Comecemos pelo começo: o que é um jornalista? Qual é a sua função na empresa, na sociedade?

Discurso como paraninfo dos formandos (jornalismo) Casper Líbero em 1961

Por Perseu Abramo

Comecemos pelo começo: o que é um jornalista? Qual é a sua função na empresa, na sociedade?

Discurso como paraninfo dos formandos (jornalismo) Casper Líbero em 1961

Por Perseu Abramo

É com gratidão real que assumo a palavra para dirigir uma saudação aos alunos que hoje se formam na Escola de Jornalismo “Cásper Líbero”. Gratidão ao corpo diretivo e docente da Escola, e gratidão ao corpo discente, em especial aos que foram meus alunos em 1961.

A estes quero dizer alguma coisa a que me autoriza minha experiência de longos anos como jornalista e minha não menos proveitosa experiência de alguns meses como professor de Técnica de Jornal da terceira série do Curso de Bacharelado da Escola de Jornalismo da Fundação Cásper Líbero.

Estão nesse momento formados 18 jornalistas. O que significa isso? O que sabem e o que podem fazer esses 18 jornalistas e o que deles esperam as empresas jornalísticas e mesmo a coletividade?

A resposta a essas perguntas envolve, certamente, a resposta a uma pergunta de maiores amplidão e profundidade; devem os jornalistas ser formados escolar e profissionalmente ou é o jornalista um ser privilegiado, cujo êxito ou malogro independem de qualquer aprendizado sistemático? Em outras palavras, qual é o valor das escolas de Jornalismo? Vêm elas realmente satisfazer uma necessidade sentida na profissão ou constituem aplicações inúteis de capital não-reprodutivo?

Não poderei esgotar as possibilidades de resposta a essas questões nos limites de um discurso de saudação numa solenidade de formatura. Mas pretendo, sem ocupar muito tempo dos ouvintes, expor algumas das minhas idéias pessoais a respeito do assunto.

Comecemos pelo começo: o que é um jornalista? Qual é a sua função na empresa, na sociedade? O que esperam dele seus superiores imediatos e mediatos na linha de produção de um jornal, o que esperam dele os leitores de seu veículo, o que espera dele a coletividade? Não é necessário remontar à história da humanidade para aceitar a afirmação de que os homens sempre tiveram como necessidade prioritária e indelegável a de comunicarem-se entre si. Também não é necessário relembrar a história tecnológica dos processos de mass communication para igualmente admitir que o jornal é um dos mais eficientes e divulgados recursos modernos de intercomunicação.

Quando se fala em intercomunicação se pensa em pelo menos quatro elementos fundamentais; o que se comunica, para quem se comunica, como se comunica e quem comunica. O que se comunica pertence ao domínio da ética; para quem se comunica constitui material para estudos de psicossociologia; como se comunica é atribuição da técnica informá-lo. Quem comunica é o elemento que nos interessa.

Numa grande empresa industrial e comercial moderna, cujo propósito final seja o de editar um jornal informativo e interpretativo diário, isto é, num jornal tal como ele atual e realmente se apresenta nas grandes cidades, quem comunica é uma pergunta que traz duas respostas: quem comunica é o grupo proprietário da empresa e quem comunica é o empregado, o jornalista.

É o grupo proprietário do jornal quem diz as coisas que o jornal transmite, mas é o jornalista quem as fala. O conhecimento da técnica da comunicação com o leitor, portanto, é não um privilégio – como se poderia supor – mas um dever do grupo que, nos jornais está encarregado de transformar os eventos em palavras e fotografias ou desenhos.

E o que é uma técnica? Sem que isto constitua uma definição, permito-me dizer que uma técnica é um conjunto sistematizado de maneiras de fazer, portanto de habilidades e normas. Ora, o domínio de uma técnica – técnica que, quando posta a serviço de qualquer uma das modalidades de produção econômica, se transforma numa profissão – somente se adquire através do aprendizado. E é evidente que qualquer aprendizado é tanto mais eficiente, econômico e rápido quanto mais sistematizado, racional e planejado for. Mais não insisto porque seria querer demonstrar o óbvio.

A concepção arcaica e romântica do jornalista boêmio, inspirado, diletante, onisciente e semi-ignaro, poeta e louco, sempre ligeiramente doente e embriagado, que povoava as redações do século passado e ainda povoa as imaginações de muitos candidatos ao jornalismo de hoje, cedeu lugar, modernamente, ao profissional semiqualificado, de preferência com curso secundário ou superior, que deve enfrentar uma concorrência inexorável, tanto no acesso à profissão quanto no acesso às posições melhor favorecidas dentro da empresa.

O êxito ou o malogro desse profissional depende, fundamentalmente, como ocorre em todas as demais profissões, da sua capacidade de aprender e da eficiência com que esse aprendizado lhe é ministrado.

Como se resolve atualmente, no Brasil, o problema do aprendizado jornalístico? De duas maneiras fundamentais: ou o candidato à profissão ingressa numa das poucas escolas de jornalismo existentes no país ou ingressa – se o consegue – diretamente nas redações e aí sofre o seu aprendizado. Sofre é o termo, porque o aprendizado que é posto à disposição dos candidatos nas empresas jornalísticas é nulo ou de tal maneira assistemático que, sobre ser ineficiente, é demorado, dispendioso, oneroso e antieconômico.

Já na seleção dos candidatos ao jornalismo poucos são os que adotam sistemas racionais: na maior parte deles a palavra inicial e também a final é dada ao secretário da redação, o qual se julga perfeitamente capaz de substituir todos os recursos da Psicotécnica. Com um simples relancear de olhos, decide de maneira infalível quem virá a ser um bom jornalista e quem não o conseguirá. De maneira infalível, acentuo, porque não existem, na redação, sistemas de provar-lhe a falibilidade. O treinamento, se é que assim pode-se chamá-lo, não é dado, ou é dado da forma menos racional possível; o novato da redação vai ouvindo conselhos de colegas que sabem pouco mais do que ele, ou admoestações e reprimendas de chefes que freqüentemente não são capazes de lhes dar uma explicação cabal e satisfatória de seus erros ou acertos.

Assim é que se passam as coisas, infelizmente, em quase todos os jornais brasileiros, e é claro que dessa ausência de sistemas racionais de seleção e treinamento se ressentem as próprias condições financeiras da empresa e, o que é mais grave, a comunidade dos leitores.

De outro lado, em número insuficiente para atender à demanda imposta pelas empresas, temos as poucas escolas de jornalismo do país, todas com muitos defeitos de origem que, felizmente, as novas gerações de professores vão procurando sanar.

As escolas de jornalismo defrontam-se com um problema que lhes deve ser prioritário e fundamental: constituem elas escolas de formação cultural superior ou constituem escolas de formação profissional? Confesso-me incapaz de responder a essa questão, mas considero dever urgente debatê-la, para quem se interessa pelos problemas de formação jornalística. É sabido que todo treinamento profissional assume sempre dois aspectos complementares: o treinamento típico, isto é, o aprendizado de noções básicas e imprescindíveis para o exercício profissional, e o treinamento específico, ou seja, o aprendizado da maneira de executar determinadas funções específicas da profissão. Os norte-americanos, que têm dedicado muito esforço ao entendimento dos problemas relacionados com as técnicas de treinamento, vêm instituindo, há já quase 30 anos, um sistema de treinamento on the job, isto é, treinamento no emprego, na linha de produção. Fruto dessa concepção é o TWI, Training within industry, que tantos resultados positivos deu para a produção industrial dos Estados Unidos durante a última guerra.

No que se refere à produção jornalística, ambos os aspectos do treinamento – o típico ou profissional e o específico ou funcional – devem ser encarados. E, se o treinamento típico pode ser ministrado nas escolas ou em cursos anexos de escolas, o treinamento específico, evidentemente, só pode ser ministrado dentro das próprias empresas. Mas não é apenas de treinamento profissional e funcional que o jornalista moderno necessita. É-lhe igualmente imprescindível a formação cultural que lhe permitirá emprestar uma utilidade social às técnicas profissionais que vier a aprender.

Assim, o dilema inicial desta questão leva forçosamente a uma síntese menos insatisfatória; devem as escolas de jornalismo igualmente fornecer ao aluno a formação cultural indispensável e ministrar ensinamentos técnicos profissionais; as empresas, por sua vez, devem complementar esse aprendizado com sistemas racionais de treinamento funcional nas linhas de produção. Trata-se, claro, mais de um sonho que de um programa, mas eu não me envergonho de confessar que sempre acreditei na exeqüibilidade dos sonhos; basta que se lute por eles.

Evidentemente, a questão não está esgotada. Qual a formação cultural de que o jornalista necessita? Minha experiência como repórter, primeiramente, e como chefe de repórteres, posteriormente, me levaria a dizer que, nesse campo, o desejável é sempre o mais amplo, profundo e o melhor possível. As circunstâncias de ordem prática impõem uma delimitação. Fruto dessa delimitação é uma modalidade de escolas de jornalismo existentes em alguns países, que têm dado alguns resultados: no lugar de se criarem escolas de jornalismo, criam-se cursos de treinamento profissional jornalístico anexo às escolas de filosofia, ciências e letras ou a escolas superiores que lhes correspondam. Quando se opta pela escola de jornalismo, autônoma e independente dos demais institutos superiores de uma Universidade, assume-se a grave responsabilidade de substituir, num só curso, diversos cursos universitários convergentes, e de ministrar, através de um só currículo, formação filosófica, científica e literária, e mais treinamento típico e funcional da profissão.

As contingências, portanto, obrigam a uma seleção que nem sempre é completa, e muitas vezes se erra procurando compensar o pequeno número de aulas de cada matéria com um número muito grande de matérias; erra-se também quando se adota o processo inverso, concentrando a maior parte do currículo em duas ou três disciplinas apenas. As experiências acumuladas, mais o freqüente e amplo debate sobre esses problemas, aliado a uma avaliação científica dos resultados práticos obtidos com cada sistema é que poderão levar, no futuro, à melhor solução.

Qualquer que seja a melhor solução, porém, ela não elimina um debate preliminar: de que disciplinas escolares deve constituir-se o aparato tecnológico de um jornalista moderno? Permitam-me as senhoras e os senhores que eu cite alguns jornalistas e professores de jornalismo que dedicaram algumas reflexões ao assunto. Ralph D. Casey, diretor do Departamento de Jornalismo da Universidade de Minesota, diz: “O equipamento de um jornalista bem qualificado consiste em caráter, aptidões naturais, especialização técnica adquirida e uma educação liberal”. Stewart Robertson e George Fox Mott, descendo a um nível maior de detalhamento, enumeram: bom conhecimento de história, política, economia, ciências sociais, literatura, línguas estrangeiras e noções de ciência e de direito. Ambos os autores insistem nos conhecimentos técnicos sobre jornalismo e não deixam também de insistir nos aspectos éticos, que especificam: responsabilidade, sentido de liberdade de imprensa, independência, sinceridade, verdade e exatidão, imparcialidade, lealdade e decência. E, finalmente, elaboram uma lista de alguns traços de personalidade que denominam de aptidões para o jornalismo: interesse humano, capacidade de observação, capacidade de raciocínio lógico, capacidade de escrever com clareza, concisão e propriedade, habilidade criadora, objetividade e capacidade de não perturbar-se diante de emoções ou pressões.

Louis Lyon, jornalista e professor de jornalismo da Universidade de Harvard, define assim o jornalista: “Quando um secretário de redação emprega um repórter, não espera ter empregado uma enciclopédia nas um homem com capacidade de encontrar respostas e comunicá-las eficientemente”. O mesmo autor, a seguir, em linguagem pitoresca, enumera alguns dos componentes do aparato tecnológico do jornalista: “Redação é a ferramenta da produção jornalística”. “Pode-se sugerir com segurança a boa literatura, de maneira a fazer conhecer o que os homens têm pensado.” “Da mesma forma história, a fim de que o jornalista possa compreender o mundo que tenta descrever”. “O jornalista deve querer saber o suficiente de ciência para entender os cientistas e o suficiente de economia para perceber que a maior parte das ações políticas têm base econômica e o suficiente sobre artes e profissões para poder compreender pelos menos o seu vocabulário”. “O jornalista deve estudar línguas não somente pela utilidade que elas possam ter na execução das tarefas de reportagem mas também pelo conhecimento incidental de outras culturas e outras literaturas que elas promovem. Um pouco de matemática, se bem entendida, auxiliará o jornalista a fazer estimativas e a manipular os grandes números. Um pequeno conhecimento de estatística evita muitas vezes que um jornalista seja por ela ludibriado.” E, finalmente, diz Louis Lyon: “Mais do que qualquer outra coisa, o jornalista deve aprender a ler”.

A esta altura do meu discurso, que chega ao fim, não posso deixar de mencionar, com alegria, que muito se aproxima das considerações até aqui expendidas o trabalho de revisão do currículo que vem sendo processado pelos professores da Escola de Jornalismo Cásper Líbero. Uma exata compreensão do que deve ser o jornalista, e uma acentuada ênfase nas matérias de formação cultural, têm sido os critérios que vêm orientando o trabalho desses professores.

Um problema restaria ainda a abordar, mas que melhor o será em outra ocasião e por quem mais apto se mostre a fazê-lo: concebida em proporções tão amplas e radicais a escola de jornalismo, onde e como recrutar os seus professores? Quem está mais apto a formar futuros jornalistas? Os licenciados pelas disciplinas culturais, mesmo que sem experiência jornalística, ou os que têm experiência jornalística, mas não possuem os conhecimentos científicos e didáticos que só as escolas superiores ministram? Reconheço ser esta uma pequena maldade que faço com meus ouvintes, ao lançar a questão sem tentar a resposta, mas acredito que seria maldade maior prolongar-me por mais 30 minutos para procurar abordá-la. Quero apenas dizer que, enquanto igualmente sobre esse tópico não se chegar à melhor solução – isto é, à formação superior específica de professores de jornalismo – , devem os atuais professores – jornalistas uns, licenciados outros – suprirem com o debate comum dos currículos a ausência de um recrutamento mais racional.

Termino estas palavras dirigindo-me especialmente aos meus ex-alunos; por mais perfeita e melhor ensinada que seja a técnica jornalística, por mais profunda e ampla que seja a cultura acadêmica, por mais intensa e eficiente que seja a aptidão natural, o jornalista, qualquer jornalista, forçosamente malogrará se não procurar fazer do comportamento ético o leme e o alvo de sua atividade profissional. No juramento que vocês acabaram de pronunciar solenemente neste ato público, há uma afirmação que deve constituir-se no guia constante das suas atividades diárias: “No uso da liberdade de expressão saberei respeitar a honra do próximo e hei de repelir, categoricamente, tudo o que seja contrário à ética da minha profissão”.

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