Redes sociais e desinformação: o desafio brasileiro
Várias das empresas protagonistas das redes sociais que atuam no país, tem o seu modelo de negócios atual baseado na publicidade. Com o avanço e conjunção de recursos tecnológicos de Big Data, melhorias na conectividade, capacidade de processamento computacional e pesquisas desde os anos 70 de psicologia comportamental, percebeu-se que com alguns pequenos “pontos de acesso” se poderia identificar características marcantes de uma personalidade, e com a tecnologia disponível delimitar pequenos universos de pessoas, em um nível de personalização quase infinitesimal.
Constatou-se igualmente que com a abordagem informacional adequada até mesmo personalidades e comportamentos poderiam ser completamente modificados. Sabia-se isso desde a guerra do Vietnã, e as pesquisas de B. F. Skinner, mas dada a tecnologia vigente o emprego era restrito. Com a atual revolução tecnológica, tudo mudou. Por conseguinte, desejos de consumo poderiam ser não somente identificados como também cunhados, com a disseminação da (des)informação certa e atendidos pela publicidade justaposta.
Fuzis semiautomáticos, carros possantes e poluidores, remédios milagrosos para perda de peso, alimentação gordurosa, sementes transgênicas, tudo pode ser vendido quando transmitido ao público certo, no momento emocional adequado, mesmo que o referido momento tenha que ser criado.
De fato, as empresas de redes sociais utilizam as fragilidades humanas para promover vendas e isso não consiste propriamente em uma novidade. O capitalismo monopolista faz isso secularmente e ganhou na televisão e rádio parceiros essenciais para a busca do consumo irracional. Todavia, as novas tecnologias ampliariam essa lógica exponencialmente, em que o sistema informacional identifica uma “presa”, com um nível de precisão microscópico (microtargeting), e segue propagandeando até realizar o consumo irracional.
Não bastasse esta tragédia de manipulação comportamental voltada para o consumo sem freios, um primeiro agravante se dá quando parcela expressiva das empresas focadas em redes sociais precisou ampliar as vendas de publicidade, aumentando o lucro, em um universo finito de pessoas online. Por mais que existam bilhões de pessoas cadastradas nas diversas redes, nem todas dedicam grande parte de seu tempo a isso. Para mudar este quadro os algoritmos (programas) de parcela destas empresas começaram a selecionar conteúdo que gerasse mais engajamento.
Ou seja, passaram a fazer que as pessoas continuem conectadas, mesmo que o sentimento provocado seja de aversão ou nojo. A título de exemplo, imaginemos acessar um aplicativo de vídeos e lá encontrar uma filmagem mostrando a Terra, com o título: o planeta é azul. Por outro lado, igualmente imaginemos visualizar a chamada para um vídeo argumentando que a terra é plana. Qual geraria mais repercussão? Qual provocaria mais compartilhamentos e exibições mesmo que a título de piada?
Trazendo para a realidade brasileira, qual o número de visualizações de uma entrevista da deputada Maria do Rosário (PT-RS) explicando um projeto sobre segurança pública? Por outro lado, quando foi dito em 2014 que a deputada “não merecia ser estuprada” por que “era feia”, quantas pessoas não visualizaram esse vídeo?
Quantas feministas, humanistas ou democratas, não somente viram o vídeo como o replicaram amplamente em suas redes sociais, gerando volume e repercussão, e ajudando a divulgar um personagem com papel até então bastante limitado na vida política brasileira: Jair Bolsonaro? Ao ampliar de forma gigantesca o alcance deste tipo de mensagem, quantas pessoas fragilizadas pelas inseguranças de um mundo com tantas transformações não se identificaram com a mensagem agressiva de ruptura da civilidade política, mais do que com seu conteúdo?
Mesmo dando visibilidade para uma ampla gama de desinformações, parte destas empresas de tecnologia lucraram como nunca, e permaneceram até pouco tempo atrás com este modelo de negócio intocado. Ao permitir a promoção da desinformação, seus algoritmos geraram engajamento, com os usuários permanecendo online cada vez mais, e com isso disponibilizando o seu tempo de acesso para ser vendido aos anunciantes. Para esses empresários, não importa se temas como terraplanismo, movimento antivacina, doutrinação gay e demais desinformações negando a ciência, ao adquirirem grande visibilidade, provocaram danos a vida das pessoas. Atuando em um território fora da lei, sem fiscalização do Estado, a promoção desse conteúdo tóxico suscitou enorme quantidade de tempo dos “usuários” para ser vendido, e lucros estratosféricos para tais empresas tecnológicas.
Não bastasse a negação da ciência, outra consequência trágica é a promoção do fascismo e da extrema-direita. Temas relativizando o nazismo, ou imputando-o à esquerda, resgatando a ditadura militar e seus crimes ou minimizando sua corrupção, passaram a irradiar pelas mais diversas camadas da sociedade brasileira. Personagens dos mais bizarros, repentinamente, foram alçados a condição de atores políticos relevantes, devendo ser ouvidos. Suas posições antidemocráticas entraram na pauta, e passaram a constar no panorama político brasileiro e de outras nações, como o exemplo dos EUA demonstrou.
Ainda mais grave foi que o manejo do método de promoção de mentiras e desconstruções de fatos e pessoas não ficou restrito às empresas de redes sociais e buscas. Em uma espécie de democratização das operações de desinformação, as plataformas igualmente foram sendo empregadas por empresas como a Cambridge Analytica para deturpar plebiscitos e eleições pelo mundo.
O referendo sobre o Brexit, no Reino Unido, e a vitória de Trump, nos Estados Unidos, são dois exemplos amplamente comprovados. No tocante as eleições brasileiras de 2018, em que pesem as dúvidas sobre o envolvimento direto da Cambridge, os métodos foram bastante semelhantes.
Para além da desconstrução dos governos petistas de Lula e Dilma, com farto uso de falácias e calunias, houve uma mudança de grau naquelas eleições presidenciais. Dentre milhares de desinformações circulando, temas como mamadeira de piroca, kit gay, golden shower, foram os tópicos que mobilizaram o debate eleitoral.
O protagonismo de tais banalidades deixou o mundo político, e a esquerda e centro esquerda perplexos. Ao se aterem ao sentido literal das palavras, não se percebeu que estes atores operavam em uma camada bem mais profunda, originada dos medos e inseguranças de um mundo neoliberal, excludente e bárbaro, em que a expectativa de futuro das novas e velhas gerações é restrita.
Interessante notar que a Cambridge Analytica foi originária do SCL Group (Strategic Communication Laboratories), uma empresa estabelecida nos anos 90 para prestar serviço de análise de “dinâmica comportamental”, com o objetivo de facilitar “comunicação estratégica” — leia-se, operações psicológicas. Esse tipo de empresa atende prioritariamente demandas do Departamento de Defesa e da CIA, com o objetivo de ocultar a participação formal do Estado norte-americano, caso as intervenções sejam desmascaradas.
Cada potência global tem seus métodos específicos de atuação nesta arena, e os EUA operam terceirizando uma parcela significativa de suas “ações encobertas”, criando buffers de proteção ao Estado, o que fornece ao governo de plantão capacidade de negação plausível. O SCL Group teria atuado sobre diversos processos eleitorais, em países como Letônia, Ucrânia, Albânia, Romênia, África do Sul, Nigéria, Quênia, Ilhas Mauricio, Índia, Indonésia, e Filipinas. Tais nações foram sido alvos das operações de manipulação eleitoral da empresa operando para os serviços de inteligência norte-americanos.
É possível inferir que a Cambridge Analytica decidiu ofertar seus serviços à direita ultraconservadora e intervir em território até então proibido: nações do núcleo duro do “ocidente”, como Reino Unido e EUA. A partir do momento em que mudaram seu foco e deixaram de atuar a serviço de todo o império, para assumirem uma facção, provavelmente passaram a repassar seus serviços e conhecimento a atores deste campo em todo o globo. O que indicaria a forte de ocorrência de ações de desinformação e foco em grupos sociais específicos amplamente empregadas sobre as eleições de 2018. Como antes observado, em certo sentido a Cambridge ajudou a democratizar o emprego de “operações psicológicas”, ao menos para a extrema-direita.
Ante este panorama parcial, pois o tema é complexo e abrangente, algumas constatações são evidentes. 1. Além de serviços de inteligência estrangeiros das principais potências, uma parcela da extrema-direita global tem acesso a métodos e tecnologia para implementarem operações psicológicas bem sucedidas; 2. Grande volume de desinformação será empregado nas próximas eleições, muitas vezes chegando sub-repticiamente às pessoas, sendo difícil percebê-las e combatê-las; 3. Existirão redes sociais sem representação formal no país que serão um território livre, com grupos de conservadores radicais orquestrando as mais diversas atrocidades; 4. Caso um governo de esquerda assuma a condução do governo federal terá que lidar com grandes antagonistas externos, seus serviços de inteligência, e seus lugares-tenente locais; 5. Por conseguinte, na ocorrência de um novo governo democrático e popular, as operações psicológicas a serviço de agências de espionagem, empresas privadas e grupos fascistas serão inevitavelmente empregadas novamente; 6. Sem o desenvolvimento de capacidades de defesa do Estado brasileiro o cenário pode se tornar ainda mais preocupante. Algoritmos radicalizando posições e promovendo desinformação, novas redes sociais sem controle se tornando o paraíso do crime organizado, promoção ainda maior de preconceitos e de organizações de cunho totalitário, e até mesmo a completa inviabilização de um novo governo mediante a construção de uma realidade fictícia.
Se a realidade nem sempre é fácil, conhece-la é o principal instrumento para mudá-la. Este contexto futuro não está posto, e tampouco é inevitável. Com política adequada, promovendo a regulação e o maior alcance do Estado e seu sistema judiciário, banindo a atuação em território nacional das empresas do ramo que não sigam as leis brasileiras, em conjunção com a criminalização de tais atividades, é possível mudar o quadro.
O grande desafio da esquerda e dos democratas no contexto atual é compreender este ponto cego, buscando entendê-lo, para em seguida impedir que tais ações continuem sem freio.