A Câmara dos Deputados aprovou o texto-base da PEC 23, restando a apreciação de destaques para finalizar a votação em primeiro turno. A PEC 23 traz medidas duras: a) limita o pagamento de precatórios aos valores de 2016 atualizados pelo IPCA; b) modifica a fórmula de cálculo do teto de gastos, considerando a inflação de 12 meses até dezembro, e não mais junho. As medidas ampliam o espaço no teto em mais de R$ 90 bilhões para 2022.

O texto base foi aprovado por margem apertada, com apenas quatro votos além do necessário. Mesmo assim, contou com forte “criatividade regimental” do presidente Arthur Lira (PP-AL), com autorização para votação remota de parlamentares que estavam em missão oficial fora do país, e emenda aglutinativa do relator que não aglutina emendas apresentadas.

Aparentemente, a mudança no texto capaz de reverter votos em favor da PEC foi a previsão de que precatórios do Fundef serão priorizados, com pagamento de 40% dos valores em 2022 e 30% nos dois exercícios subsequentes. Sem a PEC, os recursos seriam integralmente pagos. Ou seja, a PEC atrasa pagamentos de sentenças já determinadas pela Justiça, inclusive para a educação, em contrariedade ao que o STF já decidiu acerca da matéria.

Além do aumento dos passivos da União em função do atraso de pagamentos dos precatórios, vale retomar os principais problemas da PEC: 1) viabiliza o Auxílio Brasil, que excluirá 22 milhões de famílias que atualmente recebem o auxílio emergencial, e só prevê despesas extras em 2022, para contornar exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal de compensação pelo aumento de despesa permanente; 2) torna o teto mais restritivo para 2023, em quase R$ 20 bilhões; 3) extingue a previsão de revisão do teto em 2026; e 4) abre espaço fiscal para emendas de relator.

Ante os problemas da PEC, qual seria a alternativa para viabilizar a transferência de renda, fundamental no contexto de ampliação da pobreza, da desigualdade e da fome?

Uma solução simples seria: a) garantir o pagamento dos precatórios — inclusive da educação —, respeitando-se decisões judiciais e evitando o aumento de passivos da União em função do atraso de pagamento de despesas obrigatórias; b) prever prorrogação do auxílio emergencial, evitando a exclusão de famílias da rede de proteção social; c) reajustar as linhas de pobreza e extrema pobreza do Bolsa Família, além de ampliar os benefícios do programa e incluir as famílias que estão na fila de espera. Como se trata de programa existente, não se aplicam ao Bolsa Família as restrições da Lei de Responsabilidade Fiscal em relação à compensação de receita e as decorrentes da legislação eleitoral; e d) excepcionalizar o Auxílio Emergencial e o Bolsa Família do teto de gasto, regra de ouro e meta de resultado primário, o que poderia ser estendido a outras despesas específicas para combate à pandemia, como vacinação, cujos recursos são insuficientes no projeto de orçamento.

Esta saída sinalizaria de forma transparente o volume de recursos fora do teto, que precisa, a partir do próximo governo, ser revogado e substituído por outra regra. Além disso, garantiria o atendimento das famílias vulneráveis pelo Auxílio Emergencial e, em seguida, pelo Bolsa Família, programa internacionalmente premiado e capaz de reduzir desigualdades.

Por que o governo não admite esta solução? Primeiro, pela motivação eleitoral, que envolve extinguir o Bolsa Família, substituindo-o por um programa repleto de incertezas, com desenho equivocado e cujos benefícios adicionais são circunscritos ao ano eleitoral.

Segundo, a abertura de espaço fiscal no teto pretende viabilizar as emendas de relator, garantindo até R$ 20 bilhões para a base do governo em ano eleitoral, sem quaisquer critérios objetivos ou transparência no uso dos recursos.  

Enfim, o que está em jogo, do ponto de vista do governo, não é o atendimento dos mais pobres, mas seus interesses eleitorais e clientelistas, com vistas a aprofundar o projeto autoritário em curso e desconstruir a institucionalidade da política social.  Mas ainda há tempo de consertar o estrago.

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