Peço perdão e suplico que não me acusem de criador de expressões de gíria. Seria o fim da picada.

Peço perdão e suplico que não me acusem de criador de expressões de gíria. Seria o fim da picada.

Gíria*

Por Perseu Abramo
24/11/1961
A mocidade de hoje deve ter suas razões para usar a gíria que usa. Mas eu ainda não as consegui entender.
Não que a gíria moderna seja pior ou melhor que a gíria de antigamente. Como diria meu amigo Casanova, filósofo e sambista, gíria é gíria, moderna é moderna, antigamente é antigamente e mocidade é mocidade. É que a gíria de hoje em dia é cada vez menos explícita, cada vez mais simbólica.

Em 1930, os “play-boys”, que faziam questão de ostentar a própria elegância à porta das confeitarias e nos salões, eram chamados de “almofadinhas”. Eram-no porque a moda de então obrigava os elegantes a suprir com enchimentos de entretela e algodão as deficiências musculares com que a Natureza os havia desdotado. Depois da última guerra a gíria simplificou tudo, chamando de “bacana” tanto os rapazes que se vestiam bem quanto as mulheres que tinham atrativos mais do que evidentes.

“Caramba” era uma palavra de gíria que esteve muito em vigor por volta de 1935-1936. Hoje ninguém a usa.

Em compensação as manifestações de surpresa e exclamação encontram, na gíria, outras maneiras de expressar-se. Por exemplo “o fim da picada”. Não sei se “o fim da picada” significa que a coisa é tão ruim quanto tomar uma injeção ou tão insuperável quanto a situação do explorador que, perdido no meio da floresta, não encontra mais o caminho de volta. Se o caso é esse, talvez fosse melhor substituir “o fim da picada” por esta outra expressão: “é o término da trilha”.
Mas peço perdão e suplico que não me acusem de criador de expressões de gíria. Seria o fim da picada.

Se alguém algum dia tentar delinear a gênese de certas expressões de gíria provavelmente se encontrará num beco sem saída, ou num impasse. Contaram-me, por exemplo, que “bidu” (expressão popular a qual significa aquele que tem, por dom divino ou habilidades adquiridas, a capacidade de prever acontecimentos e predizer segredos futuros) provém de “beduíno”, que, por sua vez é o mesmo que árabe, ou oriental, ou seja, vidente. Porque esse “ou seja” final não sei, mas assim me contaram.

As crianças, por sua vez, quando têm a desventura de assistir a programas de televisão, incorporam inconscientemente a pior gíria possível. Há um programa que, provavelmente com intuitos educativos, difundiu uma expressão que boa parte da população infantil de São Paulo hoje adota: “michou o carbureto”. O que isso quer dizer também não sei. Acredito que seja qualquer coisa como “não adianta” ou “assim não vai”. De qualquer maneira é uma maneira rápida e sem dor de educar em massa a infância brasileira.

Há alguns anos atrás, não muitos, divulgou-se uma forma popular de acordo e concordância: “está tudo legal” (que, aliás, substituiu uma forma anterior mais sintética, em voga durante os anos de guerra: “O.K.”). Ultimamente essa expressão transformou-se em “tá legal”, e, mais recentemente, em “tá”. Nesse passo, as crianças do futuro falarão por monossílabos, como falavam os trogloditas.

O que seria “bárbaro”.


* Publicado no jornal O Estado de São Paulo – Suplemento Feminino

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