A tragédia, a senhora Watanabe e a naçãoA incapacidade de pensar sobre um acontecimento, o que implica fazer perguntas antes de oferecer respostas, e enxergar o todo a salvo de enquadramentos binários, não é um apanágio exclusivo do olhar conservador.

A esquerda também tem contas a acertar no balcão do reducionismo.

Mas a tentativa de desfrute político da tragédia de Santa Maria por parte de alguns veículos e colunistas (leia o desabafo de Flávio Aguiar) remete a uma terceira dimensão do problema.

Evidencia o risco enfrentado pelos protagonistas de um ciclo histórico quanto a sua estrutura de reflexão encontra-se obstruída por um poder capaz de empobrecer o olhar da sociedade sobre ela mesma.

A tragédia reafirmou a asfixiante insuficiência da pauta utilitarista que hoje domina o debate nacional.

 

O oposicionismo obcecado tornou a mídia incapaz de reagir mesmo à ‘dor indescritível’, evocada pela Presidenta Dilma.

Mais que isso.

Perdeu-se a dimensão narrativa, política e histórica da palavra solidariedade.

Pasma diante de uma população inteira em choque, a narrativa esclerosada assina seu atestado de irrelevância em momentos em que somente a solidariedade pode devolver sentido à vida e a sociedade.

A tragédia de Santa Maria questiona normas e procedimentos de segurança em recintos de frequência pública.

‘Para que não se repita’,disseram Dilma e Tarso Genro, a lei e a fiscalização terão que mudar.

Mas a extensão do que deve mudar vai além das normas técnicas.

Ela argui também o despreparo de redações uniformizadas diante da tragédia.

Uma parte importante do jornalismo revelou-se incapaz de apontar as portas de saída.

De acudir a tempo feridas insuportáveis.

De arejar o horizonte irrespirável.

E de sacudir a própria catatonia quando eventos irredutíveis pela sua extensão, emergência e intensidade escapam à pauta previsível e polarizada.

Como reagiria essa mesma mídia aferrada à batalha do dia anterior, diante de um acontecimento de dimensões ainda mais devastadoras em perdas humanas?

E se ele perdurasse ao longo de dias?

Teria ela grandeza para enxergar a Nação?

Ou persistiria na gulosa contabilidade de pontos em causa própria ?

Seria um interlocutor relevante do desespero para transformá-lo em criatividade e superação?
Ou cuidaria apenas de direcioná-lo aos seus alvos fixos?
Analistas esfericamente imunes à dúvida, dotados de conclusões antecedentes, de pronto levaram o país e o governo ao cepo de sua especialidade.
Sentenciaram diante de 234 mortos a incapacidade nacional para aspirar a qualquer coisa que extrapole a ração servida aos vira-latas em meia cuia de queijo Palmira.
Coube ao editor de Carta Maior, o gaucho Marco Aurélio Weissheimer, em tocante texto de primeiro hora desnudar a profundidade do ferimento que atingia a alma de sua gente e a de todo o país.
E ainda assim vislumbrar o ponto de luz por onde recomeçar.
Que autoridade tem para pautar o debate de outras urgências nacionais aqueles que enxergam do país sempre, e exclusivamente, a sua derrota preliminar e inapelável?
Não há retórica na pergunta. Há apreensão com lacunas que enfraquecem o discernimento da sociedade.
Equilibra-se o Brasil em um delicado meio fio do seu desenvolvimento.
Avançar requer a redefinição de prioridades.
Estas pressupõem o deslocamento correspondente de massas de recursos reclamados na ponta do investimento produtivo.
Cada novo ciclo na vida de uma Nação tem sua pauta de reflexão estratégica.
Dela depende da construção das grandes maiorias que ordenam o passo seguinte do desenvolvimento.
Não se faz isso sem a mediação de uma caixa de ressonância plural, crítica e democrática.
Que saiba fazer perguntas antes de oferecer respostas; e seja capaz de pensar sobre o que enxerga e de enxergar o todo, a salvo de enquadramentos redutores.
Exatamente o que foi sonegado de pronto no episódio de Santa Maria.
Não foi um tropeço diante do imprevisto devastador.
A ausência desse descortino pontua ardilosamente o noticiário econômico, por exemplo. Há meses.
Armadilhas se ocultam no interior de manchetes; espertezas reforçam a emboscada do espírito.
Um alarme desta semana no noticiário financeiro:
‘A senhora Watanabe trocou o Brasil pela Turquia’.
‘Senhora Watanabe’ é o código com o qual o mercado japonês identifica o investidor miúdo – donas de casa, casais aposentados, viúvas.
Pequenos poupadores, enfim.
São personagens intrinsecamente conservadores; realizam aplicações óbvias, mas no conjunto acabam tendo um peso significativo, deslocando massas de recursos pelo planeta, através de fundos e outras modalidades de investimentos.
Uma das aplicações preferidas das ‘senhoras Watanabes’ até recentemente eram papéis brasileiros.
Por razões óbvias.
Até meados de 2012 a taxa de juro do Brasil brilhava no topo do campeonato mundial.
O Japão patina há mais de uma década em crise. Debate-se emparedado entre a subserviência aos EUA e a competitividade do gigantesco vizinho chinês.
As taxas de juros no Japão são negativas; a economia se arrasta; não consegue escapar da areia movediça da deflação.
Nem com taxas de juros de 0,7% ao ano.
Mas a senhora Watanabe não perde tempo.
Toma empréstimos em ienes a juros quase negativos; aplica-os em títulos e ações nos pastos de engorda do dinheiro especulativo em todo o planeta.
Tem a companhia de um séquito de miúdos e graúdos nessa operação.
Com a reversão da curva dos juros no Brasil de Dilma – e a taxação do dinheiro arisco – a legião desiludiu-se com a praça brasileira.
‘A senhora Watanabe trocou o Brasil pela Turquia’. Mas também pelo México, a Polônia…
Um empréstimo tomado em iene investido em títulos turcos faturou um ganho de 30% em 2012.
O tsunami de Watanabes à Turquia valorizou a lira – e rendeu um plus de outros 20% aos especuladores na reconversão cambial de regresso à origem.
No Brasil, deu-se o oposto.
A mesma aplicação da senhora Watanabe aqui renderia 9,8%.
No comparativo das Bolsas, idem.
Na mexicana, a senhora Watanabe obteve um ganho de 23% em dólares no ano passado; na colombiana, 22%; na Bovespa, seu passeio teria custado uma perda de 10% em dólares.
A diáspora dos Watanabes é narrada como sintoma de perda de confiança no país.
É o oposto. É sintoma de soberania de uma política econômica feita para ser um escudo na defesa de empregos, indústrias, salários, receita e investimento público.
Mas serve como ‘evidência’ de fracasso do ‘intervencionismo desenvolvimentista’ do governo Dilma.
O ‘prejupizo’ é notificado em cores vivas. Com o manejo de símbolos contundentes. E fontes de prestígio.
O ‘Financial Times’, por exemplo.
Que disparou um petardo contra a Petrobrás nesta 2ª feira:
‘A Ecopetrol, a petroleira da amigável Colômbia, tornou-se a maior companhia do ramo na América Latina; maior que a Petrobras’, afirma o jornal inglês.
Como assim?
Assim, explica o FT: ‘políticas amigáveis’ aos negócios atraíram os investimentos (…) as ações da Ecopetrol registraram uma valorização de mais de 50% (…) seu valor de mercado (na Bolsa) n sexta-feira bateu em US$$ 129,5 bilhões. O da Petrobras é de US$$ 126,8 bi.
Isso tudo apesar de a brasileira ter uma produção três vezes maior do que a colombiana;ademais das reservas do pré-sal, que projetam o Brasil entre os seis maiores produtores de óleo na próxima década.
Coube ao diretor-executivo da Ecopetrol, Javier Gutiérrez, em entrevista ao próprio jornal inglês, matizar as coisas:
‘Não se pode comparar; a Petrobras é uma gigante… O valor de mercado é simplesmente um reflexo da confiança que o mercado deposita na Colômbia em geral, e na Ecopetrol em particular’.
A nuance fica escondia no corpo do texto.
Nuances tem pouco espaço no jornalismo das manchetes binárias.
O repto conservador ao governo do PT pede cores fortes.
E argumentos rígidos.
Diz o bem-informado jornal Valor Econômico que a visão de Aécio Neves, por exemplo, é que “o Brasil precisa abrir-se mais aos mercados e que o modelo de integração em vigor traz resultados pífios.”
A tentativa de desfrute político da tragédia de Santa Maria não foi um ponto fora da curva.
O empobrecimento do olhar jornalístico sobre o país desenha uma curva ascendente; revela a extensa capilaridade de um endurecimento narrativo deformador.
Uma incapacidade de assimilação da vida nacional em toda a sua extensão.
Mesmo quando se depara diante da dor que fala a todos nós.

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