Revelação de cachês milionários pagos pelo poder público abalam o mercado musical em disputa por representantes da nova MPB e opõe expoentes do setor à popstar Anitta

 

 

O escândalo dos cantores sertanejos e seus cachês milionários pagos pelo poder público por prefeituras de cidades da zona rural dominada pelo agronegócio ainda está longe de acabar. Mas seus desdobramentos já atingiram duramente pelo menos os dois dois principais provocadores. Em live no início desta semana, o cantor Gusttavo Lima, alvo de investigações pelo Ministério Público de dois estados, Roraima e Rio de Janeiro, foi às redes defender o custo de seus shows e avisar que está a ponto de “jogar a toalha”.

Em mais um episódio que envolve desvio de dinheiro público de maneira pouco clara, o caso acabou por assumir contornos políticos. É que, entre os cantores sertanejos há muitos que afirmam prescindir de leis de fomento e incentivo estatal, em especial a Lei Rouanet, em consonância com as críticas de bolsonaristas e integrantes do governo, inclusive daqueles ligados diretamente a órgãos da administração cultural.

Nas redes, a discussão dos cachês tomou o nome de #CPIdoSertanejo, uma vez que o Ministério Público de Roraima foi o primeiro a entrar com ação para investigar as brechas legais que estariam permitindo que a prefeitura de São Luiz, município 8 mil habitantes, oferecessem pagamento de R$ 800 mil a Gusttavo Lima.

Apesar de não haver de fato uma comissão parlamentar de inquérito instalada, várias cidades com contratos com esses cantores cancelaram shows já anunciados. Na sexta-feira, 3, a Justiça proibiu a realização de  show de Gusttavo, contratado por R$ 704 mil, em Teolândia, na Bahia. Em reportagem, o jornal “Estado de S.Paulo revelou que essa mesma prefeitura justificava o “incapacidade financeira” para não pagar o piso dos professores e pedia doações para as vítimas das chuvas.

O que seria uma treta de internet começou com uma provocação gratuita de Zé Neto à popstar Anitta. Durante show realizado em Sorriso, no Mato Grosso, o cantor desatou a falar que os sertanejos não precisavam de Lei Rouanet, pois quem pagava pelos show era o público. E achou por bem lascar logo uma indireta: “Não somos artistas que dependemos da Lei Rouanet. Nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no toba para mostrar se a gente está bem ou mal”.

O vídeo com a provocação viralizou nas redes e fãs de Anitta, que só no Twitter tem 17 milhões de seguidores, começaram a levantar suspeitas a respeito dos cachês dos sertanejos, que acendem uma vela para Deus e outra para o Diabo nesse terreno. 

O próprio Zé Neto, personagem do segundo escalão do sertanejo, estava ali às expensas da prefeitura de Sorriso, que se auto-intitula “a capital mundial do agronegócio”. E recebeu cachê de R$ 400 mil. Mas acabou sobrando mesmo foi para Gusttavo Lima, sujeito bem apessoado, tipo do agroboy jovem e bombado, que despontou para o estrelato com uma canção cujo refrão era “tche tche terete tetê, Gusttavo Lima e você”.

Ele entrou no debate pela pior porta. Em Brasília, no intervalo de seu show, um locutor fez um discurso opondo “o comunismo” à  “democracia”, na melhor tradição olavista. “Na vida é Deus, pátria, família e liberdade. Liberdade para pensar, liberdade para agir, liberdade para vencer, liberdade para conversar, liberdade para estar na internet, liberdade de expressão, liberdade de conquista. E a gente tem que conquistar essa porra. Porque o Brasil é nosso”.

Mesmo que a resposta pública do cantor a esse discurso tenha negado a sua influência, fãs de sertanejo nas redes continuaram a incitar a polêmica, dirigindo ataques pesados à Anitta e todos os outros artistas, que segundo eles, fazem uso da Lei Rouanet e afins. E, como se sabe, para botar fogo em discurso de ódio, não precisa mais do que uma faísca.

O clima escalou também por que as manifestações políticas têm se multiplicado por shows pelo Brasil afora, na maioria dos casos  críticas a Jair Bolsonaro e apoio à candidatura de Lula. No campo bolsonarista, as manifestações públicas tem sido mais raras e, por isso, eles preferem o anonimato da internet para disseminar sua pestilência e atacar, de preferências, mulheres e minorias. Depois da  última Virada Cultural em São Paulo, nos dias 28 e 29 de maio,  outra funkeira, a cantora Ludmilla, negra e homossexual, passou a ser alvo de agressões por fazer um “L” com os dedos durante apresentação em São Paulo. Ludmilla, rápida, respondeu que o gesto era uma alusão à inicial de seu nome.

Coincidentemente (ou não), no mesmo domingo, seria a vez de Anitta comentar em tom irônico os cancelamentos de shows dos sertanejos e as investigações: “E eu achando que estava só fazendo uma tatuagem no tororó”.

A polêmica, além de política, também encobre um disputa bem real de mercado pelo circuito enorme de shows em municípios de todo o porte das zonas rurais do Brasil dominado, por enquanto, pelos sertanejos. A entrada de outros estilos musicais de igual  ou maior apelo popular, mas com pegada mais jovem, urbana, feminina e globalizada, como o funk, ou bem se dão pelo convite e com a bênção dos sertanejos ou não se dão. Ainda que muitas vezes os públicos coincidam, o fato é que rádios, casas de show e eventos situados em estados do agronegócio optam por sertanejos.

Se os sertanejos se apresentam como as “pessoas de bem” a que o bolsonarismo privilegia, não é por acaso. Muitos são efetivamente conservadores no campo moral e preconizam uma espécie de meritocracia de mão única, onde o sucesso no negócio da música se daria pura e simplesmente pela adesão do “povo”. Encobrem com isso uma poderosa e antiga operação de marketing que envolve desde a quase falecida indústria fonográfica, passando por meios de comunicação de massa e, claro, dinheiro público e privado.

Esse “sertanejo de resultados”, cuja trajetória ascendente começou nos anos 1990, na era Collor, encontrou no bolsonarismo e no clima de desmonte de mecanismos de financiamento por verba pública ou renúncia fiscal um ambiente propício. 

Só que desta vez, foram arrumar treta com Anitta e sua legião de fãs, que se movem rápido pelas redes e tem assumido uma postura política no campo oposto:  antibolsonarista,  Anitta vem se manifestando politicamente com frequência contra a hipocrisia no campo da moral sexual e dos chamados costumes e fazendo campanha em favor de causas como o meio ambiente, a importância do voto jovem e da democracia. •

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