O jurista diz que o anúncio das candidaturas de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol nas eleições de 2022 não surpreende a ninguém porque ambos sempre fizeram política. Mas reforça suas críticas aos dois personagens, que posam de paladinos da Justiça. “A Lava Jato abriu a Caixa de Pandora para a demonização da política e a fragilização da democracia”, afirma. “Moro corrompeu e atacou a democracia”

 

 

Lenio Streck é advogado e professor de Filosofia do Direito. Começou a carreira atuando no Ministério Público e, justamente por isso, descreve em detalhes como a operação Lava Jato abusou da instituição e distorceu o trabalho que deveria ser realizado pelos procuradores da República. A Lava Jato foi uma operação política.

“O chefe da República de Curitiba, Sérgio Moro, sempre foi político”, afirma. O jurista integra o grupo Prerrogativas, que se aprofundou na investigação sobre os erros da Lava Jato. O Prerrô já lançou duas obras jurídicas sobre o tema: o “Livro das Suspeições” e o “Livro das Parcialidades”. Em breve, sai o “Livro do Julgamento”, esmiuçando como a operação que nasceu em 2014, no ano das eleições presidenciais, funcionou.

As distorções cometidas pelos procuradores da força tarefa encarregada de detonar a corrupção não foram um acaso. São fruto de uma estratégia reconhecida como lawfare: o uso do direito para perseguir adversários políticos.

“Há uma diferença entre Lula e outros réus e Sergio Moro. Lula não foi julgado culpado de nada. Sérgio Moro foi julgado culpado”, lembra o professor de Direito. “Sim, dá para dizer isso. Culpado por ter sido parcial e suspeito. Isso é o que o Supremo disse”.

O advogado gaúcho detalha o momento em que o então juiz federal Sérgio Moro começou a abalar a democracia brasileira e como a Lava Jato abriu espaço para neofascismo no Brasil. Ainda sobre esse fenômeno político, Lenio reconhece que a formação do Direito acaba, muitas vezes acaba formando advogados neofascistas, críticos à Constituição. “São os negacionistas da democracia”, aponta. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida a Focus Brasil:

 

Focus Brasil — As candidaturas de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol e, possivelmente, de Rodrigo Janot que também estaria conversando com o Podemos, são uma confirmação de que a Lava Jato sempre foi uma operação com fins políticos?

Lenio Streck — Já dá para dizer que são candidatos da Lava Jato. Eles vão continuar fazendo política porque sempre fizeram. Nenhum deles vai fazer política só agora. Todos sempre fizeram política e, inclusive, usaram a estrutura do Estado. Está se vendo agora que foi uma questão bizarra porque o Estado financiou isso a partir de “gordas” diárias, passagens aéreas escolhidas a dedo. Não sou eu que estou dizendo, é o Tribunal de Contas da União que já mandou cobrar, mostrando que se formou uma indústria de diárias. Então, a Lava Jato é um instrumento que estabeleceu um dos requisitos para a “tempestade perfeita” da fragilização da democracia. A primeira coisa que a Lava Jato fez foi demonizar a política e os políticos. Se você demoniza a política e os políticos, começa a tirar um dos pilares da democracia: a institucionalidade.

Se você enfraquece as instituições, abre um grande espectro para outsiders, essa gente toda que se elegeu, inclusive, paradoxalmente, o próprio Bolsonaro, que acabou surfando na onda da não política, embora ele próprio seja político… A Lava Jato abriu essa Caixa de Pandora para a demonização da política e a fragilização da democracia, basta ver o Parlamento hoje em que, talvez, o Centrão nunca tenha estado tão forte. Esse tipo de deputado como [Carla] Zambelli, Bia Kicis são produto daquilo o que a população comprou com o discurso de que “os políticos são ladrões e agora nós vamos colocar os honestos”. Com isso você cria uma democracia frágil.

 

— Como na Itália…

Existem muitos textos interessantes mostrando a fragilidade da democracia provocada por agentes e aqui a Lava Jato foi um componente muito importante de fragilização da democracia e da institucionalidade. Ela fomentou esse neofascismo, esse, digamos assim, neoudenismo, tenentismo, esses ismos todos que acabaram tomando conta de um grande setor da política com o apoio, claro, não podia faltar e sem isso não daria certo, da grande mídia. A gente sabe como a Lava Jato tinha vasos comunicantes e informações privilegiadas, tudo feito segundo uma estratégia adredemente preparada, copiada inclusive da Operação Mãos Limpas, da Itália.

 

— O senhor falou sobre essa abertura para outsiders. É bom lembrar que a própria Lava Jato queria financiar os outsiders com aquela fundação que acabou bloqueada pelo STF.

— Sim. A Lava Jato se sentiu tão forte num determinado momento que ela se tornou independente do próprio Poder Judiciário. É por isso que ela criou um nome próprio. Não existe Lava Jato. Isso é uma criação. Não existe força-tarefa como se fosse uma espécie de Ministério Público do B ou Judiciário do B. Por que se fala em “República de Curitiba”? Tudo isso são questões midiáticas que foram forjadas para dar esse grau de um terceiro, de um tertius dentro da institucionalidade brasileira. Sentiram-se tão fortes que tentaram até fazer uma milionária fundação. Agora, nesse momento, candidatos como Moro e Dallagnol seriam financiados por ela. Não estão sendo, mas, com certeza, buscarão outras fontes generosamente financiadoras.

 

— Professor, como avalia o fortalecimento das forças-tarefas que se expandiram pelo país? Elas vieram para cima do PT, do Lula, da Dilma, levando até a derrubada da presidenta. Ela teria na sua gênese uma ação anti-esquerda, que acabou contando com a leniência do sistema de Justiça — das corporações do Ministério Público e do Judiciário?

— Sim. O Supremo se deu conta tardiamente com relação a isso. Os demais continuam na mesma trilha que andavam antes. Não mudou nada no TRF4 de lá para cá. Mas se todos tivessem agido de forma legal, se o STF e o STJ tivessem exigido o cumprimento da Constituição, da legalidade e do devido Processo Legal, essa é operação não se formaria. Nem nos EUA. Tanto se fala nos EUA, tanto foi citado os EUA, mas por exemplo, em termos técnicos, a cadeia de custódia da prova, que é uma questão técnica no Direito, se for aplicado o que se usa nos EUA, não parava de pé, de cara, 50% da Lava Jato.

O Brasil não aplica até hoje a doutrina Brady. Esses dias fiz uma conferência na Universidade de Chicago e eles se surpreenderam porque no Brasil não se aplica a doutrina Brady. Isso significa que o Ministério Público quando investiga tem que colocar na mesa todas as provas, inclusive, aquelas favoráveis à defesa. Isso não se aplica no Brasil até hoje. Nós somos atrasados nisso.

Até temos lá o senador Antonio Anastasia (PSDB-MG) que comprou uma ideia minha, que virou um projeto em que a gente só quer fazer a coisa mais simples do mundo. O Brasil já incorporou desde 2002 o Estatuto de Roma. E o que está escrito? Artigo 54: a acusação tem que investigar, inclusive, buscando fatos que favoreçam a defesa. É coisa muito simples. Isso também está no Código de Processo Penal alemão. Então, todas essas coisas somadas mostram que não fomos ortodoxos o suficiente.

É claro, tem todo um imaginário do Judiciário que o ensino jurídico brasileiro é uma fábrica de reacionários e neofascistas. Estou dizendo neofascistas porque sou generoso, para não criar muitas polêmicas sobre o conceito de fascismo. Estou dizendo assim, protofascistas ou neofascistas ou reacionários.

 

— E o que é isso?

— Muito simples. Vou dar o exemplo da medicina. O fascista é o negacionista da democracia, assim como na medicina o negacionista é o negacionista da ciência. Então, imagina se as faculdades de medicina estivessem formando gente que ao sair seria contra os antibióticos. Você já pensou nisso? Pois saiba que uma parcela enorme, considerável de pessoas que estudam direito saem falando mal da Constituição. Dizendo que tem direitos demais.

Você sabia que quando estávamos brigando pela presunção da inocência, havia uma pesquisa dizendo que mais de 60% dos advogados brasileiros eram contra que se fizesse a presunção da inocência do modo como a OAB defendia? E eu fui um dos primeiros a defender. Havia três ações: ADC 44, 43 e 54. Eles eram contra. Então, se as faculdades de Direito formam isso, não surpreende esse produto final: a Lava Jato. Até hoje o juiz suspeito e tudo o que aconteceu é considerado algo normal, que as pessoas dizem que o Sérgio Moro não fez nada demais. Isso quando ele foi julgado suspeito. Há uma diferença entre Lula e outros réus e Sergio Moro. Lula não foi julgado culpado de nada. Sérgio Moro foi julgado culpado. Sim, dá para dizer isso. Culpado por ter sido parcial e suspeito. Isso é o que o Supremo disse. Isso está muito claro, mas no plano da opinião pública, da narrativa que se forma, o Moro é, como disse um certo ministro [o último decano do STF Marco Aurélio Mello], uma espécie de herói nacional.

 

— E ao que parece a chamada grande mídia vai continuar tratando dessa forma, ignorando completamente a Operação Spoofing e todo o resto.

— Sim. Engraçado, né? Veja, vamos pegar uma coisa correlata. Pegue o caso dos Panamá Papers. O presidente do Chile está sofrendo impeachment com base nesse escândalo, mas aqui a grande mídia sequer noticia. Veja, como jurista, não estou dizendo aqui que Moro e Dallagnol devam ser condenados, processados por essa prova porque tenho meus limites como alguém do Direito. Essa não é uma prova que dê para usar para condenar, ela pode ser usada em defesa dos réus etc… Isso é pacífico. Agora, se um dos delatores viesse a público, desse uma entrevista ou fosse ao Parlamento e dissesse: “Olha, eu vinha fazendo uma delação só que aí chegou o Dallagnol e disse que…” Se ele contasse isso efetivamente, haveria novos elementos e aí sim poderia reabrir tudo isso. Nesse momento, só com base na Spoofing, ela é uma questão política. A grande mídia deveria divulgá-la mais. A Spoofing é uma questão jurídica a favor de quem foi prejudicado. Lamentavelmente, nesse caso não se pode usar contra. Se se pudesse, obviamente, Moro, Dallagnol e outros estariam em maus lençóis.

 

— Gostaria de lhe perguntar sobre esse uso que foi feito do Ministério Público. O que é preciso mudar? Porque até outro dia não existia nem a perspectiva de que Dallagnol seria punido.

— Algumas coisas. Em termos gerais, a mesma coisa que precisa mudar no Ministério Público precisa mudar no Judiciário. Tem que mudar o ensino jurídico. Temos que mudar a forma de fazer concursos públicos. Os concursos não podem ser quiz show. Temos que ter outra forma porque hoje temos um círculo vicioso. As faculdades ensinam X que é cobrado pelos concursos e que os cursinhos de preparação adotam. Então, esse é um longo processo que tem que ser feito. A segunda questão é mudar o modo da funcionalidade do sistema. Por exemplo, o Ministério Público quando vai investigar, tem que colocar na mesa — como eu já disse antes — tudo aquilo que encontra, inclusive, a favor da defesa. E o MP tem que agir de forma isenta, não pode fazer agir-estratégico. O Ministério Público não pode agir como um advogado que você contrata para assistente de acusação porque o Ministério Público tem as mesmas garantias da magistratura. O MP é vitalício, tem independência funcional e é inamovível. Então, quem tem essas garantias de juiz tem que se comportar como um juiz. Ele não pode se comportar agindo estrategicamente e escolhendo, sendo seletivo para escolher coisas para processar alguém. Então, há que se fazer uma grande reformulação nisso.

Por exemplo, eu já escrevi muito sobre isso, na Espanha se exige do Ministério Público uma atuação imparcial e isenta. Aqui no Brasil, nada disso. Inclusive, num processo do Lula, na apelação aqui no TRF-4, ficou dito que não se exige da acusação que ela seja isenta. Vocês aceitariam ser processados por uma acusação que não seja isenta? Pois está lá no acórdão. Eu reclamei disso, escrevi muito sobre isso e ficou por isso mesmo. Nada foi dito, tudo se calou sobre isso. Mas está lá, item 9 do acórdão da condenação do Lula: não se exige isenção da acusação. Ora, se você me pergunta isso, eu digo que a primeira coisa que eu preciso é ter a garantia de que quem vai me processar em nome do povo e da sociedade precisa ter um grau de isenção, se ele encontrar coisas a meu favor ele tem que botar na mesa. Entende? Então, veja que temos aí um conjunto de elementos que precisam ser modificados.

 

— A Constituição diz que o MP tem um papel essencial de fiscalização e acompanhamento das polícias, mas não o faz. Nessa reformulação do MP, não seria necessário que essa questão fosse mais clarificada?

— Desde que eu era membro do MP, a grande batalha era fazer com que assumisse o controle externo da atividade policial porque se trata de direitos humanos. Nós sabemos as arbitrariedades policiais. Não precisa ser nenhum Einstein nem fazer muita pesquisa empírica para saber o que está à frente e o que os veículos de comunicação mostram todos os dias nessa questão da segurança pública e do modo como os pobres são tratados. Isso é uma questão fortíssima. Parece que o Ministério Público não se deu conta de que ele é uma espécie de magistrado. Continua agindo como se fosse aquele perseguidor, aquele promotor público dos anos 1950. Ele não se deu conta do seu tamanho e da sua importância e acaba agindo como um perseguidor, faz seletividades. Diz que está a favor do povo, mas acaba se colocando muitas vezes contra — ou não o faz. Você toca num ponto fulcral. Essa questão do controle externo da atividade policial, com todo o reacionarismo que se vê dentro das polícias militares, o modo como vemos isso todos os dias. Ali devia estar presente o Ministério Público, aliado a questões que eu já coloquei anteriormente, que são a necessidade da proibição do fazer agir-estratégico, não se comportar como assistente de acusação ou coisa assim e tratar a questão da sociedade sem fazer tais escolhas. Veja, essa questão terrível agora da falta de remédios para tratar câncer. Quer um troço mais dramático do que um sujeito que precisa de remédio para câncer de tireoide, por exemplo?  O MP é o guardião da sociedade, dos direitos das pessoas. Estamos falando da sociedade como um todo.

 

— E falhou na pandemia…

— Faltou muita coisa aí. Faltou Ministério Público, faltou de tudo um pouco. Eu diria que quem se saiu bem nessa história foi o Supremo Tribunal Federal, por mais paradoxal que possa ser. O Supremo teve quatro grandes atuações nesses últimos dois anos. Ele salvou o Brasil em termos federativos. Imagina se o Bolsonaro tivesse ficado cuidando sozinho da pandemia? Aquela famosa ação em que o STF disse que os governadores e os prefeitos também devem cuidar. Ali, o STF salvou a saúde pública. Depois, o Supremo salvou o Brasil com relação à CPI. Mandar fazer a CPI foi um grande passo, ou alguém tem dúvida de que a CPI fez bem ao Brasil? Por que tivemos vacinação mais rápido? Porque a CPI causou isso. Terceiro, nos atos de 7 de setembro o Supremo deu uma boa resposta e estancou o processo e, agora, com a ministra Rosa Weber, o STF salva a questão da transparência e da relação entre poderes sobre a questão do orçamento secreto.

Parece meio bizarro ter que dizer que um orçamento não pode ser secreto, mas o Supremo teve que dizer o óbvio aí. E além desses quatro, tem a quinta ainda que é o inquérito das fake news, quando foi atacado e teve que se defender. Eu sei que o Supremo foi criticado por isso, mas em termos institucionais foi fundamental. E sabe por que o Supremo se defendeu ali? Porque a procuradora-geral à época, Raquel Dodge, não fez a defesa do Supremo e por isso ele teve que usar o regimento interno. Veja, novamente voltamos ao papel do Ministério Público.

E outra questão é que é preciso revisar atos quando o Ministério Público arquiva um caso. Precisamos rediscutir como revisar. Aliás, a CPI da Covid fez lá uma observação legislativa de que a última palavra é do Ministério Público, mas tem que ter um modo de revisar ou deixar que os prejudicados entrem com ação privada.

 

— De que forma e em quais momentos Moro corrompeu e atacou a democracia brasileira?

— Em vários momentos e isso hoje já está sacramentado pelo próprio Supremo. O grupo ao qual eu pertenço, o Prerrogativas, é especialista em Sérgio Moro. Escrevemos o “Livro das Suspeições”, o “Livro das Parcialidades” e agora vem aí o “Livro do Julgamento”. O grupo é chefiado pelo Marco Aurelio de Carvalho, um especialista, e foi o grupo de juristas no Brasil, do qual tenho a honra de participar, que apontou isso desde o início. Foi também o que derrubou a Dilma. Perceba que tudo está junto. Sérgio Moro permite, divulga, ilicitamente as conversas entre Lula e Dilma. Aí começa tudo. Um juiz, de forma ilícita, criminosa nesse caso, divulga conversas que não poderia entre um presidente da República com um ex-presidente. Aí o Supremo, em vez de passar uma descompostura no juiz, o decano  [Celso de Mello, ex-ministro da Corte] passou nas vítimas, Lula e Dilma. Lembram disso? Ali era o sinal. Moro pegou aquilo como um fortalecimento. Ou seja, todos disseram que ele fez um ato criminoso, mas o decano do Supremo não o disse. Bom, logo depois Moro mandou grampear telefones dos advogados, fez a condução coercitiva do ex-presidente Lula e uma carta de 32 laudas pedindo sinceras desculpas pelo ilícito que ele tinha cometido. Sim, um juiz escreve uma carta pedindo escusas.

Na época, fiz um texto dizendo que o Moro inventou um novo modo de exclusão e extinção de punibilidade. No artigo 109 do Código Penal: “extingue-se a punibilidade, blá, blá, blá…” e embaixo sugeri que se incluísse “e um sincero pedido de desculpas”. Tudo isso são elementos objetivos. Isso tudo tem um nome técnico, um nome que os americanos inventaram: lawfare. É  o uso político da estrutura e do Direito para perseguir adversários.

Sérgio Moro tem uma gravação em que perguntam a ele se vai se candidatar a um cargo político e ele diz que caso se candidatasse estaria minando a credibilidade dos seus próprios atos. Portanto, posso dizer hoje que os atos dele não são críveis porque fez exatamente o que disse que se fizesse, ocorreria. Como ele assumiu agora que é candidato, então estou autorizado a dizer que tudo o que ele fez foi com objetivos políticos. É muito claro isso, uma questão lógica.

E não só isso. Um ex-procurador que agora quer ser candidato, nem estou falando do [Rodrigo] Janot, aquele do “enquanto houver bambu, haverá flecha”. Estou falando do outro, do Carlos Lima que confessou para a Renata Lo Prete, em rede nacional, já aposentado, que a força-tarefa da Lava Jato assumiu um lado. Entre o diabo e o coisa ruim, eles escolheram um lado: Bolsonaro. Eles disseram isso. Portanto, tudo o que se disser hoje e alguém falar “não, você está exagerando”, respondo: não, existem elementos objetivos. Basta pegar os livros do Prerrô ou os meus artigos no Conjur. Em 2015, fiz um debate com o Sérgio Moro e lá eu já avisava o que podia acontecer. Então, temos elementos objetivos. Não inventamos nenhuma frase.

 

— Ainda sobre o abalo da democracia, o direito à informação é algo fundamental e o papel do jornalismo é cumprir uma função de interesse público. Mas durante todo esse processo, a chamada grande mídia não deu voz aos juristas críticos à Lava Jato. O Prerrogativas nunca teve espaço. Só veio aparecer depois da Spoofing. Esse tipo de cerceamento não é um desrespeito à democracia?

— Sim. A grande mídia se comporta como um grande diário oficial das forças tradicionais da sociedade, do velho patrimonialismo, dos bancos etc. Isso a gente vê pelos editoriais e pelo modo como se dá a cobertura. Vou dar um exemplo do que eu sofri por causa daquela ação da ADC 44 [presunção de inocência]. É um exemplo que responde muito bem à pergunta e mostra tudo. Dias antes do julgamento final no Supremo, que se deu em outubro de 2019, a grande mídia dizia que se o Supremo julgasse favorável à presunção da inocência 170 mil criminosos, estupradores, corruptos seriam postos nas ruas. E eu escrevi 27 textos sobre isso. E dizia: “pelo amor de Deus, não é assim”. Eu me lembro de entrevistas em grandes rádios e em uma delas uma jornalista me perguntou se eu não me sentia culpado porque se o Supremo decidisse a favor seriam colocados criminosos nas ruas. E eu disse: “Minha filha, não faça isso comigo. Você está sendo desonesta. Vai estudar, vai falar com o seu chefe. Não faça isso comigo. Se nós ganharmos a ação hoje, me ligue em uma semana e vou lhe dar os números”. É claro que ela não ligou e eu escrevi depois e mostrei que saíram oito réus da Lava Jato, 21 pessoas foram soltas no Rio de Janeiro, três foram soltos no Rio Grande do Sul nos primeiros 30 dias. Ou seja, somando todo o Brasil não dava 200 pessoas que saíram por causa da decisão do Supremo. E se dizia que eram 170 mil.

 

— A mídia teve mesmo um peso pela situação que vivemos.

— Eu reclamava do Merval Pereira, que ficava atacando todos os dias. E, claro, o canhão que ele tinha na mão e eu com uma “espingardinha” dentro dos sites. E aí eu digo, a luta é desigual. Lutamos com estilingue com a mídia alternativa, enquanto basta um editorial de um grande jornal para trazer uma narrativa que apaga tudo o que se fez. Estou lhe dando esse exemplo porque a gente, escrevendo todos os dias, não consegue apagar essa questão de que seriam soltos 170 mil ladrões, estupradores, bandidos e assassinos. Estávamos apenas querendo cumprir a Constituição. Enfim, é um bom exemplo para você notar qual é o papel da imprensa no Brasil.

 

— E a discussão da PEC 05, sobre o Conselho Nacional do MP? O excesso de corporativismo não atrapalha a instituição?

— Essa é uma questão antiga, né? O Brasil é um país corporativo, um país estamental. Tenho minhas diferenças com alguns amigos que acham que a interpretação que o Raymundo Faoro faz do Brasil não é boa. E eu vou na contramão. Eu digo que ela é tão boa que dá quase para tocar, você vê as críticas que ele faz ao patrimonialismo brasileiro. Mas não é essa a discussão. As instituições acabam sendo impregnadas por isso. Essa PEC 5, por exemplo, foi muito barulho por nada também. É um pouco da peça do Shakespeare que nos vigia aqui na sala, aqui atrás [aponta para a prateleira atrás dele onde está um livro do dramaturgo inglês] porque havia duas PECs. A PEC que o Ministério Público dizia que lhes tirava a independência e a autonomia. Eu não vi essa PEC. E havia outra PEC e essa era a de verdade, a que o Paulo Teixeira  [deputado do PT de São Paulo, autor da PEC 5] dizia “olha, a PEC é essa”, ela faria duas ou três modificações, coisas não muito complexas. Mas a discussão que se fez pelo Brasil todo e pela mídia – novamente a mídia. Quem foi contra a presunção da inocência? São os mesmos que fizeram toda essa onda agora por causa da PEC 5, que é a questão da Lava Jato. O lavajatismo no Brasil, podem escrever, é maior do que a Lava Jato.

O lavajatismo é um imaginário que se criou no Brasil que tem uma mistura de udenismo, tenentismo, moralismo e acham que o problema do país está na corrupção dos outros, é claro. Por exemplo, a minha pergunta: quando você ganha diárias que não poderia ganhar, isso é o que? Estou só perguntando, não dou a resposta. Ou seja, no Brasil a questão sempre é o outro. Então, se cria toda essa questão. Acho que talvez essa PEC 5 tenha que ser mais bem discutida e o momento não era o apropriado para se fazer isso. E é muita energia política gasta pelos partidos porque se pensou que era uma espécie de vingança e essa tese foi vendida. Quando você tem algo assim e quer de fato modificar uma estrutura, não pode deixar que ela seja fagocitada pela ideologia e pela política, simplesmente. Aí você perde a discussão, como ela foi perdida.

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