Perseu Abramo é um exemplo raro de intelectual comprometido com as causas populares, num país em que os detentores de diploma tendem a ficar sempre ao lado do poder.
Por José Maria de Lima

Perseu Abramo é um exemplo raro de intelectual comprometido com as causas populares, num país em que os detentores de diploma tendem a ficar sempre ao lado do poder.
Por José Maria de Lima

O mestre inesquecível

Por José Maria de Lima*
Março de1966

Perseu Abramo é um exemplo raro, no Brasil, de intelectual comprometido com as causas populares, num país em que os detentores de diploma tendem a ficar sempre ao lado do poder.

Tive o privilégio de conviver com Perseu Abramo entre 1972 e 79, anos em que editou Educação na “Folha de S. Paulo”. Educação, tornou-se, aos poucos, o escoadouro das reivindicações de diversos setores da sociedade civil, Em 1977 foi a primeira greve dos professores da rede pública de 1 e 2 graus de São Paulo; depois as manifestações estudantis no centro da cidade, em protesto pelas prisões de estudantes seguidas da covarde invasão e depredação da PUC de São Paulo pelas forças policiais comandadas pelos delegados Sérgio Paranhos Fleury (o famigerado “justiceiro da ordem”) e Romeu Tuma e o não menos truculento coronel Erasmo Dias, então chefe de Polícia.

Numa época em que o setor de política era praticamente insignificante na “Folha”, cabia ao de Educação informar sobre os assuntos escamoteados nas primeiras páginas da grande imprensa.

Um dia Perseu me passou um folheto pedindo que redigisse dali uma nota. Era o lançamento do Comitê Brasileiro da Anistia. Fiquei emocionado por ser aquela uma causa que interessava a milhares de brasileiros e tocava também minha família – um dos irmãos fora expurgado das fileiras do exército onde servia como sargento nos idos de 64.

Quando recebia ordens da direção da empresa para privilegiar determinado “bilhete” oficial, Perseu pedia aos redatores para fazer a seguinte abertura: O Serviço de Imprensa do Governo do Estado de São Paulo divulgou ontem o seguinte comunicado: (abre aspas e fecha aspas). “Já que é preciso dar, vamos dar na íntegra”, dizia Perseu.

Um dos grandes momentos da Educação, sob a batuta de Perseu, foi a questão da privatização dos institutos de pesquisa, pretendida pelo governador nomeado Laudo Natel e desenvolvida pelo então secretário da Fazenda, Carlos Antônio Rocca. A dócil bancada da Arena, apesar dos protestos da comunidade de cientistas e pesquisadores, votou pela privatização. Antes que essa lei entrasse em vigor, o governo perdeu a maioria na Assembléia nas eleições de 74. Ao tomar posse, a bancada majoritária do MDB a revogou.

Ainda em 74, o programa “Pinga-Fogo”, transmitido pela TV Tupi, para bajular o “milagre”, trouxe a São Paulo o então ministro Jarbas Passarinho. Ele pediu que o Perseu fosse um de seus entrevistadores. Perseu recusou, prevendo – e foi o que realmente houve – que o programa serviria para enaltecer os “feitos” do governo militar. Passarinho insistiu, argumentando que o Perseu fora o principal crítico de sua gestão. A pedido da direção da empresa, Perseu concordou em ir. O “mediador”, Almir Guimarães dava a palavra aos entrevistadores, mas não havia possibilidade de réplica.

No nosso Sindicato, ainda sob o domínio dos pelegos, numa assembléia salarial, a oposição tencionava levantar um assunto grave: a diretoria cedera o auditório para entrega, ao delegado Fleury, do diploma de “policial do ano”, concedido pelos plantonistas da central de polícia. Um companheiro, da Agência Folhas, inquiriu a mesa sobre o desvirtuamento do uso do auditório. Foi interrompido aos gritos por policiais que se diziam “jornalistas”. Perseu protegeu o rapaz, temendo por sua integridade. Levou-o no próprio carro até a Praça das Bandeiras e aguardou a saída do ônibus.

Em 1979, Perseu convenceu os editores da “Folha” a se comprometerem a seguir as determinações da assembléia sindical, qualquer que fosse sua posição sobre a greve da categoria. Decidida a greve, poucos jornalistas trabalharam. Os patrões receberam a greve como uma afronta. De volta ao trabalho, os jornalistas encontraram a repressão, vinda agora dos patrões.

Perseu, tido como um dos insufladores da greve entre os editores da “Folha”, foi exemplarmente punido. Afastado da Educação, foi “convidado” a ocupar o cargo, até então inexistente, de correspondente em Berlim. Perseu recusou, por saber que aquilo era um mero pretexto para tirá-lo da Redação em definitivo. Foi, então, demitido.

Foi o começo da devastação da Redação da “Folha”, visitada a partir daí por freqüentes passarelhos. Jornalistas eram substituídos por intelectuais ávidos por aparecer nas colunas do jornal. Perseu bem que nos alertara: “Cuidado com cientistas, às vezes são capazes de trocar a mãe por um laboratório”. No caso a troca materna seria por um espaço nas páginas de Educação.

Comensais habituais do 9 andar do prédio da Barão de Limeira, os ‘acadêmicos” viviam apregoando as virtudes democráticas da “Folha”, produzidas para consumo externo; no âmbito interno, predominavam o autoritarismo e a prepotência.

Sem a figura do seu criador, Educação foi se descaracterizando, até se tornar apêndice de coisa alguma. Para tingir Perseu, prejudicou-se acima de tudo o leitor.


*José Maria de Lima foi redator da Folha de S. Paulo entre 1971 e 1995. Está aposentado em conseqüência de insuficiência renal crônica.

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