Segundo alguma direita, o 25 de novembro de 1975 é que teria instituído a democracia política em Portugal, e não o 25 de abril de 1974. é uma afirmação que se evidencia profundamente falsa e simplista, mas que é repetida como um truísmo, ocultando o verdadeiro debate em causa.

Na realidade, o objetivo da construção democrática, após a extinção do regime fascista português, foi consagrado pela Junta de Salvação Nacional logo na madrugada de 26 de abril, impondo “o saneamento da actual política interna e das suas instituições, tornando-as, pela via democrática, indiscutidas representantes do Povo Português”.

O programa do MFA – Movimento das Forças Armadas instituiu, além do mais:

– prazo de um ano para a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte

– eleição por sufrágio universal, direto e secreto

– extinção da polícia política (PIDE-DGS), da censura, da Legião Portuguesa e outras organizações do regime fascista

– libertação dos presos políticos

– reintegração dos servidores destituídos por motivos políticos

– criação de condições materiais para uma efetiva liberdade política dos cidadãos

– liberdade política, incluindo a constituição de associações e partidos políticos

– liberdade sindical

– liberdade de expressão e pensamento

– independência do poder judicial

– extinção dos tribunais especiais

– instituição de garantias de defesa aos arguidos.

Logo em 14 de maio de 1974, a Lei Constitucional nº 3/74 extinguiu os órgãos legislativos do regime fascista e determinou a convocação de eleições para a futura Assembleia Constituinte.

E em 15 de novembro de 1974, três diplomas (Decretos-Lei nºs 621-A/74, 621-B/74 e 621-C/74) consagraram e regulamentaram matérias como:

– voto secreto, direto e universal

– capacidade eleitoral e recenseamento eleitoral dos cidadãos

– sistema eleitoral com representação proporcional, sob o método de Hondt

– regulamentação das campanhas e atos eleitorais

– criação da Comissão Nacional de Eleições (CNE)

– recorribilidade judicial das decisões no processo eleitoral

– princípio da neutralidade dos poderes públicos perante as candidaturas

– igualdade entre os partidos políticos

– liberdade de expressão, informação e reunião das candidaturas

– direito de antena na Rádio e TV para os partidos políticos.

Em especial, o preâmbulo do Decreto-Lei nº 621-C/74 afirmava:

“Se as condições de acesso ao sufrágio constituem um indicativo da participação conferida aos cidadãos nos destinos do Estado, o sistema eleitoral, as garantias de dignidade e genuinidade conferidas ao acto eleitoral, as condições de um são pluralismo democrático e o papel atribuído em todo o processo aos partidos políticos completam a tradução legislativa do princípio democrático fundamental.

(…)

Meio século de farsas eleitorais fascistas, em que as próprias autoridades praticaram toda a casta de crimes eleitorais para defraudar a vontade popular, em que as mais diversas pressões eram feitas sobre os cidadãos no sentido de os obrigar a votar ou de os impedir de fazê-lo, criaram uma má tradição e o desprestígio da consulta democrática. Este mau passado tem que ser vencido. O processo eleitoral deve sair prestigiado das eleições para a Assembleia Constituinte. E, para isso, muito contribuirá a lealdade da lei – uma lei sem alçapões – e a lealdade dos executores dela.”

Como podemos observar, em nenhum momento os revolucionários de abril negaram o objetivo democrático. pelo contrário, enunciaram sempre esse objetivo e avançaram na preparação de eleições e na consagração das liberdades políticas.

Mas a concepção da democracia política de abril, e aí está a verdadeira divergência, é sustentada no plano material. o exercício da liberdade política pelos cidadãos não poderia ser apenas potencial, teria que ser também “efectivo”. para isso, a democracia não poderia ser apenas formal, no plano institucional e procedimental, teria que ser também “material”, ou seja, no plano dos direitos dos trabalhadores, nos direitos sociais e na igualdade.
Nesse sentido, aquele Programa do MFA determinava que deveriam ser promovidas:

“A aplicação de medidas que garantam o exercício formal da acção do Governo e o estudo e aplicação de medidas preparatórias de carácter material, económico, social e cultural que garantam o futuro exercício efectivo da liberdade política dos cidadãos.”

Aqueles que negam o caráter democrático do processo revolucionário português desde o seu início, na verdade, aquilo que negam são essas medidas de caráter material e a sua importância na construção da democracia. ou seja, combatem uma conceção maximalista e efetiva de democracia social e política, material e formal, em benefício de uma conceção limitada e puramente formal, de âmbito institucional e procedimental.

Esse é um debate válido. mas que esse debate seja truncado, numa radicalmente errada avaliação que traduz exatamente o oposto daquilo que está em causa, é algo que não tem cabimento e que não contribui para o esclarecimento sobre as conceções de democracia ou para o processo histórico que Portugal viveu.

Pedro Prola – Jurista. Vive em Portugal. Coordenador do Núcleo do PT Lisboa.