Os que querem realmente construir uma sociedade efetivamente democrática precisam lutar para que também a comunicação social seja democrática.

Um Novo Modelo de Comunicação Social*

Por Perseu Abramo
21/05/1986

Os que querem realmente construir uma sociedade efetivamente democrática precisam lutar para que também a comunicação social seja democrática.

Um Novo Modelo de Comunicação Social*

Por Perseu Abramo
21/05/1986

A instituição de um novo modelo de comunicação social vem provocando uma discussão que pode ser bastante útil às vésperas do Congresso constituinte a ser instalado em 87. A proposta consta da “Carta de Brasília”, documento final do Encontro Nacional de Jornalistas intitulado “A Comunicação na Constituinte”, recentemente realizado na Capital da República, e já deu origem, na Folha de São Paulo, a um artigo do Sr. Edgard Faria, diretor-responsável da Editora Abril (seção “Tendências e Debates”, 25/4/86, pag. 3), com resposta na seção “Painel do Leitor” e uma reportagem de Renata Rangel (01/05/86, pag. 3).

Para esclarecimento do que está sendo proposto, convém recordar o que existe no Brasil em matéria de comunicação social. Do ponto de vista legal e formal, há três sistemas – um estatal, um público e um privado – que têm status jurídicos diferentes conforme a natureza dos meios, ou seja a radiodifusão (rádio e TV) ou a imprensa escrita (jornais, revistas etc.)

O Estado mantém um sistema estatal de comunicação impressa, auditiva, e televisiva bastante amplo e complexo, que inclui, entre outras coisas, a Fundação Centro-Brasileira de TV Educativa (TV Educativa/RJ), Rádio MEC do Rio e de Brasília) a Radiobrás (rádio e TV Nacional de Brasília, rádios Nacional e Ipanema, do Rio de Janeiro, e emissoras da Amazônia), a agência noticiosa Empresa Brasileira de Notícias (ENB) e assessorias de comunicação de organismos da Administração Pública direta e indireta; além disso, tanto os três Poderes da União quanto os Estados e numerosos municípios mantêm “Diários Oficiais”.

O Estado também detém, em nome do Poder Público, a propriedade dos canais de radiodifusão, que concede a empresas privadas e a algumas fundações.

A imensa maioria das publicações escritas está nas mãos das empresas privadas, com as exceções já citadas.

Assim, a sociedade brasileira está de fato submetida a praticamente dois sistemas: o estatal e o privado. O caráter “público” dos canais de radiodifusão é em grande parte ilusório: após a concessão, decidida só pelo Poder Executivo, a empresa beneficiada passa a deter quase total domínio privado sobre o uso desse bem que, originariamente, era ou deveria ser público.

Uma publicação do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura – constituído por pesquisadores em sua maioria da Universidade de Brasília – traz dados que ilustram a situação: 70% da população brasileira não têm acesso a informações e mensagens; 30% não têm acesso à televisão; mais de 50% das vendas de revistas são controladas por apenas duas empresas privadas; das emissoras de TV, 120 são comerciais e apenas dez educativas, e, de todas, 107 funcionam em cadeia; 60% das verbas publicitárias da radiodifusão são aplicadas na TV, em detrimento de 1.200 emissoras de rádio AM e duzentas FM.

Verifica-se, portanto, que o modelo de comunicação a que a sociedade está subjugada é unidirecional, concentrador e monopolista: a população ou não tem qualquer acesso a informações, ou o tem apenas como consumidora passiva, sem quase nenhuma possibilidade real de decidir sobre forma e conteúdo, de divulgar suas próprias informações e de auto-expressar-se.

Ora, o que os jornalistas eleitos em seus sindicatos e reunidos em Brasília decidiram propor ao conjunto da sociedade é a mudança desse sistema, que julgam antidemocrático e antipopular. Consideram que o momento é mais do que oportuno, já que toda a população está sendo convocada a disputar as grandes linhas de uma sociedade nova e democrática.

O que os jornalistas propõem é que a futura Constituição crie um novo modelo de comunicação e assegure a toda a sociedade o seu direito à informação e à auto-expressão no lugar de preservar privilégios individuais e empresariais ou prerrogativas estatais. Por isso, concebem a comunicação como um serviço a ser prestado por um sistema em que os meios – rádio, TV, jornais e revistas – sejam explorados por associações civis, sem fins lucrativos, ou fundações (públicas ou privadas). Para permitir o controle amplo e democrático de toda a população sobre a política de comunicação social, (inclusive a concessão de canais de radiodifusão), propõem, também, a criação de um Conselho Nacional de Comunicação Social autônomo. Esse Conselho, constituído por ampla representação da sociedade, partidos, governo, empresários, trabalhadores, seria incumbido de traçar as diretrizes de comunicação, em nível nacional, e de acompanhar e fiscalizar a aplicação das normas aprovadas.

Não têm cabimento, portanto, alguns dos argumentos usados contra a proposta do Encontro de Jornalistas. Como, por exemplo, o de que se pretende submeter a comunicação ao controle do Estado; ao contrário, a proposta é cristalinamente antiestatal e pretende submeter o atual poder do Estado, em matéria de comunicação, ao controle democrático de toda a sociedade.

Constitui equívoco, também, a alegação de que fundações ou associações civis, “sem fins lucrativos” estejam necessariamente destinadas à falência. Há, aí, uma confusão entre “não ter fins lucrativos” e “não operar com saldos econômicos e financeiros”.

Uma entidade sem fins lucrativos deve ser bem organizada e bem administrada, e pode obter saldos operacionais financeiros e econômicos; o que não pode é permitir que os lucros sejam apropriados individualmente por “proprietários” ou que sejam aplicados com outros propósitos que não aqueles para o que foi fundada a fundação ou associação.

Também não é correta a idéia de que o sistema proposto acaba com a “iniciativa privada”: fundações ou associações podem ser públicas ou privadas; o que se quer é que, no campo da comunicação social, também a “iniciativa privada” se submeta aos interesses maiores do conjunto da sociedade e não se transforme num negócio, em que o retorno seja satisfatório unicamente para o proprietário dos meios de comunicação.

Finalmente, veja-se a tese de que a proposta constitui um retrocesso, de que é totalitária e de que acaba com a liberdade.

De que liberdade se está falando, afinal de contas? Quem tem, efetivamente liberdade de expressão e de imprensa, no Brasil, hoje? Quem, de fato, goza de liberdade de transmitir o que quer, quando e como quer, do jeito que quer; de escolher, selecionar, resumir ou ampliar – e, às vezes, distorcer – informações e opiniões? É o conjunto da sociedade, é o conjunto da população, por acaso? Ou é, pelo menos, a sua imensa maioria, constituída de trabalhadores?

Os que querem realmente construir uma sociedade efetivamente democrática precisam lutar para que também a comunicação social seja democrática, de forma que todos, e não apenas algumas minorias privilegiadas, possam informar e serem informados e manifestar suas opiniões. E é exatamente isso o que os jornalistas do Encontro de Brasília estão propondo que se busque, ao reivindicarem, como passo importante, um sistema público de comunicação social.


*Publicado no jornal Folha de S. Paulo.

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