Hora de aprimorar o SUS
A CPI da Covid já cumpriu o papel histórico de revelar ao país os principais responsáveis pela catástrofe sanitária que foi a condução da pandemia no Brasil. Por uma opção deliberada e continuada do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, de apostar na imunização coletiva pelo contágio, mais de 600 mil vidas de brasileiros e brasileiras foram perdidas.
No Brasil, morreram quatro vezes mais pessoas por Covid do que a média de outros países. Estudos apresentados na CPI apontam que, se tivéssemos enfrentado a pandemia, considerando as recomendações da medicina baseada em evidências científicas, cerca de 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas.
Para colocar em prática essa aposta macabra, Bolsonaro, apoiado por um grupo de médicos, parlamentares, empresários e funcionários do governo, boicotou as medidas de distanciamento social e de uso de máscaras. Também criou a falsa narrativa de que existia um tratamento preventivo e precoce para a doença, o chamado “Kit Covid”, para passar a falsa sensação de segurança para a população e estimular o contágio. Ele ainda negligenciou a compra de vacinas. Apesar de todos os esforços da CPI, ainda somos a 60ª nação no ranking proporcional de imunização.
A CPI também desnudou um esquema de corrupção na compra de vacinas no coração do Ministério da Saúde, que só não foi levado a cabo em razão da atuação das investigações conduzidas pelo Senado. Além disso, revelou os horrores da operadora de saúde Prevent Senior, que, com a conivência do governo Bolsonaro e dos conselhos de classe, realizou testes de medicamentos em seres humanos, adulterou de atestados de óbitos e enviou pessoas para morte ao estabelecer um prazo máximo de internação em UTI para doentes de Covid. Sem falar nos horrores ocorridos em Manaus, que foi transformada em um laboratório a céu a aberto.
Esses e tantos outros crimes — contra a vida, sanitários e de responsabilidade —, bem como seus responsáveis, estão elencados e tipificados de forma técnica e consistente no relatório final da comissão, que indicou o indiciamento de 66 pessoas, dentre elas Bolsonaro, e de duas empresas, que poderão responder por 19 tipos penais. Mas, o nosso trabalho não se encerra com a votação e encaminhamento do relatório para as autoridades competentes. Uma série de desdobramentos e iniciativas legislativas também serão apresentadas como resultado do trabalho da CPI.
É fundamental, por exemplo, assegurar dignidade para os mais de 113 mil menores que perderam o pai, a mãe, ou ambos para a Covid. Por isso, nosso projeto prevê a concessão de uma pensão, no valor equivalente a um salário mínimo — R$ 1,1 mil —, para os filhos menores de 18 anos dos pais que faleceram em razão da doença. Também a criação de uma pensão especial, igualmente no valor de um salário mínimo, para pessoas que apresentem incapacidade laborativa permanente ou temporária resultante da infecção causada pela Covid.
Outro desdobramento legislativo que propomos é o Estatuto do Paciente, que estabelece os direitos dos doentes, como as diretivas antecipadas, a respeito de condutas diagnósticas e terapêuticas que aceita ou recusa receber na eventualidade de não poder expressar autonomamente a sua vontade, e sobre direitos dos pacientes em estado terminal de vida.
Ainda há o enfrentamento da problemática envolvendo a verticalização dos planos de saúde, com a criação de mecanismos para coibir a interferência das operadoras nos tratamentos oferecidos aos pacientes, nos hospitais de sua rede própria, em razão dos custos elevados de alguns tratamentos.
Acredito, entretanto, que a iniciativa de maior relevância seja a proposta de “responsabilidade sanitária”, que estabelece de uma vez por todas a articulação entre todos os entes da federação com a finalidade de garantir o acesso universal e a integralidade como garantias constitucionais de todos os brasileiros.
O projeto supre a lacuna sobre a responsabilidade sanitária, que ainda carece de positivação jurídica, uma vez que não existe legislação definindo responsabilidade sanitária no significado de compromisso público que o gestor de saúde deve assumir no âmbito do SUS, muito menos a formalização juspolítica do contrato entre os entes federados, a assunção de metas e controle que privilegie a avaliação dos resultados obtidos, assim como as respectivas penalidades pela malversação dos recursos do setor da saúde.
Trata-se de um avanço para a necessária reforma sanitária e gerencial, de modo a viabilizar a efetivação do papel do Estado brasileiro na prestação das ações e serviço de saúde e gestão do sistema, assentado sobre os princípios constitucionais da universalidade, descentralização e integralidade.
Por isso, propomos o funcionamento do SUS em dois eixos: a “responsabilidade sanitária”, com a atribuição de cada ente federado, e o “Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde”, instrumento concebido pela Dra. Lenir Santos, cujo objetivo é unificar e integrar as ações dos entes federativos, subsidiárias e complementares, levando em consideração as necessidades da região de saúde, dando ênfase à responsabilização dos gestores da saúde.
A pandemia reafirmou a importância do Sistema Único da Saúde como conquista e um direito fundamental do povo brasileiro, a despeito de um mandatário que não demonstrou qualquer compromisso com a saúde e com a vida de 212 milhões de pessoas. Por isso, é preciso coragem para avançarmos nos necessários aprimoramentos que fortaleçam os princípios sobre os quais ele foi concebido e assentado: a universalidade, a equidade, a integralidade, a descentralização e a participação popular.