O governo de Jair Bolsonaro age para desmantelar os mecanismos de Estado que são capazes de oferecer proteção às florestas. O objetivo é colocar em prática um pensamento arcaico e antiquado presente no conjunto de militares que hoje comanda o país. Essa é a perspectiva do sociólogo Ricardo Abramovay. Como o restante do mundo, ele diz não acreditar que Bolsonaro e seus ministros venham a fazer qualquer coisa que beneficie a preservação das florestas.

Avalia que o problema é que o presidente e os militares que o cercam são negacionistas e acreditam que estão protegendo o território brasileiro de ameaças estrangeiras ao abrir espaço para atividades como o garimpo ilegal e o desmatamento. Para Abramovay, os acordos firmados na Cop26, em Glasgow, na Escócia, são fruto da pressão dos EUA, mas não representam qualquer mudança na forma de atuar do governo brasileiro. Para o professor da USP, é urgente que o Brasil possa ter logo um novo governo.

Nesta entrevista à Focus Brasil, Abramovay afirma que o desafio do país não é tão grande para a diminuição da emissão de gases do efeito estufa, basta acabar com o desmatamento. O problema é que o Palácio do Planalto dá proteção para que o crime organizado cresça na região das florestas e isso torna a tarefa muito mais árdua.

Em paralelo, o mundo tem um desafio enorme que é a descarbonização da vida social. O professor lembra que, apesar do empenho de autoridades, ativistas e de tantos outros atores, nos últimos 30 anos, a dependência que o mundo tem dos combustíveis fósseis passou de 86% para 80%. O processo lento é reflexo do tamanho da dificuldade para realizar a transformação necessária. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

 

Focus Brasil — Uma série de acordos de redução de emissão de gases causadores do efeito estufa foram firmados na Cop26, mas o fato é que desde o Acordo de Paris pouca coisa andou. O senhor acredita que exista alguma diferença com relação às promessas firmadas agora?

Ricardo Abramovay — Há dois acordos que foram assinados já na primeira semana da Conferência e que são importantes. O primeiro é o referente à redução em 30% na emissão de metano até 2030. Ele foi precedido por um outro feito antes da Cop, entre EUA e Europa, com esse objetivo. É um acordo muito importante para o Brasil porque tendo em vista que somos os primeiros exportadores mundiais de carne bovina, o famoso “arroto do boi” é um dos vetores fundamentais da emissão de metano e, portanto, o país ter assinado esse acordo, não sem resistência, é um fato positivo.

O segundo ponto positivo é a assinatura por parte do Brasil do acordo referente a zerar o desmatamento até 2030. Em ambos os casos, o contraste entre esses compromissos e o que de fato ocorre na política governamental – política governamental é uma expressão muito elogiosa para falar desta gangue que hoje governa o país –, há um abismo que é nítido internacionalmente e é nítido no aqui também.

Essa é a razão pela qual há dois países na conferência. De um lado, o país dos movimentos sociais, das ONGs, de um conjunto muito expressivo e muito importante de grandes empresas comprometidas com a luta contra a crise climática, de governos estaduais que estão se comprometendo nessa luta. E, do outro lado, o governo federal, que desmantelou o Ibama, faz propaganda, na prática, da ilegalidade, tentando permanentemente convertê-la em legalidade. Ou seja, se esforçando para legalizar áreas invadidas, para permitir que o garimpo predatório, criminoso, ilegal, poluente e assassino. Acabaram de ser assassinados dois indígenas por garimpeiros ilegais. Então, há um abismo entre essas duas realidades.

Não tenho qualquer expectativa positiva de que, no que depender do atual governo federal, haja avanços. Há duas razões para isso. Em primeiro lugar porque, tanto o presidente da República como o vice – isso é muito importante: o vice-presidente que é, supostamente, o homem sensato, razoável, participou, 15 dias após o lançamento do sexto relatório do IPCC, de um evento no Instituto General Villas-Boas composto exclusivamente por negacionistas climáticos. Ele fez a conferência de abertura. Quando você assiste à fala dele, a frase que ele usa é que a sustentabilidade é uma ameaça à segurança nacional.

 

— Por qual motivo?

— Ele resgata aí uma doutrina militar exposta com toda clareza pelo general Luíz Eduardo Rocha Paiva numa live organizada por uma entidade do General Sérgio Etchegoyen e do Raul Jungmann. Os militares, tanto Mourão quanto Luís Eduardo Rocha Paiva, como o conjunto dos militares que hoje formam o pensamento do Palácio do Planalto e, em grande parte, da Esplanada dos Ministérios, é completamente ancorado na visão que se tinha da Amazônia nos anos 1950. Ou seja, a Amazônia é um espaço vazio cobiçado por potências estrangeiras interessadas nas nossas riquezas e em impedir que o Brasil explore tais riquezas naturais para impedir que o país se afirme como grande potência na exploração dessas riquezas. E os principais atores dessa intervenção estrangeira voltada a impedir “nossa grandeza” são os ativistas e as ONGs que usam os inocentes indígenas como ponta de lança.

Isso que eu estou falando pode parecer uma caricatura, mas quem achar que eu estou exagerando, por favor, assista à exposição do vice-presidente da República a 100 dias da Conferência de Glasgow, abrindo um encontro de negacionistas climáticos, e à fala do general Luís Eduardo Rocha Paiva, para ver se eu estou exagerando. Qual é consequência disso? Para impedir essa ocupação estrangeira da Amazônia eles consideram necessário estimular atividades que ocupem rapidamente este território. E como eles fazem isso? Estimulando a derrubada florestal, a ocupação desse local por atividades econômicas que, evidentemente, serão incompatíveis com a manutenção da floresta em pé porque são atividades baseadas nos conhecimentos e nas práticas tradicionais vigentes no processo de ocupação predatória da floresta amazônica.

O Ministério das Minas e Energia está com um novo projeto para tentar continuar com as usinas hidrelétricas, inclusive, no rio Tapajós. São hidrelétricas, mineração, extração predatória de madeira e exploração de soja. Uma das mais emblemáticas expressões disso chama-se AMACRO (Amazonas, Acre e Rondônia). E uma espécie de MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) do Sul do Amazonas, do Acre e de Rondônia.

Essa sigla está sendo difundida por um conjunto de organizações, envolve um segmento da Embrapa, o general que comanda a Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus) e, sob a retórica da bioeconomia, trata-se de tirar a floresta dessa área, praticamente. E é muito interessante assistir à declaração do presidente da Federação da Agricultura do Acre, que diz: a floresta “é um incômodo”. São pessoas que vem de outras regiões do país e querem transformar a floresta no que conhecem. É um problema.

 

— O Estado é hoje o principal vetor do desmatamento e do garimpo ilegal na Amazônia?

— Não é o Estado. É o governo que tem um projeto de destruição, não só da floresta. Eu não tenho a impressão de que seja disfuncional. Eu acho que é funcional. Porque durante a campanha eleitoral eles anunciaram que iriam fazer isso. Esse é o projeto do governo que consiste em ocupar o quanto antes a Amazônia por meio das atividades hoje dominantes e com o esforço de legalizar o que a legislação brasileira hoje trata como crime. Se tem uma coisa que não se pode dizer é que essa turma está surpreendendo alguém.

Admito que o rapaz que trabalha na padaria ao lado de casa fique surpreso com isso. Agora, que um dirigente empresarial se diga assustado, aí é cinismo. Porque Bolsonaro avisou que iria fazer isso. Quem votou nele ou quem se absteve, votou sabendo que ele iria fazer isso: tentar legalizar o que ainda é considerado criminoso e estimular uma cultura avessa à manutenção da floresta em pé.

A retórica do bolsonarismo, por mais que provoque indignação em cada um de nós, e numa parte muito significativa do empresariado brasileiro, tem um impacto na Amazônia extraordinariamente forte nas câmaras de vereadores, nas associações comerciais, nos clubes de diretórios lojistas. Se você pegar a morfologia da sociedade civil da Amazônia, você tem uma base social local que não é influenciada, mas que age a partir dessa retórica destrutiva que é muito forte. E ainda mais quando isso tem o respaldo de um segmento militar que hoje está no comando.

 

— Voltando à Cop26, lá se reuniram instituições financeiras e empresários que administram uma fortuna de US$ 130 trilhões e que quer financiar a manutenção das florestas. O senhor acredita que diante do negacionismo de Bolsonaro, há possibilidade de que tal investimento chegue ao Brasil?

— É difícil a gente dizer porque o embaixador Carlos França não é tão sectário, no sentido literal da palavra, como seu predecessor. Tanto Ricardo Salles como Ernesto Araújo tinham uma retórica abertamente antiglobalista, anti-multilateralismo democrático etc., Essa retórica no Itamaraty e no Ministério do Meio ambiente foi abandonada. Quando você junta isso com o empenho da diplomacia americana, do John Kerry – ou do Jim Carrey, como disse o Bolsonaro [gargalha] – de aparecer como alguém que conseguiu dobrar um candidato a ditador e fazer com que esse candidato tiranete voltasse à razão e assinasse acordos internacionais, se arma um cenário que pode ter resultados, inclusive, positivos.

Agora, entre esses cenários de compromissos internacionais e o engajamento do governo federal na direção da manutenção da floresta em pé ou da regeneração de toda a destruição que foi feita, há um abismo. Veja, o Bolsonaro visitou uma área de garimpo ilegal dias antes da conferência climática. É inacreditável. E mais: uma parte importante da base parlamentar do governo no Norte do país é avessa a mudar o comportamento e as políticas. Não dá para achar que eles vão voltar a demarcar terras indígenas e proteger territórios desprotegidos. Não vejo a menor chance de isso acontecer.

 

— Quais são os mecanismos econômicos para receber investimentos para manter a floresta em pé?

—  São duas coisas. Primeiro, manter a floresta em pé não se faz por meio de mecanismos econômicos. Existe uma pressão que só cresce porque tem um componente adicional nessa história que é a retórica de que “índio tem terra demais”. Toda essa retórica extremista com relação a Amazônia, acentuou o poder do crime organizado na floresta. E o crime organizado na Amazônia não é mais restrito a tráfico de armas e tráfico de drogas. Hoje, está vinculado ao garimpo ilegal e à grilagem de terras. Desarticular isso quando esses malucos saírem do poder vai ser bem difícil. Vai ser uma das tarefas mais árduas que a democracia brasileira vai enfrentar quando nos livrarmos desses malucos.

Então, imaginar que você pode manter a floresta em pé por mecanismos econômicos é imaginar que você vai ter mecanismo econômico em que o criminoso diga: “Ah, vale mais a pena eu comprar crédito de carbono do que eu fazer grilagem ou garimpo ilegal”. Isso não existe. É completamente ilusório. O que não significa que não seja importante crédito de carbono ou financiar a manutenção da floresta em pé. Fortalecer as instituições e as organizações estatais de manutenção da floresta em pé é o ponto de partida para que atividades econômicas ligadas ao fortalecimento dos serviços ecossistêmicos prestados pela floresta possam se desenvolver. É uma ilusão achar que você pode através de incentivos econômicos manter a floresta em pé já que o Estado é incapaz de exercer a sua soberania sobre esse território e, na prática, está recusando a essa soberania em benefício do crime organizado.

 

— Você falou sobre a pressão dos EUA, mas sabemos que também existe uma pressão de setores do empresariado nacional. Essa divisão no empresariado também é relevante, não?

— A maioria das empresas brasileiras de grande porte não tem interesse na continuidade da devastação florestal. E há movimentos muito importantes e significativos nesse sentido. O comprometimento dos três maiores bancos privados do país, Santander, Itaú e Bradesco, com a manutenção da floresta é uma coisa importante e inédita. A carta dos 17 ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central pedindo desmatamento zero na Amazônia e no Cerrado é algo também muito importante. Existe uma formação de organizações na Amazônia envolvendo sociedade civil, ativistas, CEOs de grandes empresas, cientistas e representantes de comunidades que vivem na floresta. Isso tudo articulado numa concertação pela Amazônia que tem produzido documentos muito interessantes. No fundo, essa concertação pela Amazônia é a única parte e o único tema no Brasil em que se formou uma verdadeira frente anti-bolsonarista. Você não tem isso no movimento negro, nos movimentos feministas, nos movimentos de defesa das populações pobres… Não tem isso em parte alguma. Na Amazônia, constituiu-se uma frente de atores muitos diversificados que até anteontem estavam em polos opostos e isso é notável.

E, além disso, o engajamento de governos estaduais por meio do Plano de Recuperação Verde do Consórcio de Governadores da Amazônia Legal. Claro que esse consórcio envolve o Flávio Dino, mas também o governador de Rondônia que está detonando tudo o que pode. Mas, justamente, a habilidade do Flávio Dino foi incrível para formular um plano de recuperação verde. Ao mesmo tempo, na Amazônia, essa unidade nem de longe é a mesma que se oferece no plano nacional das grandes empresas. Lá, muitas empresas são contrárias ao acordo de proteção às florestas.

 

— As forças que estão por trás dessa lógica do desmatamento da Amazônia e do garimpo ilegal estão vinculadas ao agronegócio?

— Você não pode dizer que hoje, por exemplo, a Klabin, a Syngenta, a Bayer e mesmo a JBS e a Marfrig estejam apoiando o desmatamento. Evidentemente, o desmatamento em última análise pode resultar no aumento da oferta de produtos agrícolas convencionais, mas durante um tempo limitado porque se você acaba com a floresta, você acaba com a agricultura. Hoje, justamente por isso, as grandes empresas do agronegócio e algumas de suas mais importantes associações como a Associação Brasileira de Agronegócio são organizações anti-bolsonaristas com uma posição muito clara da urgência de se zerar o desmatamento. Então, não dá para dizer que o agronegócio está por trás do desmatamento.

 

— Você já publicou textos explicando que não podemos esperar que a conscientização chegue a todos os consumidores. Como tornar viável a transformação já que se trata de um tema tão delicado?

— São duas coisas. Primeiro, a situação do Brasil. Temos um trunfo com o “low hanging fruit”. É uma expressão em inglês para algo fácil de acontecer. O Brasil é o único país do mundo que tem um “low hanging fruit” que se chama desmatamento. Para diminuir pela metade as emissões brasileiras não é necessária uma baita transformação na vida social, basta que as instituições e as organizações de repressão ao desmatamento funcionem. Zerar o desmatamento não é um tema de ciência e tecnologia, inovação tecnológica, mudança de hábito de consumo etc. etc. Zerar o desmatamento é parar de compactuar e de patrocinar o crime organizado. Então, o Brasil tem esse trunfo.

Na Rio 92, o mundo dependia em 86% de combustíveis fósseis na sua matriz energética. Em 30 anos, o número caiu para 80%. Então, é superlento. Mas não é lento porque as pessoas estão fazendo corpo mole, é porque é difícil fazer isso. O consenso hoje entre os mais importantes economistas do mundo sobre esse tema é que se você não taxar o carbono, se poluir não custar nada, agora não pode mais ser gratuito. Isso é um baita desafio. Difícil e fascinante. O desafio do desmatamento tem que despertar na gente apenas revolta e indignação. O desafio verdadeiro, intelectualmente e politicamente desafiador, é descarbonizar o conjunto da vida social.

 

— E qual é o caminho para isso?

— Precisa ter um preço para o carbono. O presidente da França tentou fazer e resultou no movimento dos Coletes Amarelos. Como isso é muito difícil, muitas vezes a retórica das pessoas é de que é necessário ter sempre soluções win-win [ganha-ganha]. Se não for, não serve. Ora, essa solução win-win é “eu vou ganhar dinheiro patrocinando uma energia renovável” e tudo bem porque é importante fazer esse patrocínio. Mas tudo o que está sendo feito até agora em energia solar, energia eólica, carros elétricos, baterias etc… Tudo isso é fundamental e vai fazer parte do pacote, mas é insuficiente como sinalização para a sociedade sobre as necessidades do que ela tem de mudar.

Vai ser necessário taxar o carbono. Isso já existe em alguns países. A União Europeia está firmemente engajada nessa direção. O preço dos combustíveis vai ter que subir. Acabou, não tem mais combustível barato. Isso não existe mais. Os subsídios diretos aos combustíveis fósseis, sem que se coloque nesse cálculo as emissões de gases do efeito estufa, hoje, estão na faixa de US$ 500 bilhões anuais. Se você pusesse como subsídio o fato de não cobrar pelas emissões, essa conta explode. Vai a 7%, 8% do PIB global. Tem um artigo recente publicado na revista Nature mostrando que se supuser que o carbono tem um preço que não está sendo pago, os subsídios são na faixa de US$ 7 trilhões. Enquanto esse tema não for resolvido, imaginar que gradualmente, pelas mudanças tecnológicas, pela consciência dos consumidores, você vai conseguir avançar, é ilusório. A boa notícia é que a Europa está superconsciente disso e a própria China. A cobrança pelo carbono vai se generalizar e a consequência disso para o Brasil é que quando se começar a cobrar pelo carbono, a soja brasileira que chega na Europa, o caminhão que transporta essa soja até o porto, as emissões desse caminhão vão ser cobradas. Não adianta dizer que “a soja é barata porque somos produtivos”. Se você tiver emissões nas exportações, isso vai ser incorporado ao preço.

 

— Um governo democrático que venha assumir, com diálogo com a comunidade internacional, terá peso político para que a comunidade internacional nos ajude a financiar a Amazônia?

— Claro. E isso já foi feito. O Fundo Amazônia é uma expressão do multilateralismo democrático que o governo Lula conseguiu de forma racional e equilibrada. O Fundo Amazônia não funcionava por promessa, pagava-se pelo que tinha sido feito e não pelo que se prometia fazer. Era uma compensação ao que estava sendo feito. E o Fundo Amazônia é um modelo que funciona de maneira superinteressante porque não é centralizado. A hora que tivermos um governo racional, tecnicamente competente, equilibrado, democrático, favorável ao multilateralismo, esse diálogo será fértil ao Brasil. Não há razão para que a comunidade internacional não encontre na manutenção da floresta em pé métodos que permitam o financiamento das atividades comerciais e o pagamento pelos serviços que ela presta. Quer dizer, não são só as hidrelétricas brasileiras e as cidades do interior paulista assoladas pelas tempestades de que dependem da Amazônia. O mundo que depende da Amazônia.

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