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Minha experiência pessoal de como mulheres invisíveis construíram um caminho de empoderamento individual, coletivo e transformador

Já faz um tempo que queria escrever um artigo em português sobre o projeto “Cidade Mulher” (CM). É uma experiência maravilhosa vivida na época em que fui primeira-dama e secretária de Inclusão Social durante o primeiro governo de esquerda em Salvador (2014-2018).

Para contextualizar a criação desta primeira política pública dirigida às mulheres salvadorenhas, é importante contar como ela foi concebida a partir de uma rebelião pessoal.

Cheguei em El Salvador em 1992, logo após a assinatura dos Acordos de Paz entre a Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN) e o governo salvadorenho. Deixava o Brasil depois de 30 anos para iniciar um ciclo importante da minha vida que iria colaborar como processo de reconstrução nacional. Vinha do Brasil como representante da Secretaria de Relações Internacionais do PT (SRI-PT) para promover o intercâmbio de relações entre o PT e os países da América Central, especialmente entre as prefeituras petistas que estavam promovendo experiências administrativas inovadoras.

Era um trabalho ad-honorem que fazia como militância politica, mas precisei procurar um emprego para poder sobreviver economicamente e foi com a ajuda do embaixador do Brasil em El Salvador, Francisco Lima e Silva, que recebi um convite para concorrer ao cargo de Diretora do Centro de Estudos Brasileiros (CEB). Fui selecionada e fiz esse trabalho por 15 anos (1993-2007).

Em 2007, meu então marido foi indicado como candidato presidencial para disputar as eleições de 2009. Ele foi um jornalista proeminente que durante 17 anos liderou os índices de audiência da televisão salvadorenha. Era uma importante figura pública, sem experiência político-partidária, embora não estivesse filiado a nenhum partido político. Ele renunciou ao seu programa diário de televisão para se dedicar à campanha.

Foi uma campanha muito difícil e muito violenta, porque a FMLN nunca ganhou uma eleição presidencial. Eu estava com 45 anos e grávida pela primeira vez. E juntos decidimos assumir esse desafio.

Para minha supresa, com a nomeacão presidencial, vivi a primeira experiência de indignação nessa campanha. Apesar da minha experiência política e da minha relação muito fluida com a FMLN, ja não era vista como uma mulher politicamente ativa e simplesmente como a esposa do candidato. Não fui convidada para discutir o programa de governo, não fui convidada para eventos e durante os comicios eleitorais que duraram quase os 2 anos antes das eleições, eu era uma mulher que havia perdido minha identidade. Para a estratégia eleitoral não se via bem aparecer uma mulher com muita militância política isso poderia “prejudicar” a imagem do candidato que não tem histórico de militância política.

Foi ai que comecei a descobrir uma realidade oculta perversa e como as mulheres com identidade política eram vistas como “malvadas”, como “mulheres que querem dominar os seus maridos”, esta invisibilidade era prudente.

Estava grávida do meu primeiro e único filho Gabriel, aos 45 anos em plena campanha e o desafio naquele momento foi desafiador para mim. Trabalhava da segunda à sexta-feira na CEB e no final de semana, acompanhava o meu marido nos comícios.

Cansada de ver disputas por espaços nos palanques, decidi que meu lugar deveria ser ouvir o público que comparecia aos nossos eventos, em sua maioria mulheres.

Em El Salvador, 52% da população são mulheres, que eram super importantes para os candidatos, mas passadas as eleições, elas tornaram-se invisíveis outra vez. Então sendo parte das “invisíveis” decidi aprender com elas suas necessidades e foi inegável que o meu estado de gravidez me ajudou a ver com mais sensibilidade a sua realidade, pois a maioria delas assistia aos comícios carregando seus filhos.

Todas as mulheres com quem conversava, não importava se era da cidade ou nas zonas rurais, eu ouvia a mesma história. A maioria delas eram mães solo (muitos dos seus maridos emigraram ilegalmente para os Estados Unidos, outras eram mães solteiras). Quando perguntava o que gostariam que o nosso governo fizera por elas, as respostas eram muito simples; acesso ao trabalho e à saúde. Coisas básicas que eram tão inacessíveis para elas, porque mesmo sendo mulher, eu ainda nao entendia o peso da realidade da “pobreza de tempo” que padecem todas as mulheres principalmente as mais pobres.

Eleições de 2014, a então secretária de inclusão social de Salvador, Vanda Pignato (ao centro) ladeada pela sua mãe e pelo seu pai, declaram apoio a candidata Dilma Roussef

Muitas me diziam que não tinham tempo para procurar acesso à saúde, não havia tempo para formação, para procurar emprego, algumas coisas básicas, por exemplo, como tirar documento de identidade.

Nesse momento em que a primeira causa de morte de mulheres em El Salvador era o câncer de mama e de colo do útero e absolutamente nenhuma delas tinha acesso ao exame de ambos, me diziam: “temos que cuidar das nossas famílias, dos nossos filhos em primeiro lugar e não temos tempo para ficar de um lado para o outro procurando nos cuidar”.

Foi aí que me passou pela cabeça organizar uma proposta de política pública dedicada exclusivamente a elas. Um lugar onde todas pudessem entrar e serem atendidas com dignidade e tivessem todos os serviços necessários para que possam acessá-los de forma integrada. Um lugar onde seus filhos fossem cuidados enquanto elas pudessem ser atendidas tranquilamente. Foi ai que nasceu a ideia de uma cidade. Uma cidade de mulheres, gerida exclusivamente por mulheres para mulheres.

A ideia de Cidade Mulher foi um sucesso na campanha, foi uma das ofertas eleitorais mais importantes.

Com a inédita vitória eleitoral da esquerda salvadorenha fiz algo que muitos dos companheiros e companheiras da esquerda ainda têm dificuldade em digerir/aceitar. Queria participar ativamente da implementação de novas políticas públicas e queria espaço para isso no governo. Não queria ser uma primeira-dama tradicional considerada o ultimo escalão do assistencialismo. Mas para minha surpresa, muitas lideranças (homens e mulheres) de esquerda não viam com bons olhos essa mudança de perfil no primeiro-damismo.

Para minha sorte o sistema de governo salvadorenho, a primeira-dama presidia a Secretaria Nacional da Família (SNF) e o Instituto Salvadorenho da Mulher (Isdemu). Ambos cargos ad-honorem. Não pensei duas vezes. Resolvi aproveitar meu espaço de poder para transformar as velhas estruturas que queriam me coptar/impor um espaço para exercer o assistencialismo do qual eu não estava disposta ceder.

As primeira-damas anteriores presidiam a Secretaria Nacional da Família (SNF), fazendo assistencialismo, cujo único objetivo era ajudar o partido de turno a alimentar uma politica que eu repudiava.

Foi aí que elaborei a ideia de uma Secretaria de Inclusão Social (SIS). Essa secretaria teria como função elaborar políticas públicas com enfoque em Direitos Humanos para populações tradicionalmente excluídas das políticas governamentais. É assim que começamos nosso governo. Extinguimos a SNF e no seu lugar nasceu a SIS. O Isdemu era uma instituição coordenadora de Políticas Públicas para a Igualdade das Mulheres que lutava por leis importantes, como as Leis da Igualdade Substantiva e a Lei Especial para uma Vida Livre de Violência, a partir da qual construímos uma arquitetura de igualdade para as mulheres em todas as instâncias do Estado salvadorenho. O projeto Ciudad Mujer – Cidade das Mulheres – (CM) foi um dos projetos da Secretaria.

A CM é um espaço específico para mulheres onde estavam integradas mais de 17 instituições do Estado salvadorenho, para oferecer às mulheres diferentes opções para alcançar total autonomia. Não existe igualdade sem alcançar três autonomias: A física (que é o acesso a saúde sexual e reprodutiva) a econômica e a política.

O programa Ciudad Mujer consiste em 4 módulos: Saúde Sexual e Produtiva, Prevenção e Atenção à Violência de Gênero, Autonomia Econômica, Cuidado Infantil e Gestão Territorial e do Conhecimento (este era invisível porque o trabalho era exclusivo nos territórios e não dentro do CM).

Em cada módulo existiam as instituições necessárias para atingir todos os objetivos, por exemplo; Uma mulher que chegasse a CM vítima de violência sexual era recebida no módulo de Atencão à violência. Primeiro, ela passsava pela sala de transição em crise, onde era atendida por uma psicóloga que a ajudava na estabilização emocional, depois era encaminhada para a medicina legal onde fazia os exames necessários para a coleta de provas, depois tomava um banho, recebia roupas limpas (porque muitas chegavam sangrando) e aí eram encaminhadas à Polícia Nacional Civil (recebida somente policiais mulheres) para registrar denúncia e depois entrar em contato com o Ministério Público onde eram tomadas as medidas legais para registrar a denúncia. Sempre acompanhadas de outras mulheres ja não mas sozinhas como antes quando tinham que visitar diversas instituições, enfrentar uma verdadeira via cruzis, em varias instituições dispersas pelo território para poder denunciar a violência.

Em seguida, eram encaminhadas para o módulo de Saúde Sexual e Reprodutiva onde eram examinadas por ginecologistas, recebiam medicação gratuita e faziam outros exames como, por exemplo, prevenção de câncer de mama e colo de útero.

Depois, as mulheres tinham a oportunidade de procurar o Módulo de Autonomia Econômica para formação em diversas áreas, e muitas delas, tirar pela primeira vez seu documento de identidade. A maior parte dos cursos de formação não eram realizados na sede do CM e, sim, nos territórios para facilitar o acesso das mulheres vítimas da pobreza tempo. Nesse mesmo módulo, havia acesso a capacitação para constituição de empresa ou cooperativa e acesso a créditos acessíveis às mulheres.

Também decidi implementar, nas sedes da CM, a Escola de Formação Agrícola onde as mulheres eram ensinadas a cultivar diferentes produtos ao longo do ano em pequenos espaços para o seu consumo ou para venda e todas as mulheres que passavam por aquela escola agrícola eram incentivadas/desafiadas a ensinar a 4 mulheres mais no seu territorios os metodos que aprenderiam, promovendo assim o cooperativismo entre elas.

Durante o tempo em que as mulheres permaneciam na sede da CM, seus filhos e filhas eram atendidas no módulo de Cuidado Infantil que era dividido em três áreas (recém-nascidos, de 4 a 10 anos e 11a diante), nesses espaços ludicos aprendiam sobre os direitos das crianças, recebiam lanches supervisionados por uma nutricionista, também havia a sala de lactancia materna onde as mães poderiam alimentar seus filhos enquanto estivem na sede.

O módulo de Gestão e Conhecimento Territorial (o módulo invisível) era um dos meus preferidos porque era nesse que se buscava promover e fomentar os direitos das mulheres. Seu objetivo era fortalecer as organizações locais de mulheres, as redes de defensoras locais , promover a alfabetização em Direitos Humanos e a coordenação territorial inter-institucional das instituições que participava da CM. Esta estratégia invisível articulava e promovia a implementação da autonomia econômica, a toma de decisões orientada para a participação política e cidadã das mulheres.

Nas sedes da CM, também existia parceria público-privada através de um espaço para lanchonete, onde cooperativas de mulheres formadas na CM, administravam alimentos vendidos a preços acessíveis, com mesas disponíveis ao nosso público e que eram cobertas com toalhas de papel, onde estava escrito: “leis aprovadas em nosso governo em defesa das mulheres”, para que tivessem maior conhecimento sobre os seus direitos.

A CM não era um modelo estático, pois a realidade das mulheres também não é. A cada dia descobriamos novos desafios, por isso em 2014 desenvolvemos uma nova estratégia chamada “Cidade Mulher Jovem” que consistia na especialização de serviços que prestamos visando atender às necessidades e situações que afetam meninas e adolescentes, a partir dos 13 anos. Dada a situação de violência que as adolescentes estavam sofrendo: violência sexual em casa, nas escolas, altos índices de gravidez, evasão escolar, migração irregular, feminicídios induzidos, entre outros. CM decidiu trabalhar de forma focada com este grupo populacional. Também desenvolveu um modelo comunitário para a prevenção da violência de género com o qual trabalharam com professores e adolescentes do sexo masculino para erradicar estereótipos e eliminar a discriminação.

Um dos exemplos que mas marcou o inicio dos nossos trabalhos foi o de uma mulher de 35 anos chamada Teresa que nunca pode tirar seu documento de identidade pois seu oficio era fazer “tortilhas” (é um tipo de pão achatado e redondo feito de milho) desde criança. O que ele não conseguiu fazer durante anos, CM-Colon conseguiu em menos de 30 minutos; como apoio a todas as instituições concentradas para atender às necessidades das mulheres. A partir deste documento ela se tornou cidadã, teve acesso a créditos e capacitação e a partir daí se tornou micro-empreendedora.

Em setembro de 2011, a CM recebeu a visita do presidente Lula. Foi uma visita cheia de emoções. O presidente Lula em seu discurso disse: “CM é um espaço muito democrático. Tenho visto muitas coisas boas, mas nunca tinha visto tantos serviços no mesmo lugar.” Foi nessa visita que o presidente me disse que conversaria com a presidenta Dilma para que pudesse conhecer a experiência do CM e assim foi. A presidente Dilma enviou uma delegação a El Salvador para conhecer nosso projeto e a partir dai deu início a Casa da Mulher Brasileira, que tem realizado um excelente trabalho. O modelo CM está disponível para ser adequado a qualquer realidade. Basta vontade política e ter compromisso com a luta pela igualdade.

Jamais vou esquecer tudo que aprendi dessas mulheres maravilhosas!

Vanda Pignato é ex-primeira-dama de El Salvador. Nascida em São Paulo, se naturalizou salvadorenha. Ela é advogada, com atuação na defesa dos direitos humanos tanto no Brasil como na América Latina. Desde 2018, está em prisão domiciliar.