Faltando apenas alguns dias para o pagamento da primeira parcela do Auxílio Brasil em novembro de 2021, o cenário é de desordem, incerteza e, mais do que tudo, insegurança para milhões de brasileiros que sofrem com a crise econômica e as consequências da má gestão sanitária do governo Bolsonaro durante a pandemia.

Em um processo caótico de desorganização do principal programa público de transferência de renda do Estado brasileiro, que completaria 18 anos de reconhecido sucesso nacional e internacional, a Medida Provisória 1061, de agosto de 2021 extinguiu o Bolsa Família sem colocar nada viável no lugar. Diz o texto que será Auxílio Brasil, mas a organização legislativa e técnica do documento é de tamanha miserabilidade, que se pode afirmar que Bolsonaro preferiu flertar com o apagão das rendas dos pobres como “solução final” de seu governo em franca retirada após inúmeros e vergonhosos fracassos.

Que me perdoem os ainda gentis nesses tempos de cólera, mas o cenário desenhado por Bolsonaro é de pusilanimidade para o povo brasileiro. Vivemos duas crises profundas. A primeira foi provocada pelo Golpe de 2016, que desorganizou o modelo de desenvolvimento centrado em direitos constitucionais para um processo de reformismo ultraliberal, resultando em aumento do desemprego estrutural e no arrocho de longo prazo de todas as políticas sociais, inviabilizando a Constituição.

A segunda crise veio com a pandemia, cujo filhote do golpismo, o governo Bolsonaro, acelerou um processo de 20 anos em apenas dois, introduzindo a figura do extremismo e do negacionismo científico no interior do Estado que, no meio da ameaça externa do vírus, levou a perdas significativamente maiores de vidas, à saída de milhões de brasileiros do mercado de trabalho e piora da informalidade dos que ficaram, e ao empobrecimento brutal da classe trabalhadora, recolocando o Brasil no Mapa da Fome da ONU. A resposta de Bolsonaro a este abismo econômico e social foi mais pobreza. E mais mortes.

A saída do governo é um jogo de perde-perde para a sociedade. Sem deixar o seu compromisso com o golpismo que o elegeu, propôs uma emenda constitucional para modificar o cálculo do teto de gastos para as decisões judiciais transitadas em julgado, conhecidas como precatórios, invalidando o teto para seu governo, mas não para os próximos.

Não se tenha dúvidas de que estes precatórios constituem gastos predominantemente para os ricos, pois é o setor da sociedade que mais possui acesso à Justiça, ainda que se tenham decisões relacionadas a pensões alimentícias e aos fundos constitucionais que sejam importantes para o povo, mas pouco representativos.

Todo o espaço fiscal fictício gerado pela inflação seria consumido por esse gasto extremamente regressivo. No entanto, é temerária a solução de criar uma falsa promessa de renovação do Bolsa Família como pretexto para suspender as regras fiscais que os próprios golpistas estabeleceram.

A única certeza que se tem hoje é de que os precatórios serão pagos, mas, se confirmado o Auxílio Brasil, o Bolsa Família morreu e toda sua estrutura federativa de cadastramento, seleção e pagamento de benefícios não foi substituída, pelo menos não como está escrito no texto da MP 1061.

É praticamente impossível que se consiga pagar o valor prometido de R$ 400 em novembro. E, se por milagre o Congresso aprovar a PEC dos Precatórios, a MP 1061 e o projeto de lei que transfere o orçamento do extinto Bolsa Família para o Auxílio Brasil até dezembro, o benefício será composto de uma parcela permanente, muito próxima do atual valor do Bolsa Família — sem reajuste desde o fim do governo Dilma —, e outra temporária, escandalosamente até o final das eleições de 2022.

Ademais, o Auxílio Brasil é uma espécie de seleção de más práticas em programas de transferência de renda:

1) É excessivamente complexo, com múltiplos benefícios;

2) Cria bônus inúteis para o objetivo de superação da pobreza;

3) Estimula a competição individual em um programa essencialmente comunitário;

4) Impessoaliza e digitaliza o atendimento de pessoas sem acesso adequado a serviços de internet, aplicativos de celular ou bancos, ignorando o Sistema Único de Assistência social (SUAS) e fragilizando o CadÚnico;

5) Não especifica fonte de financiamento, linha de renda de acesso e benefício médio no texto legislativo, atentando flagrantemente contra a legislação fiscal;

6) É um programa eleitoreiro, temporário, e que, por isso, fragiliza o direito dos pobres à dignidade, associando perigosamente um programa do Estado ao voto a um determinado governo.

Vivemos a miséria do Auxílio Brasil, uma tragédia criada por negacionismo científico, preconceito contra os pobres, incompetência técnica e golpismo neoliberal contra o Partido dos Trabalhadores e seu legado para as políticas sociais da Nova República.

Qualquer governo minimamente comprometido com a sociedade deveria estar preocupado com a totalidade do flagelo gerado pela crise pandêmica, cuja população em risco de renda é muito superior aos 17 milhões de público alvo do novo Auxílio Brasil, e cuja proteção de renda deveria ser emergencialmente maior, igual aos R$ 600 como se pagou aa primeira onda da Covid, combinado com a reestruturação do Bolsa Família no pós-pandemia.

Não somente isso, um programa inovador de garantia de emprego e sustentação do investimento público deveria estar na agenda prioritária do Estado, e não o pagamento de dívidas judiciais. A ausência de um pensamento estratégico para a questão nacional está levando o Brasil ao ponto de disruptura do tecido social, cujas consequências podem ser irreversíveis.

`