Artigo publicado no livro “China e Brasil: 50 anos de amizade e parceria”, livro que rememora o estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países

Passaram rápido os últimos 20 anos, desde a ida à China da grande comitiva empresarial e governamental brasileira, em maio de 2004. Nessas duas décadas, houve um salto deveras impressionante nas relações Brasil-China em quase todas as áreas, do aprendizado de português e mandarim, às trocas comerciais, investimentos, intercâmbio cultural e cooperação científica e tecnológica. São tantas as universidades hoje, nos dois países, que se relacionam, tanta gente estudando China e Brasil que certamente ocorrerá significativa mudança de patamar nas relações entre os dois povos nos próximos anos.

Evidentemente, esses acontecimentos recentes tiveram a contribuição decisiva de alguns fatos, dos quais destaco o acordo de cooperação aeroespacial (Cbers), assinado em 1988 e em vigor até hoje; o lançamento do livro “O Enigma Chinês”, de Wladimir Pomar, em 1987; o prêmio de Melhor Atriz, da Televisão da China, para a atriz brasileira Lucélia Santos, em 1985, por seu trabalho na novela “A Escrava Isaura”, sucesso de público naquele país; a exposição da cultura chinesa no Parque do Anhembi, em São Paulo, em 1984, para comemorar os dez anos das relações Brasil-China; e, nesse mesmo ano, a ida de uma comitiva da Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores à China.

Importante destacar também o trabalho pioneiro de empresas brasileiras que se instalaram na China nos anos 1970/90: a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), levando o nióbio para melhorar a utilização do aço chinês; a Vale do Rio Doce com minério de ferro; a Embraer, com seus aviões regionais e jato executivo; as catarinenses Embraco, Sadia e Weg, referências mundiais em suas áreas; e cooperativas e empresas exportadoras de soja, carnes e celulose. Durante todos esses 50 anos a contribuição brasileira para o desenvolvimento chinês foi discreta, mas muito efetiva, com bilhões de toneladas de ferro e outros minerais utilizados nos milhares de quilômetros de ferrovias, em grandes navios, e nos alicerces de infinidade de prédios modernos, pontes, viadutos e outras grandes construções em toda a China. E bilhões de toneladas de grãos usados na alimentação chinesa nesse meio século.

Igualmente tem sido muito importante a contribuição chinesa para o desenvolvimento do Brasil nesse período, principalmente nos anos 2000, alavancando a economia através de investimentos diretos e mais de meio trilhão de dólares de importações e no fornecimento de produtos com preços melhores, reduzindo assim os custos de vários setores da economia. Pouca gente sabe, mas a feijoada brasileira é preparada há muitos anos com o feijão preto e o alho importados da China e alguns outros produtos alimentícios chineses também estão hoje no cotidiano do Brasil. Poderíamos ter avançado muito mais nos últimos 20 anos se do lado brasileiro tivéssemos conseguido definir uma estratégia nacional para lidar com o nosso maior parceiro comercial – que chegou a essa condição muito mais por iniciativa própria do que por atuação do Brasil. Essa é a realidade também nas relações de irmanamento: importantes cidades e estados poderiam ter hoje muito mais cooperação efetiva se houvesse do lado brasileiro menos solução de continuidade nos governos e mais engajamento das entidades empresariais.

Felizmente, voltamos à condição de poder avançar nas relações com a China, que segue com as suas três iniciativas globais (civilização, desenvolvimento e segurança), a partir do conceito do Presidente Xi Jinping, divulgado em março de 2013, de comunidade com futuro compartilhado para a humanidade.

O Brasil tem muito que aprender com as experiências da China de redução da pobreza, de vitalização rural, de restauração de áreas desérticas e semiáridas e de plantio de árvores em todos os espaços possíveis nas cidades, margens de estradas e áreas rurais. Estamos na torcida para que o atual governo compreenda a importância do Brasil participar da Iniciativa “Cinturão e Rota”, ingressando no empreendimento de conectividade mundial realizado pela China. O Brasil depende da redução dos custos e tempo de transporte de cargas por ferrovias e por via marítima pelo Atlântico e o Pacífico para elevar a sua competitividade internacional. E a China é a parceira natural para a construção dessa infraestrutura de logística.

Da mesma forma, sabemos que a cooperação científica e tecnológica com a China poderá proporcionar à indústria brasileira a necessária retomada da importância do setor, essencial à dinamização da economia e à oferta de empregos de qualidade para as novas gerações. Pensando no mundo nos próximos anos, que prometem ser mais difíceis, aumenta a importância da cooperação em áreas com grande potencial e poucos intercâmbios, como a cultura, os esportes, a agricultura familiar, a aquicultura e o meio ambiente. A extraordinária diversidade e riqueza cultural da China são a maior motivação para quem atua no meio cultural e na economia criativa no Brasil. A possibilidade de mecanizar pequenas propriedades baseadas na agricultura familiar no Brasil a partir da experiência e cooperação com indústrias de máquinas e equipamentos da China já é realidade hoje e tem tudo para ser ampliada para todo o país.

A recuperação das áreas devastadas do Cerrado, Semiárido e Amazônia contribuirá de diferentes maneiras para a preservação ambiental que a China realiza. Temos muito a aprender com a longa tradição chinesa de criação de peixes e frutos do mar e o potencial produtivo proporcionado por nossas águas poderá contribuir para alimentar melhor as populações dos dois países e de muitos outros, na lógica da efetivação na prática de uma comunidade com futuro compartilhado para a Humanidade. Considero que o saldo desses 50 anos está aquém do potencial da cooperação Brasil-China, mas acredito que o desenvolvimento dos dois países poderá continuar a ser muito beneficiado por ela, apesar da eventual evolução desfavorável da conjuntura mundial. 

Isso porque há muitas complementaridades entre os dois países e muito mais gente importante na China compreende as diferenças culturais, políticas e ideológicas que dificultam que o desenvolvimento brasileiro ocorra na velocidade e direção essenciais ao bem-estar da grande maioria da população. Considero também que os próximos 50 anos exigirão do Brasil e da China muito mais esforço conjunto, para concretizar a contribuição de cada país para o futuro compartilhado proposto pelo presidente Xi Jinping. Isso porque há novas dificuldades, como o envelhecimento populacional e a simultânea redução da natalidade, na China e no Brasil, com impactos consideráveis para a condição de vida de centenas de milhões de pessoas idosas, no mercado imobiliário, gastos com saúde, na automação e redução do mercado de trabalho e na sustentação financeira de toda essa população. Estima-se que os fenômenos populacionais impactarão drasticamente outros países asiáticos, quase toda a Europa, a Rússia e diferentemente os países africanos (para os quais projeta-se aumento populacional), com os quais Brasil e China têm grande relacionamento.

Quando penso no que a China passou nos últimos 100 anos – em como se transformou na maior economia do mundo e em tudo o que está fazendo para chegar à condição de maior potência tecnológica mundial até 2049 – e penso também no que era o Brasil há apenas 100 anos – e na potência econômica, alimentar, cultural, mineral e em biodiversidade que é hoje, com capacidade instalada para fazer muito mais nas áreas científica, tecnológica e em inovação – só posso concluir que um cenário mundial como o previsto no conceito do futuro compartilhado para a Humanidade é uma meta factível. Teremos de trabalhar muito para alcançá-la, é verdade, mas nada que não estejamos já acostumados.

*Vladimir Milton da Rocha Pomar é técnico agropecuário, professor, graduado em Geografia, bacharelado e licenciatura plena, pela Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc. Possui mestrado em Estado, Governo e Políticas Públicas pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais – Flacso/SP. Tem realizado trabalhos acerca da China há 26 anos. É autor de O sucesso da China socialista (1949-2025) (Insular, 2023).

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