É preciso reservar a capacidade de irritar-se para uma questão maior, como, por exemplo, terminar a carreira, arranjar o emprego, manifestar a própria posição diante da expulsão de Cuba.

É preciso reservar a capacidade de irritar-se para uma questão maior, como, por exemplo, terminar a carreira, arranjar o emprego, manifestar a própria posição diante da expulsão de Cuba.

Questões

Por Perseu Abramo*
09/02/1962

Para poder se tocar para a frente é preciso dividir o mundo em questões maiores e questões menores, se não, não vai. Ficar durante o dia irritado porque o cobrador do ônibus não tinha troco é absurdo, porque o troco do ônibus é uma questão menor. É preciso reservar a capacidade de irritar-se para uma questão maior, como, por exemplo, terminar a carreira, arranjar o emprego, manifestar a própria posição diante da expulsão de Cuba.

O difícil, geralmente é saber decidir quais as questões maiores e quais as menores. O sapato que aperta, a torneira que não funciona, a porta que não fecha direito, são geralmente questões menores. Todavia é mais comum perder a paciência com o sapato, a torneira e a porta, do que com o destino do mundo. Conheço um sujeito que faz questão absoluta de encontrar, à mesa, os talheres, o guardanapo e os copos perfeitamente arrumados, com a mesma falta de gosto simétrica dos restaurantes. Se não encontra, perde o apetite, não come direito, piora a úlcera. E, no entanto, terminado o almoço, vai para o escritório e toma decisões fundamentais que envolvem bilhões de cruzeiros, centenas de vidas, obras públicas que deverão servir à coletividade durante cinqüenta anos. Toma-as com a eficiência e com a displicência do grande técnico, sem perceber que cada assinatura num documento, cada despacho num projeto, cada sim ou cada não que decreta, podem ajudar a transformar mais depressa ou atrasar ainda mais o futuro de sua terra.

O cartão de boas-festas que infelizmente não se responde, o amigo que nos cumprimenta afetuosamente e de quem lamentavelmente não nos recordamos, a gaffe que se cometeu na festa de cerimônia, a palavra amarga que inadvertidamente nos escapa contra o subordinado, a admoestação injusta que desagradavelmente somos obrigados a ouvir dos superiores, são todas questões menores, sem realmente a mínima importância, e das quais evidentemente, deveríamos nos esquecer cinco minutos depois. Todavia, são pequenos incidentes que nos podem estragar o dia, tornar mal-humorados, fazer desacreditar da gratidão humana. Dizemos a nós mesmos, sem qualquer convicção, que elas não têm importância, mas de repente, num momento de devaneio, elas nos sobem à tona da consciência com uma golfada de rubor, calor e pavor. E, enquanto isso, enquanto nos neurotizamos pouco a pouco com as minudências da vida, vamos inconscientemente passando por cima das coisas fundamentais: não nos lembramos que a vida é curta e um dia acaba, que a história trágica da humanidade está se tornando cada vez mais trágica sob as nossas vistas complacentes, que, desde a Grécia, nenhuma das grandes perguntas foi ainda satisfatoriamente respondida, e que, neste preciso momento, tribos, civilizadas ou não, estão se digladiando, tentando digladiar-se ou contando as vantagens e lamentando as perdas das últimas vezes em que se digladiaram. Essas são questões maiores, mas nessas geralmente não pensamos porque é mais incômodo, é mais difícil pensar certo. Não quero chegar ao extremo de ridícula perfeição do personagem de Eça de Queiroz, que, invariavelmente dizia aos circunstantes – “Há graves problemas: o Ultramontanismo, a Prostituição, a Questão Social…”. Não. Mas que há questões maiores e questões menores, isso há.

E provavelmente é melhor que seja exatamente assim como é: certamente estaríamos todos loucos de corrente se a todo momento estivéssemos nos preocupando com as questões maiores.


* Publicado no jornal O Estado de São Paulo – Suplemento Feminino

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