A ortodoxia brasileira segue presa a dogmas, mesmo diante do impacto da austeridade sobre os gastos capazes de induzir a retomada da economia nacional.Para o próximo ano, os investimentos correspondem a 0,4% do PIB

 

A proposta orçamentária do governo federal traz previsão inicial de redução das despesas primárias de 18,9% do PIB em 2021 para 17,5% do PIB em 2022. A meta de resultado primário do governo central é de déficit de 0,5% do PIB, inferior ao estimado para 2021 (1,8% do PIB). A contração fiscal se dá em meio à necessidade de recuperação da economia.

Embora o projeto de lei do orçamento preveja crescimento real da arrecadação, não é possível convertê-lo em ampliação de gastos primários, já que a regra do teto trava a despesa no limite de 2021, atualizado pela inflação.

Diversos países estão revisando seu arcabouço fiscal. O Plano Biden prevê despesas vultosas para a recuperação conjuntural e mudanças estruturais na economia americana, articuladas a medidas tributárias. A presidente da Comissão Europeia já se manifestou sobre a revisão das regras fiscais, de modo que o bloco europeu não repetirá a política de austeridade adotada após a crise financeira de 2008.

Economistas do FMI defenderam o papel do investimento público na recuperação da economia, estimando elevado efeito multiplicador para gastos com infraestrutura tradicional, P&D e energia limpa. No entanto, a ortodoxia brasileira segue presa a dogmas, mesmo diante do impacto da austeridade sobre gastos capazes de induzir a retomada da economia. Os investimentos, mesmo computando valores relativos a emendas parlamentares impositivas, não deverão ultrapassar 0,4% do PIB em 2022, correspondendo a 1/3 dos valores aplicados em 2014.

Gastos sociais também são fortemente afetados pela EC 95. Para os anos de 2018, 2019 e 2022 (excetuando os anos de 2020 e 2021, quando houve ampliação de despesas emergenciais não computadas no teto), o orçamento de saúde ficou R$ 42,6 bilhões abaixo da regra de mínimo obrigatório anterior à EC 95, equivalente a 15% da RCL. Para 2022, a diferença é de R$ 25 bilhões, podendo comprometer a vacinação contra a Covid, cujo orçamento passou de R$ 27 bilhões (2021) para R$ 3,9 bilhões (2022).

O INPC deve fechar 2021 acima de 8%. Como o projeto de orçamento foi elaborado a partir de um INPC estimado de 6,2%, as dotações para benefícios da seguridade deverão ser reajustadas, afetando outros gastos.

Desde 2019, quando foram autorizadas despesas extra teto de R$ 55 bilhões, sabe-se que a rigidez do arcabouço fiscal levaria a artifícios para contornar o teto de gastos. Em 2020, com a pandemia, as regras fiscais foram suspensas, não contabilizando no teto os recursos extraordinários. Para 2021, sem um novo decreto de calamidade, utilizou-se interpretação duvidosa para viabilizar despesas emergenciais, dada a ausência do requisito constitucional da imprevisibilidade da pandemia.

Para 2022, o governo pretende atrasar pagamentos de precatórios, abrindo artificialmente espaço no teto para acomodar diversos gastos, relacionados, particularmente, a interesses eleitorais e a demandas de sua base parlamentar (emendas de relator, em torno de R$ 20 bilhões).

O FMI recomendou ao Brasil a adoção de cláusulas de escape ao teto, evitando a discricionaridade no manejo do regime fiscal. A posição é uma espécie de sintoma do quadro atual, marcado pela rigidez do arcabouço fiscal e pelo descumprimento do teto, paradoxalmente, defendido pelo próprio governo como âncora fiscal para gerar confiança entre os agentes econômicos.

O orçamento de 2022 é o retrato do governo atual, combinando o objetivo de desconstrução das instituições estatais e a captura dos fundos públicos pelo fisiologismo. De um lado, uma política fiscal anacrônica e ultraliberal, que comprime gastos estratégicos, retirando capacidade do Estado responder aos desafios atuais. De outro, a flexibilização seletiva da política fiscal, viabilizando gastos voltados a interesses eleitorais e clientelistas, indexados a um projeto político francamente autoritário.