Marighella” é um filme que, de certa forma, estreou muito antes de começar a ser exibido no cinema na quinta-feira, 4. Com roteiro baseado na minuciosa biografia do jornalista Mário Magalhães, o filme dirigido por Wagner Moura enfrentou todas as dificuldades possíveis e imagináveis para uma obra que trata de flagrar a história de um guerrilheiro no momento em que algumas organizações de esquerda, perseguidas pela ditadura militar, embarcam na luta armada.

Com uma trajetória de sucesso em vários festivais internacionais desde 2019, “Marighella” teve o pedido de comercialização negado pela Ancine por três vezes — apenas uma delas com justificativa de erro técnico assumida pela produção do filme.

Sob Jair Bolsonaro, que extinguiu o Ministério da Cultura e adota discurso ultra conservador contra a cultura, a morosidade da principal agência de fomento ao cinema deixa suspeitas de atividade censória. Não se pode esquecer, jamais, que o ex-capitão do Exército é admirador declarado de torturadores. Ele dedicou seu voto no impeachment de Dilma Rousseff a Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe de um dos principais centros da repressão, o DOI-CODI, em São Paulo.

O filme foi alvo ainda da ação orquestrada nas redes pelos bolsonaristas para “abaixar” a nota do Internet Movie Database, o IMDB. Daí que o filme parece ter uma existência e importância política antes mesmo de ser conhecido pelo grande público. As pré-estréias em São Paulo, Salvador e Rio provocaram manifestações da plateia e ondas “fora Bolsonaro”. O que é curioso para um filme que retrata os últimos cinco anos do militante do PCB Carlos Marighella de forma quase teatral.

A presença de Wagner Moura na direção, ator que se consagrou como o  protagonista de “Tropa de Elite” e fez carreira internacional com a série da Netflix “Narcos”, poderia fazer pensar que “Marighella” enveredaria pelo thriller político, dadas as possibilidades filmar assaltos, explosões ou perseguições policiais. No entanto, o roteiro de Moura e Felipe Braga escolhe centrar a trama nos dilemas internos, psicológicos e políticos de Marighella, ao se ver diante da escolha trágica que se impôs à parte da geração que viveu o Golpe de 1964 e o recrudescimento da repressão no pós-AI-5 em 1968.

Nesse sentido, o filme realiza uma adaptação muito próxima à do personagem complexo e controverso que emerge da excelente reconstituição biográfica de Mário Magalhães. A escalação de Seu Jorge como Carlos Marighella, segunda opção de Moura, que chegou a testar o rapper Mano Brown para viver o guerrilheiro no cinema, é daquelas sortes que vêm da adversidade. Carismático e intuitivo, Jorge faz um Marighella ambíguo, capaz de momentos quase líricos, sobretudo nas cenas em sobre suas relações familiares — com o filho, deixado com a ex-companheira em Salvador, e nos poucos, mas intensos diálogos com Adriana Esteves, que faz Clara Charf —, bem como de momentos em que transparece a dureza, o julgamento implacável e a violência exigidas daqueles que decidiram pela alternativa da luta armada.

Nunca é demais lembrar que trata-se de uma obra ficcional e, por isso, o que se conta no filme é tão-somente um pedaço da história e que muitos aspectos sobre o período histórico são deixados de lado. O que parece ser o grande achado na direção segura de Moura é deixar claro isso desde o início, quando ele entremeia sequências empolgantes de ação, como a do assalto ao trem, com as discussões entre quatro paredes, cercadas dos cuidados da clandestinidade, da perseguição policial e do medo da delação.

É uma tragédia o que acontece com Carlos Marighella em 4 de novembro de 1969, morto a tiros quando estava disposto a se entregar à polícia, e sua célula da ALN composta de jovens dispostos a matar e morrer pela resistência ao governo militar. A sensação de sufocamento que emerge desse contraste entre os espaços fechados e os abertos, onde tudo pode acontecer (e acontece), é muito eloquente sobre o que foi viver sob uma ditadura que prendia, matava, torturava e fazia “desaparecer” seus opositores. E, ainda assim, tentar resistir.

Correndo tantos riscos no roteiro, é evidente que Moura, estreando na direção, cometa alguns deslizes, sobretudo na construção de alguns diálogos que resvalam no declaratório ou na grandiloquência ou de personagens que acabam um tanto chapados — o ator global Bruno Gagliasso, por condensar o policial imbuído de toda a truculência do aparato repressivo, por exemplo, dá algumas escorregadas. No entanto, Moura não cai naquela que seria a armadilha principal de um filme sobre um personagem histórico: decidir, pelo espectador, se o “inimigo número um do Brasil” estava “certo” ou “errado”. Ainda que Moura não seja falsamente imparcial, o peso das decisões individuais e coletivas se mostra em toda a sua crueza e, por isso, o filme flerta, de forma muito evidente, mais com a ideia do trágico na vida política do que com a do heroísmo. Isso, por si só, é um grande feito.

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