O Plano Biden que está sendo colocado em prática nos Estados Unidos é objeto de análise do livro “Bidenomics nos Trópicos”, organizado pelo professor da Unifesp André Roncaglia e pelo ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa. Ele trata da proposta do presidente Joe Biden e de que forma as ideias aplicadas lá podem ser trazidas para a realidade brasileira.

 

Focus Brasil — O Plano Biden altera a agenda nos EUA?

Nelson Barbosa — É muito cedo para saber se muda completamente porque ainda não foi aprovado. Mas é, claramente, uma ruptura com o padrão predominante nos últimos 40 anos ao apostar numa tributação mais progressiva, procurar reforçar o Estado de bem-estar social, mas ainda de forma não radical. Por exemplo, na questão da saúde pública não avança muito. Mas é mais explícito na política industrial. Os americanos sempre fizeram política industrial sem dar este nome. Agora, com a concorrência com a China, isso tem ficado mais explícito. O objetivo é aumentar produção doméstica de chip, fortalecer a indústria de informação, digitalização, produção de energia, fontes alternativas…

 

— Então, essas mudanças visam também fortalecer o país para o enfrentamento com a China?

— Não é enfrentamento. Tem uma motivação doméstica que é a insatisfação por 40 anos de concentração de renda e tem uma preocupação geopolítica que é a concorrência com a China. Essas duas coisas levam ao resgate de quatro temas: tributação progressiva, reforço na rede de proteção social, política industrial e apoio a sindicatos. Tudo isso foi proscrito na agenda política americana.

 

— Os EUA são um país decadente?

— Não. É um país dinâmico, é um país rico, é um país muito desigual, mas não acho que seja decadente. 

 

— A atuação do Estado que Biden propõe tem alguma semelhança com o que tínhamos no Brasil antes do Golpe de 2016?

— Na parte de proteção de renda, sim. Ele aposta no aumento da transferência de renda para combater a pobreza. Os mecanismos são diferentes dos nossos. Lá, eles têm um crédito de imposto de renda. Todo mundo paga, inclusive os mais pobres. Só que os mais pobres recebem rapidamente e com complemento. Existe uma preocupação com economia dos cuidados, uma coisa que nós começamos a fazer aqui, mas que ainda estava muito incipiente: investir em assistência médica a idosos, crianças, pessoas portadoras de necessidades especiais. E tem uma preocupação com o salário-mínimo. Biden tentou aumentar o salário-mínimo. Acho que isso também é uma mudança importante e mostra que o salário-mínimo é um instrumento importante para reduzir desigualdade e impulsionar a economia.  

 

— O livro parte do Plano Biden para apontar como um projeto de desenvolvimento poderia ser construído no Brasil. Qual é o paralelo possível?

— Acho que os princípios de ação do Estado são os mesmos: 1) reduzir desigualdade; 2) fazer tributação mais progressiva; 3) apoiar os trabalhadores, mesmo que seja num formato diferente adaptado ao século 21 nas relações trabalhistas; e 4) um papel ativo do Estado no desenvolvimento tecnológico e na diversificação produtiva.

Agora, cada país tem condições iniciais diferentes, logo, isso limita o grau de ação. Por exemplo, nós temos o SUS. Então, podemos fazer muito mais em saúde pública do que os americanos. que ainda não têm um sistema público, nem sei se terão um dia. Por outro lado, eles têm uma situação fiscal muito mais confortável que a nossa. Eles se endividam somente na sua própria moeda, o Tesouro lá paga juros negativo. Então, têm um espaço muito maior para fazer uma política inicialmente expansionista emitindo dívida do que nós.

Nós podemos fazer, sim, uma política expansionista com emissão de dívida, mas num volume muito menor do que o dos EUA. Então, temos escolhas mais difíceis. Uma iniciativa aqui vai ter que ser muito focada em coisas que melhorem rapidamente o bem-estar da população. No caso do Brasil, me parece claro que é combate à pobreza, transferência de renda e geração de emprego. Isso seria o passo inicial. E uma política industrial adaptada a nossa realidade. Não temos o complexo tecnológico dos EUA, mas podemos participar ativamente de alguns investimentos, desenvolvimento de tecnologia na saúde, energia… O Brasil tem capital humano e conhecimento para investir ali.  

 

— O plano Biden visa construir uma sociedade mais justa porque um dos diagnósticos feitos por economistas é de que níveis elevados de desigualdade social colocam em risco a estabilidade e o próprio modelo democrático ocidental. É isso?

— Com certeza. Isso está claro no discurso do Biden na campanha, antes de ser eleito. E os números mostram que nos últimos 40 anos o crescimento da economia americana foi preponderantemente para o 1% mais rico. Entre 90% e 99% da população americana teve pequeno aumento de renda per capita nos últimos 40 anos. Isso gera problemas de desigualdade e uma ameaça à democracia porque junto com a concentração de renda vem a concentração do poder econômico de influir nas eleições, financiar campanha, fazer propaganda, censurar o debate de um jeito ou de outro. Então, essa percepção de que desigualdade excessiva mina a democracia também está dentro das preocupações que levaram a essa mudança de visão nos EUA.

 

— E é uma preocupação que o Brasil deve ter, obviamente?

— A desigualdade lá subiu bastante nos últimos 40 anos e estão chegando próximo da nossa. Mas já éramos tão desiguais como hoje há muito tempo. Este é um problema mais grave no Brasil.

 

— Tais mudanças nos EUA, ainda em processo, são um claro enfraquecimento da agenda neoliberal no mundo?

— É uma mudança. O neoliberalismo acho que está se esgotando, não dá para dizer nunca que acabou. As coisas nunca acabam de “morte matada”, acabam de “morte morrida”, vai acabando gradualmente. Acho que tem um esgotamento porque há 40 anos foi prometido que se liberalizaria a economia, teria uma desregulamentação, privatização, redução do poder dos sindicatos, abertura comercial e isso geraria crescimento, inicialmente, estimulando os mais ricos e depois isso vazaria para o resto da economia. Teve crescimento, não foi maior do que no período anterior, e não houve distribuição. Não vazou para o resto da economia, ficou concentrado. E levou essa concentração a ameaçar o próprio regime democrático no Ocidente.

Estamos vivendo uma fase parecida com o início do século 20, antes da 1ª Guerra Mundial, com o esgotamento do liberalismo. Só que levou um tempo para aparecerem outras coisas. É aquela frase do [Antonio] Gramsci que todo mundo repete hoje em dia: “o velho morreu, mas o novo não nasceu ainda”. A gente está nessa fase. O neoliberalismo está se esgotando. Obviamente, pode ter uma sobrevida ainda e cada país está procurando qual deve ser o modelo pós-neoliberal.

 

— Nos 1.000 dias do governo Bolsonaro, a agenda é oposto à de Biden. Estamos sob um neoliberalismo radical, mas sem projeto real para o país?

— É a vanguarda do atraso. O Brasil está tentando aplicar um modelo dos anos 1970 que já deu errado. Um modelo ultra-neoliberal como o Chile e os próprios chilenos estão querendo superar esse modelo, que aposta na concentração de renda, repressão a minorias e às classes populares. Este não é um modelo sustentável. Se não é um modelo sustentável no Chile, um muito menor em termos de população, com 13 milhões de pessoas concentradas em poucas cidades, o que dirá do Brasil, um país mais diverso e com 210 milhões de pessoas. Esse modelo, do ponto de vista econômico e ideológico – de extrema-direita, de repressão – ele já era anacrônico antes de o Brasil começar a adotar. E nós estamos aqui vendo o resultado, né? 

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