Como acabar com o vestibular antes de acabar com a disparidade entre candidatos e vagas, antes de realmente expandir as oportunidades educacionais?

Como acabar com o vestibular antes de acabar com a disparidade entre candidatos e vagas, antes de realmente expandir as oportunidades educacionais?

Vestibular Automático*

Por Perseu Abramo
24/01/1973

Conforme vimos na última coluna, desde julho de 1971, quando entrou em vigência o decreto federal 69.908, que transformou os vestibulares de habilitação em vestibulares de classificação, passaram a viger também e, em consequência, os dois tipos de vestibulares, que, à falta de melhores denominações, poder-se-iam designar por vestibulares seletivos e vestibulares automáticos. O primeiro tipo é o vestibular em que o número de candidatos é maior do que o número de vagas; nesse, são classificados apenas os mais habilitados. O segundo tipo ? o do vestibular automático ? é o exame em que o número de vagas é maior que o de candidatos: tendo caído o conceito de “habilitação”, medido através de uma nota mínima, por exemplo, todos os que se apresentam a esse vestibular são automaticamente classificados.

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Com um tardio e falso pudor de virgem arrependida, o decreto procura moralizar-se a si mesmo quando, ao final do “caput” do artigo segundo, proclama, com empáfia suficiente para apaziguar a consciência: “…excluindo-se o candidato com resultado nulo em qualquer das provas”. Tradução da linguagem jurídico-administrativa: tirou zero não entra na faculdade, tirou zero virgula cinco entra.

De um modo geral sabe-se como são feitas as provas de grande parte das pequenas escolas superiores particulares, da Capital e do Interior, exatamente essas em que geralmente o número de vagas é maior que o de candidatos, isto é, exatamente essas em que os vestibulares, por força de decreto, são automáticos: quase às vésperas dos exames, convocam-se às pressas um professor de Português, um de História, um de Geografia, às vezes um de Matemática, e, sem se lhes perquirir maiores qualificações nem fazer maiores indagações, em três tempos e com um mínimo de custos, elabora-se uma prova a que se tem o desplante de chamar de “prova objetiva”. Traduzindo todas as ignorâncias dos autores, projetando-lhes todas as deficiências técnicas e algumas frustrações pessoais, essas contrafações de provas objetivas ? que destas não guardam senão a enganadora aparência “científica”: a indefectível pergunta de algibeira com as inefáveis quatro alternativas absurdas e ridículas ? são esses instrumentos que “classificam”, automaticamente, todos os clientes potenciais do estabelecimento.

E, por mais precisos que pudessem ser esses instrumentos pedagógicos de medida, por mais sofisticadas e tecnicamente bem elaboradas que as provas pudessem apresentar- se e não resta dúvida de que algumas vezes o são ? jamais poderiam ser elas tão precisas que fossem capazes de discriminar ? a ponto de cerrar-lhe ou abrir-lhe as portas do vestíbulo do ensino superior ? o candidato que tira zero do outro que tira zero vírgula cinco em Português, ou em Matemática. Porque, então a farisaica restrição do decreto? Para mascarar, com o disfarce do rigor, a indigência da seleção? O que se pretende, na realidade, com esse decreto? O que vem acontecendo, de fato, com as escolas e cursos que vicejam sob o generoso sol dos vestibulares automáticos? Qual é a política educacional geral que se manifesta e traduz nesta particular política dos vestibulares automáticos?

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O primeiro fato que se pode observar é o de que a vigência do decreto encorajou a proliferação de escolas superiores particulares. Empresários “travesti” de educadores lançaram-se ao novo mercado com a mesma avidez e com a mesma segurança com que outros empresários se lançam aos mercados nem menos nem mais tranqüilos da habitação ou dos gêneros alimentícios de primeira necessidade. Ninguém, que tenha algum mínimo poder de consumo, pode deixar de comer, ou de morar, e agora, com a espantosa publicidade posta à disposição da “educação”, ninguém com um mínimo poder aquisitivo deixará de matricular-se automaticamente num estabelecimento que lhe há de garantir, também automaticamente, quatro, três ou dois anos depois, um Diploma Universitário, ou um Canudo de Papel, nas irreverentes mas perspicazes vozes da música popular.

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Certamente não seria esse, porém, o único móvel nem a única das conseqüências do decreto federal. Nas palavras do representante oficial do Ministério da Educação em São Paulo, o critério de classificação veio substituir o da habilitação “para acabar com o problema dos excedentes”. Ora, por mais bem intencionados e bisonhos que possam ser os tecnocratas do Ministério da Educação, nem eles, com a sua santa ingenuidade, seriam capazes de supor que os vestibulares automáticos acabam com os excedentes, enquanto subsistirem os outros vestibulares, os seletivos. É claro que, com o poderoso auxílio de outro decreto ? o 477 ? o tema dos excedentes foi definitivamente eliminado, senão das preocupações, pelo menos das manifestações expressas dos estudantes. Mas não há semântica técnica ou jurídica capaz de eliminar os excedentes efetivos e reais do ensino universitário brasileiro quando se fazem simples contas de mais e de menos: só neste ano, em São Paulo, o Cescem o Cescea e o Mapofei, juntos, inscreveram 48.752 candidatos para um total de 14.188 vagas. Como chamar a esses 34.564 restantes, se não se quiser, por pudor ou por prudência, chamá-los de excedentes? E mesmo que se consiga para eles outro nome ? barrados, marginais, deserdados, que importa? ? não se conseguirá eliminá-los a não ser pela dramática via da extinção física. E duvida-se de que os teóricos da educação oficial nacional estejam pensando nesse processo revolucionário quando preconizam que não haverá mais excedentes no ensino superior; a solução seria, quando muito, menos econômica que a de criar vagas para todos e, aí então sim, proclamar ter abolido do panorama educacional a incômoda figura do excedente.

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Há que pesquisar outras razões, pois. Se o decreto não existe apenas para favorecer a proliferação das escolas superiores particulares, se ele não consegue acabar com a existência dos excedentes universitários, seria ele, por acaso, fruto da intenção não confessada de realmente automatizar a passagem do 2º grau ao 3º grau? Isto é, seria esse decreto o primeiro mas inegável passo num sub-reptício mas planejado caminho para acabar de vez com os vestibulares? Tratar-se-ia ? não de um mero expediente para favorecer empresários ou dissolver grupos de pressão ? mas de uma consciente e bem pensada política de escolarização automática e progressiva, global e coletiva ? sonho de tantos educadores idealistas?

Mas se realmente fosse isso, como conceber que se coloque o carro antes dos bois? Isto é, como acabar com o vestibular antes de acabar com a disparidade entre candidatos e vagas, antes de realmente expandir as oportunidades educacionais pela ampliação e criação das grandes universidades oficiais, e não pela permissão das aventuras particulares? Nevrálgico ponto de encontro entre a chamada “reforma” do ensino superior e a chamada “reforma” do ensino primário e médio ? o decreto 68.908 apenas veio pôr a nu o desentrosamento entre as duas esferas educacionais, a ineficiência das alterações preconizadas numa e noutra, o desequilíbrio entre os “ricos” e os “pobres” da educação, a definitiva marginalização em que ainda se encontram as maiores parcelas da população brasileira frente aos benefícios duvidosos de um desenvolvimento para usufruto de algumas minorias privilegiadas.


* Publicado no jornal Folha de São Paulo – seção Educação