Bobbio e Gramsci: um basta à doença fascista
Em setembro de 1997, recebi uma carta do professor Pietro Polito, colaborador e discípulo de Norberto Bobbio (1909-2004). Ele me informou da saúde do mestre que eu pretendia visitar em breve, passando-me – além de notícias do seu já difícil estado de saúde – um comentário dele, Bobbio, a respeito do meu livro “Utopia Possível”, pelo qual eu tentara conciliar algumas idéias chaves de Marx, com outra tantas do professor Bobbio.
Seu comentário encorajou-me a aprofundar as leituras de Bobbio e Gramsci, que eu já vinha fazendo há algum tempo e que então retomei com mais intensidade: “O professor Bobbio formou a ideia – asseverou o professor Polito – que existe entre as opiniões expressas pelo senhor e as próprias, notáveis afinidades que mereceriam ser aprofundadas posteriormente”.
Lembro esta passagem da minha precária atividade intelectual – supletiva da minha militância política – a propósito de uma manchete da “Newsletter” do Estadão, publicada em 5 de maio, com o seguinte texto: “Sociedade não quer saber de ‘tecnicidades’, mas de punição exemplar para os condenados por corrupção”.
A palavra ‘tecnicidades’, colocada de forma nitidamente deletéria chama atenção pela alarmante sinceridade fascista que ela assume no contexto atual.
Como o Estado de Direito enfeixa, de um lado, um conjunto de princípios inscritos na Constituição e, de outro, um conjunto de instituições que interagem principalmente através de uma “técnica” interpretativa, que visa a aplicação das leis, a palavra não poderia ter tido outra leitura. No seu “Teoria do Ordenamento Jurídico”, o Professor Bobbio irriga de inteligência as dimensões do Estado de Direito Democrático, na sua versão liberal-democrática, servindo-se precisamente destas “tecnicidades”.
As “tecnicidades” são a garantia, pois, do funcionamento do Estado de Direito. Elas, segundo Bobbio, ensejam os “pesos e contrapesos” passíveis de compor liberdade e autoridade, acusação e defesa, bem como a relação equilibrada entre os poderes, para não permitir que a soberania estatal se concentre apenas no indivíduo-governante. Sem isso, este governante seria um intérprete sem controle, para a aplicação da Lei em nome do Estado de forma arbitrária. É a decisiva influência de Kelsen, da Teoria Pura do Direito, sobre Norberto Bobbio, que vai saber pesar e ponderar as teorias de Kelsen, propondo uma atenção crítica, tanto para os “poderes invisíveis” do capital em qualquer democracia, como para a manipulação da informação pela burocracia estatal ou pelo crime organizado.
O mais importante do pensamento de Bobbio, no particular, é que ele entende que estas técnicas ou “tecnicidades”, como diz o Estadão (que compõem o Estado de Direito) deveriam dar “forma”, tanto a um Estado de Direito socialista, como capitalista ou socialdemocrata.
Do pensamento de Bobbio – assim concebido – vem o conceito que sem a obediência das “formas” do Estado de Direito, tanto o capitalismo como o socialismo tendem para o totalitarismo. O origem do pensamento de Bobbio, como principal crítico italiano do “marxismo soviético, são as leituras de Benedetto Croce, Giovanni Gentile, Locke, Hobbes, Hegel, inclusive Marx e Gramsci, como ele mesmo afirmou na série de entrevistas testamentárias, concedidas ao mesmo professor Piero Polito, seu fiel amigo e colaborador (Revista “La insignia” set/2007).
“Nunca me senti um verdadeiro escritor” – disse Bobbio ao professor Polito – numa daquelas entrevistas, “uma coisa é escrever, outra é ensinar”. E após reportar-se a Leopardi – que ele amava e venerava como poeta – apresenta-se como uma pessoa “que escreve mas não é escritor”, porque, na sua modéstia, entende que “nunca torna preciosas as coisas que toca”.
O escritor ilumina e dá fulgor ao mundo com a palavra, o professor “que escreve” – diz Bobbio – lida com com conceitos sem paixão: “não é um demagogo nem um profeta”. Já Antonio Gramsci, nos seus “Cadernos do Cárcere”, com sua práxis revolucionária, complementa e refuta Bobbio: ele é, ao mesmo tempo, um “professor”, para classe operária italiana derrotada pelo fascismo, e um “iluminador” da cultura italiana.
Gramsci – escritor e professor – analisa nos seus “Cadernos”, o teatro político que fez ascender Mussolini e suas turbas, muitos semelhantes aos grupos de marginais, que apoiados pelo ódio à esquerda – disseminado pela incriminação em abstrato feita pelo oligopólio da mídia – já se tornam justiceiros da ação direta, sem as “tecnicidades” da Justiça do Estado de Direito.
Aliás, nos trabalhos teóricos de Gramsci, está a visão de que “o fascismo não é uma anomalia, mas supõe a atualização do projeto hegemônico burguês surgido do Risorgimento”, o que analogicamente permitiria concluir que, não podendo fazer avançar o projeto neoliberal no Brasil por dentro da democracia, suas classes dominantes mais ligadas ao capital financeiro global não hesitaram em golpear um mandato presidencial legítimo e também turbinar a violência fascista, para ajudar a impor o seu projeto, mesmo contra a Constituição.
O espírito de turba, transformado em ação direta de “Justiça” como no recente caso da invasão de domicílio do ex-ministro José Dirceu, está bem transcrito em Carl Schmitt (“O Führer protege o direito”), quando ele zomba do direito liberal-burguês (do Estado de direito formal e “técnico”), vinculando mecanicamente o pensamento interpretativo do “Führer” ao próprio direito, sem as mediações da estrutura formal-legal. E diz: “Todo o direito tem a sua origem no direito do povo à vida. Toda a lei do Estado, toda a sentença judicial contém apenas tanto direito quanto lhe aflui dessa fonte. O resto não é direito, mas ‘um tecido de normas positivas coercitivas’, do qual um criminosos hábil zomba”.
Destes conceitos, precisamente, vem a necessidade de uma “justiça” promovida por grupos – indignados e violentos – que suprimem o direito posto pelo Estado e resolvem-no como ação direta contra os “criminosos hábeis”, estes – por óbvio – indicados arbitrariamente por quem “protege” e comanda o Direito.
Na Alemanha era Hitler, mas aqui – nos dias de hoje – quem protege e comanda o direito? A ausência destas “tecnicidades” permitiram a dura censura imposta ao Estadão pela ditadura militar, quando este jornal deixou de apoiá-la de forma irrestrita. Hoje, quando o Supremo parece ter perdido o controle da Constituição e as “tecnicidades” começam a ser substituídas pela “ação direta” – tanto do oligopólio da mídia, que indica culpados, julga e os sanciona publicamente, com ou sem culpa – como pelos grupos de bandoleiros que invadem domicílios e agridem pessoas processadas, temos que nos indagar quem protege e comanda o Direito no país? E o fazer, principalmente, para que o Supremo retorne, em breve, à condição de ser o guardião da Constituição.
A articulação política — espontânea ou planejada — entre o oligopólio da mídia, os procuradores de Curitiba e o juiz Sérgio Moro, sancionando conduções coercitivas ilegais, vazamentos seletivos, prisões infinitas sem trânsito em julgado, delações premiadas com objetivos políticos explícitos, tem legitimado as violências de rua contra a esquerda e vilipendiado os ministros do Supremo.
Quando estes reagem segundo a sua visão da Lei e da Constituição, obedecendo as técnicas mais comuns de interpretação do ordenamento jurídico, são logo jogados à sanha de uma “opinião pública” manipulada, como se fossem cúmplices de ilegalidades ou até mesmo de crimes. Os que vibram, hoje, com estas anomalias destrutivas da Democracia e da República, poderão sofrer, amanhã, as mesmas violências, tanto do guarda da esquina, como de outras turbas indignadas que emergirem da anomia sem política e sem garantias.
O professor Tercio Sampaio Ferraz Jr., na apresentação que fez da “Teoria do Ordenamento Jurídico”, diz que “uma crise só se transforma em desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos”. É precisamente o que está ocorrendo no país: os conceitos “prévios”, para a interpretação da Constituição, estão sendo orientados por quem comanda a opinião fora do Direito a partir do seu controle faz o Direito: o oligopólio da mídia.
Responder ao quase beco sem saída, em que a exceção nos enfiou, com imaginação política e jurídica, para que país não sucumba ao desastre, é urgente. Antes que a doença da violência sem limites e sem programa mate a possibilidade de um projeto de nação democrática. Imaginação já não nos falta e a coragem já se apresentou com milhões de cidadãos que fizeram e apoiaram a greve geral. •