Santo Dias, 40 anos depois: memória e histórias revividas
Nascido em uma fazenda no interior paulista, filho de meeiros (Laura e Jesus), Santo Dias da Silva foi boia-fria antes de vir para São Paulo, onde tornou-se metalúrgico e teve sua vida encerrada aos 37 anos, alvo de uma bala disparada à queima-roupa por um policial militar, pelas costas, no início da tarde de 30 de outubro de 1979.
Quarenta anos depois, sua memória se preserva com uma série de atividades, incluindo um permanente ato no local onde foi morto, e o relançamento de livro que conta a história do operário e da greve dos metalúrgicos paulistas naquele ano. Santo Dias – Quando o Passado se Transforma em História (Fundação Perseu Abramo/Expressão Popular) sai na semana que vem, com 456 páginas, mas já pode ser lido virtualmente no site da fundação. A primeira edição, da Cortez, é de 2004.
Duas das autoras do livro, a pedagoga Luciana Dias da Silva e a jornalista Jô Azevedo – a terceira é a fotógrafa Nair Benedicto –, participaram de debate na noite de ontem (16), promovido pelo Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Cedem-Unesp), na Praça da Sé, região central da capital paulista. Com elas, a geógrafa Anaclara Volpi Antonini, autora de dissertação de mestrado, em 2017, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), sobre lugares de memória da ditadura em São Paulo.
Na primeira edição, o prefácio foi escrito por dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo. Na atual, o texto é de dom Angélico Sândalo Bernardino, que estava com dom Paulo no Instituto Médico Legal, para onde havia sido levado o corpo do metalúrgico e membro da Pastoral Operária.
Antes, os documentos de Santo Dias tinham sido retirados, e sua viúva, Ana Maria do Carmo Silva, a Ana Dias, com 76 anos, completados em janeiro, e morando fora de São Paulo, ouviu repetidas vezes que dariam “sumiço” no corpo do operário assassinado durante piquete na fábrica da Sylvania, em Santo Amaro, na zona sul paulistana.
Ontem e hoje
A área foi vendida em 2007 para uma construtora e abriga um condomínio. Mas todos os anos, sempre às 14h do dia 30 de outubro, familiares e amigos vão ao local render homenagens a Santo Dias e escrever no chão que ali foi morto um operário cristão. Eles estarão lá dentro de duas semanas. Outras atividades estão previstas para os próximos dias, como no auditório da Geografia da USP (dia 22) e no Tribunal de Contas do Município (dia 23).
Dom Angélico lembra do exemplo de Santo Dias e fala dos dias atuais. “Povo com fome e sede de justiça, privado de uma economia solidária pelo sistema socioeconômico vigente. Povo que apoia reformas, inclusive da Previdência, com a inadiável condição de que seja autêntica reforma social e não apenas econômica favorecendo ricos, à custa da exploração dos pobres. Reforma trabalhista que não favoreça aos patrões para marginalizar ainda mais aos trabalhadores”, escreveu o bispo, que em entrevista no ano passado destacou o caso do operário como o mais doloroso que viveu no período da ditadura.
Líder da oposição à diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, Santo Dias integrava a chapa 3 que disputou as eleições para o comando da entidade em 1978. Era candidato a vice. No fim de um tumultuado processo eleitoral, Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, permaneceu na presidência, sob protestos da oposição.
“Perdemos um grande líder”, diz Jô Azevedo, que passou por publicações alternativas como O São Paulo, da Arquidiocese, e Movimento. Ela destaca a capacidade de Santo Dias de enfrentamento e ao mesmo tempo ponderação: “Ia pro pau, mas sem perder a tranquilidade”. E a importância de preservar a memória do operário e militante. “A gente ainda não conseguiu chegar na sociedade que o Santo tanto queria, sem exploradores e sem explorados”, afirma, acrescentando que as principais bandeiras do metalúrgico se mantêm até hoje: melhores condições de vida para os trabalhadores, liberdade de organização política e justiça social.
Transição para a democracia
Anaclara lembra que apenas dois meses antes da morte de Santo Dias o Congresso havia aprovado a Lei da Anistia (6.683), que é contestada até hoje. Para ela, a aprovação mostrou “um processo (de transição para a democracia) totalmente tutelados pelo militares” – em 1979, estava no poder o último dos generais-presidentes, João Figueiredo. “O assassinato do Santo mostra como esse período de transição não foi tranquilo. Não representou o fim da violência do Estado, nem da perseguição aos movimentos populares.”
A professora e coordenadora pedagógica Luciana é filha de Santo Dias, que nasceu em 1942 em Terra Roxa (SP), aos 17 anos quase perdeu uma perna em acidente com uma roçadeira, saiu do interior depois de promover uma paralisação, chegou em São Paulo em 1962 – o ano de criação do 13º salário – e casou com Ana três anos depois – além de Luciana, o casal teve um filho, também chamado Santo e conhecido como Santinho. O operário trabalhou na Metal Leve, morou em pensionato, e depois de casado comprou um terreno na região de Guarapiranga, no extremo sul paulistano, sem nenhuma benfeitoria.
Já nos anos 1970, participou dos movimentos contra a carestia em São Paulo. Era um período de forte organização de movimentos sociais. Ana Dias, por exemplo, esteve à frente da criação de um “clube de mães”, ainda em 1971. Luciana lembra de ter sido levada, pequena, para um ato em 1978 na Praça da Sé – mesmo local onde estava ontem à noite –, que terminou com repressão policial.
Piquete. E um tiro
E a greve dos metalúrgicos do ano seguinte, por aumento salarial, também enfrentava dificuldades. Naquela tarde de 30 de outubro, Santo Dias estava reunido com outros trabalhadores na Capela do Socorro, até que recebeu um pedido de “reforço” para ajudar em um piquete na Sylvania – o livro traz uma fotografia, de Ricardo Malta, mostrando Santo na igreja, aproximadamente 30 minutos antes de atender ao chamado. Na porta da fábrica, policiais queriam prender operários, Santo intervém e tentam detê-lo também. Um policial atira para o outro. Depois, mira no líder metalúrgico. Esse soldado chegou a ser condenado em primeira instância, mas houve recurso e o julgamento foi anulado, entrando para a interminável galeria brasileira de crimes impunes.
O velório de Santo, na Igreja da Consolação, parou a região central de São Paulo. De lá, seguiu-se passeata até a Catedral da Sé. Milhares se concentraram diante da igreja, onde Dom Paulo presidiu missa de corpo presente. O enterro foi no Cemitério de Campo Grande, em Santo Amaro, a 500 metros da antiga fábrica. Em 1980, foi constituído o Comitê Santo Dias de Direitos Humanos, que atualmente tem Luciana e Anaclara entre seus integrantes. A filha de Santo e de Ana exalta a coragem de sua mãe, que não se intimidou mesmo diante de soldados, no dia do assassinato, e foi até onde pôde para que a Justiça punisse o responsável.
Na noite de ontem, testemunhas daquele período não deixaram de notar que os tempos de hoje têm trazido lembranças de fatos que pareciam superados. “Retomar a memória de Santo Dias é fundamental para se manter firme para as lutas atuais”, diz Anaclara. “Santo vive para que as novas gerações, que nunca ouviram falar da luta operária, saibam que os trabalhadores fazem parte da história brasileira. E fazem parte como sujeitos ativos”, escreveu Luciana.
Em 2004, quase 4 mil documentos do acervo da família foram doados para o Cedem da Unesp. O material está disponível para consulta pública.