de Lula e Bolsonaro e foram se organizando lá. E, por incrível que pareça, a 70 dias da eleição, ao contrário do que é normal em processos eleitorais brasileiros, mais de 75% dos brasileiros que votam em Lula e Bolsonaro dizem que não vão mudar de jeito nenhum. Isso é inédito.

 

— E nos estados? Há algum fato que pode ser uma surpresa?

— Vamos analisar essa pergunta sob a ótica das intenção de voto espontânea. Na pesquisa nacional, 40% dos brasileiros não declara voto em ninguém ainda para presidente. Nas eleições dos estados, 85% em média, não sabe em quem votar na espontânea. Então, se por um lado a gente está vivendo uma realidade em que a polarização nacional está basicamente dada, nos estados, tudo pode acontecer, inclusive, a influência nacional sobre os pleitos. Por exemplo, se a gente olha com cuidado, [Romeu] Zema e [Alexandre] Kalil, [Fernando] Haddad e Tarcísio [de Freitas], ACM [Neto] e Jerônimo [Rodrigues] e Cláudio Castro e [Marcelo] Freixo são a representação estadual da disputa nacional.

Ou seja, em todos os quatro grandes colégios eleitorais, a disputa que está se apresentando é muito mais possível de replicar a lógica nacional do que o inverso. Você pode ter o Rodrigo Garcia surpreendendo em São Paulo? Pode. Mas é isso. Do ponto de vista de surpresa, é o que pode acontecer. O resto está mais ou menos dada a polarização. Agora, se o Zema vai continuar como está na frente ou se ele não vai ganhar, depende da capacidade do Kalil de discutir o estado, de se apresentar como candidato a governador e da força que o Lula vai ter nessa eleição de transferir voto. Parece que a força dele em Minas é alta.

No caso do Freixo no Rio, é um pouco mais difícil. Por quê? Porque o Lula tem mais dificuldade de transferir votos no Rio do que em Minas. Em São Paulo, é mais difícil ainda. Lá é um lugar onde a terceira via tem mais apelo. Então, os quadros estaduais, para mim, estão polarizados.

 

— E a popularidade digital? É um elemento fundamental nesse processo eleitoral?

— Sou um defensor de que a popularidade digital é um indicador fundamental para entender o comportamento das pessoas, tanto que mensuro isso diariamente. Por quê? Porque a popularidade digital, no fundo, é uma variável proxy, que representa o nível de mobilização e engajamento de um eleitorado. E eleição não é um evento racional, é um evento muito emocional. Então, se você consegue criar ondas digitais de mobilização e engajamento nas últimas horas, dias da eleição, você consegue mexer principalmente com esse eleitor menos ideologizado, o eleitor menos firmado – falando de posição -, um sentimento de querer ir com quem está ganhando, de querer ir com quem ele está vendo, com o que está mobilizando mais. E, para minha surpresa, confesso, hoje o ex-presidente Lula e o Bolsonaro conseguem duelar quase em pé de igualdade no ambiente digital, o que é uma grande surpresa, dado que na eleição de 2018, a distância do Lula era enorme.

 

— A eleição desperta paixões.

— As eleições de 2022 serão as primeiras eleições em que a sociedade brasileira estará polarizada afetivamente, no maior nível histórico que a gente já viveu. O que significa isso? De 1994 a 2002, a polarização que a gente identificava no Brasil era política. Ou seja, os partidos políticos estavam antagonizando uma disputa, mas a sociedade não estava polarizada. Depois da eleição de 2006 até 2014, a gente viu essa polarização política transbordando e virando polarização social. A gente começou a ver alinhamentos de segmentos da sociedade votando diferente, homens votando diferente de mulheres, pretos votando diferente de brancos, o Norte votando diferente do Sul e por aí vai. Mas a partir de 2018, a gente percebeu o que a gente chama de começo de polarização afetiva. Quando os eleitores passam a se ver em campos antagônicos como inimigos e não como adversários mais.

E isso tem uma consequência grave: a violência e o autoritarismo. Então, chegamos em 2022 num nível tão alto de polarização afetiva, que hoje, quando a gente faz pergunta em pesquisa se o seu filho estiver noivo de uma pessoa que pensa politicamente diferente de você, você aprova ou reprova esse casamento? Mais de 80% dos brasileiros dizem que reprovam. E, essa radicalização é maior entre lulistas do que entre bolsonaristas. Ou seja, lulista não quer saber de jeito nenhum de filho se casando com bolsonarista. O bolsonarista não quer, mas tolera um pouco mais. Isso é para mostrar o nível de polarização que chegamos. Se a gente não entender que é na afetividade que está a disputa deste ano, a gente não consegue entender o grau em que vai se dar a briga eleitoral. Não é mais sobre branco e preto, vermelho e amarelo, azul e vermelho. Não. É sobre visão de mundo.

 

— Então o bolsonarismo veio para ficar como fenômeno político?

— Acho. Porque há hoje um setor importante da sociedade brasileira que se identifica, do ponto de vista de grupo, como bolsonarista. É uma parcela significativa da população que pensa igual e que descobriu com a emergência do Bolsonaro, que havia outras pessoas que pensavam iguais a elas. Durante muito tempo esse grupo ficou constrangido de defender suas opiniões porque não conseguia encontrar gente parecida para criar um grupo. Bolsonaro conseguiu linkar essas identidades grupais. Hoje se veem como um grupo identitário, que, para mim, vai existir para além do Bolsonaro como pessoa física. Eles vão sempre buscar disputar eleições para influenciar o poder a partir da visão que têm da sociedade.

 

— Como isso vai se refletir nas eleições para o Congresso?

— Pouca gente tem prestado atenção no Congresso, o que eu acho um equívoco. Se a gente quiser entender o Brasil, a gente não pode esquecer que a Constituição foi toda feita como uma Constituição parlamentarista e na última hora houve uma mudança. Para quê? Porque não aceitavam passar o poder para o Ulysses [Guimarães], e aí, “olha, vamos trocar isso e vamos fazer dessa Constituição uma presidencial”, mas a estrutura parlamentarista foi mantida, de poder. Bastou o Congresso perceber, como Eduardo Cunha, que podia mandar na agenda, para que o Congresso tomasse uma preponderância muito maior do que o Executivo. Desde Eduardo Cunha com as emendas impositivas, agora com o orçamento secreto, o Congresso não perdeu mais poder. Pelo contrário, só aumentou seu poder. Se a gente quiser entender para onde o Brasil vai, do ponto de vista de reforma, de legislação, mais ou menos progressista, conservador, a gente tem que entender o Congresso.

Dito isso, tem três elementos que são novos: o fim das coligações, o fundo público eleitoral e o orçamento secreto, que eu acho que terão um papel enorme sobre os resultados do próximo Congresso. Me parece que vai se aumentar a taxa de reeleição, principalmente, dos deputados que mantêm uma agenda particularista, de distribuição de recursos, porque eles nunca tiveram tanto dinheiro num momento em que a sociedade nunca foi tão pobre como está sendo agora. Então, acho que o Congresso tende a ser mais conservador do que o atual porque usou melhor os instrumentos de orçamento para construção de bases eleitorais particularistas no Brasil empobrecido. •

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