A presença de meu pai
Por Bia Abramo*
Sobre a perda do pai, não há muito o que falar. O máximo que eu posso é citar meu sobrinho Lucas, 3 anos, e dizer com ele que “o passarinho ficou triste, a árvore ficou triste, a rua ficou triste…” O mundo sem meu pai se tornou um lugar menor, mais feio, mais vazio.
Por Bia Abramo*
Sobre a perda do pai, não há muito o que falar. O máximo que eu posso é citar meu sobrinho Lucas, 3 anos, e dizer com ele que “o passarinho ficou triste, a árvore ficou triste, a rua ficou triste…” O mundo sem meu pai se tornou um lugar menor, mais feio, mais vazio.
Eu prefiro falar sobre a presença de meu pai. Já disse em outra ocasião que é difícil usar os verbos no passado. Não por uma recusa burra da morte, mas pela convicção da permanência do afeto e pela crença numa espécie de transmissão genética do espírito ou de como quer que se chame o inefável. E daí o passado não faz sentido.
Também gostaria de me eximir de falar na sua dimensão pública, sem contudo, incorrer na indiscrição, coisa que meu pai não toleraria. Muitas pessoas são mais aptas do que eu para falar de sua carreira reta no jornalismo, da justeza de sua participação política e de sua capacidade generosa de ensinar. Todas essas características – a retidão, o senso de justiça e a generosidade – estavam presentes em sua vida familiar: na sua relação com minha mãe, com os filhos, netos, sobrinhos, irmã, pais, cunhados, tios, sogro, sogra etc. (a nossa família, ainda bem, é grande e cultiva a proximidade como um bem precioso).
Mas com a gente, a família, e com os amigos, meu pai compartilhou outras coisas tão grandes e tão admiráveis quanto as que se manifestavam na sua vida pública. Seu senso de humor, por exemplo. Sinal de sabedoria por excelência, meu pai sabia rir de seus males. Ele fez piada até com o analgésico fortíssimo que tinha que tomar nesse último período. O nome do remédio era Tramal. Ele dizia que era para quem estava “ultramal”. Assim, com trocadilhos (infames, nós dizíamos) ele relativizava suas doenças e suas angústias. Quando nós, as filhas, éramos adolescentes e saíamos com vestidos curtos, ele disfarçava a preocupação, o cuidado, dizendo: “A blusa está muito bonita, mas onde está a saia?” Durante o regime militar, para tudo o que não andava bem – a gripe de um dos filhos ou o carro que não pegava -, ele culpava a ditadura. Crescemos ouvindo: “É culpa da ditadura” e aprendemos que poderíamos lutar e pensar também com o humor.
Ele ria de tudo, mas não de todos. Na química do seu humor não entravam o sarcasmo e a humilhação do outro. Até com uma certa sisudez, ele se recusava a fazer graça das deficiências alheias e repelia qualquer forma de preconceito. Seu modo de ver o mundo era profundamente humanista. Nenhuma relação com a noção moderna e cheia de culpa tipicamente norte-americana de correção política. O humanismo que norteou a vida de nosso pai e que ele nos deixou como principal herança é daqueles que se formaram no combate pela liberdade, na percepção da igualdade fundamental entre os homens e no sentimento de fraternidade com o mundo. Ou seja, a essência de um homem de esquerda, tomando emprestadas as palavras do historiador marxista Eric Hobsbawn em uma entrevista recente.
Meu pai gostava da vida e essa também é uma grande lição que se deixa para os filhos e netos e sobrinhos e filhos “adotivos” (de novo a lista é extensa, mas não quero que ninguém fique de fora). Ele gostava de música (jazz e música popular brasileira, sobretudo), de cinema (filmes de gangster eram os seus prediletos), de literatura (eu e ele tínhamos uma velha querela sobre Machado de Assis e Eça de Queirós), de quadrinhos (príncipe Valente, Flash Gordon, Spirit), de comida (com uma curiosidade imensa e irrestrita), de viajar, de fazer os netos rirem… Na vida cotidiana de meu pai, esses prazeres tinham que brigar por espaço com a sua dedicação ao trabalho e com suas várias responsabilidades, mas nem por isso eram menos intensos.
Por fim, e era esse eu acho o sentido desse meu texto, meu pai e minha mãe (essas coisas se fazem em conjunto) ensinaram a gente a acolher, a se preocupar, a dividir. E agora, insisto, o verbo deve ficar no presente. Porque isso não se perde.
*Bia Abramo, filha de Perseu (com a contribuição de inúmeras conversas com seus irmãos e amigos).