Milton Gonçalves, plural e combativo

O povo do cinema lembrou dele como a Rainha Diaba. Quem gosta de teatro, em cenas ou apenas fotos de Eles Não Usam Black-Tie. Muitos e muitos, talvez a maioria dos brasileiros, em novelas emblemáticas como Escrava Isaura, Sinhá Moça e A Favorita. O ator Milton Gonçalves, morto na segunda-feira, 29, foi um trabalhador incansável do audiovisual e um ativista anti-racista daqueles dos quais o Brasil sentirá enorme falta.

De família pobre da cidade de Monte Santo de Minas, começou a carreira como ator em São Paulo, onde participou de umas das experiências mais radicais na dramaturgia nacional: o Teatro de Arena. O grupo tinha por característica a aproximação com linguagens teatrais populares e a montagem de peças que refletissem a realidade.

Foi no Arena que o ator recebeu papéis em Eles Não Usam Black Tie, texto de Gianfrancesco Guarnieri sobre uma greve operária, e Chapetuba Futebol Clube, sobre um time de futebol de várzea, do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho. Ainda em São Paulo, chegou a participar de outros grupos de teatro que, à época, procuravam alternativas ao chamado “grande teatro”, como o Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias do Nascimento, e o Grupo Opinião, de Augusto Boal.

Ele se radicou no Rio de Janeiro no final dos anos 1950, exatamente no momento em estava se implantando a televisão no Brasil. Em 1965, começa sua trajetória como ator na então recém-criada Rede Globo. Ao contrário do que acontecia no teatro, a dramaturgia que se impõe inicialmente na televisão procura um público elitizado, uma vez que os aparelhos de televisão eram caros e o alcance do sinal ainda restrito. Isso significava que os papéis para negras e negros eram bastante restritos e sempre no lugar de subordinados.

Em “A Negação do Brasil”, documentário de Joel Zito de Araújo sobre a presença de atrizes e atores negros na telenovela brasileira, o depoimento de Milton Gonçalves sobre a telenovela, A Cabana do Pai Tomás, é revelador. Na adaptação televisiva do romance da norte-americana Harriet Beecher Stowe, o ator Sérgio Cardoso foi escolhido como o protagonista, um homem escravizado.

O uso pintura corporal e facial para que ele parecesse negro, uma técnica conhecida como black face, foi apontada como racista pelo dramaturgo Plínio Marcos. Gonçalves, então, foi convidado a ir a um programa de televisão em São Paulo, no qual ele deveria defender a escolha de um ator branco. Ele se recusou, mesmo com o risco de perder o emprego na emissora.

Acabou não perdendo e participando de produções mais ambiciosas como Irmãos Coragem, o primeiro grande fenômeno de audiência da Globo, e outras que marcaram época, como O Bem Amado, Pecado Capital, Baila Comigo, e mais 50 novelas.

Nos anos 70 e 80 se dedicou ao cinema, participando de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade (1973), da versão de Leon Hirzsman para Eles Não Usam Black Tie (1981) e o O Beijo da Mulher-Aranha, de Hector Babenco. Uma de suas atuações mais corajosas é como o personagem que dá o título do filme de Antônio Carlos Fontoura, de 1974, A Rainha Diaba. Com roteiro de Plínio Marcos e ambientado em uma favela carioca, Gonçalves faz o papel de um homossexual que controla o tráfico local. A interpretação lhe valeu os quatro maiores prêmios para ator em 1975.

O trabalho intenso não impediu que Milton Gonçalves também se dedicasse à causa do combate ao racismo e à defesa da cultura. Ex-militante do PCB, chegou a ser candidato a governador pelo Rio de Janeiro em 1994, pelo então PMDB, sem sucesso. No entanto, é reconhecido como uma voz importante na afirmação da cultura negra e na ampliação de oportunidades de trabalho na cultura e nas artes. •

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